E por falar em jornalismo
OS JORNALISTAS DA BTV NÃO FALAM APENAS PARA FIÉIS, MAS TAMBÉM PARA INFIÉIS E NEUTROS
NUNCA ACEITEI A EXCEPÇÃO DEONTOLÓGICA E PROFISSIONAL EM QUE DURANTE MUITO TEMPO E IMPUNEMENTE VIVIA O JORNALISMO DESPORTIVO. CONFUNDINDO DELIBERADAMENTE INFORMAÇÃO COM OPINIÃO, GRANDE PARTE DOS JORNALISTAS DESPORTIVOS ACHAVAM-SE DESOBRIGADOS DOS DEVERES DE OBJETIVIDADE E ISENÇÃO
çNa semana que passou, o jornalismo foi notícia entre nós, não apenas pela realização do 5.º Congresso dos Jornalistas, mas também pela ocorrência da crise conjuntural na Global Media e da crise geral da imprensa, aqui e no Mundo. Se todos concordamos que a sobrevivência da imprensa profissional e livre é condição determinante para a sobrevivência da própria democracia, não é possível reclamar de factores externos antes de cuidar dos internos. O jornalismo só merece ser defendido se começar por se defender a si mesmo. Sob este ponto de vista, devo dizer que nunca entendi o fundamento e nunca aceitei a excepção deontológica e profissional em que durante muito tempo e impunemente vivia o jornalismo desportivo.
Confundindo deliberadamente informação com opinião,
grande parte dos jornalistas desportivos achavam-se desobrigados dos deveres de objetividade e isenção, que são o míni- mo exigível a quem queira ter uma carteira profissional de jor- nalista, seja em que área for. Fe- lizmente, andou-se um longo caminho para a frente e hoje es- sas poucas ilhas de jornalismo desportivo engajado servem apenas como tal e ao serviço de quem se contenta com tal. Entre elas um órgão de informação chamado BTV, a Benfica TV.
Obviamente, o Benfica é livre de ter o seu canal de televisão
próprio, e mais: de através dele transmitir os jogos de futebol e outros ocorridos nas suas instalações desportivas. Até aí, nada a dizer. O problema surge depois com o tratamento jornalístico que é dado a essas transmissões.
Em primeiro lugar, porque a BTV não transmite apenas para benfiquistas, mas também para outros assinantes que pagam para ver os jogos no Estádio da Luz, por várias razões - como eu próprio, por dever de ofício. Os jornalistas (suponho que o sejam) que estão a trabalhar essas transmissões, nos seus vários as- pectos, devem pois lembrar-se que não estão apenas ao serviço do clube que lhes paga e a falar para fiéis, mas também para infiéis e neutros, que merecem idêntico respeito. Quem, por exemplo, segue a Liga portugue- sa não pode ter um tratamento informativo para todos os jogos do campeonato transmitidos na Sport TV e outro nos jogos trans- mitidos na BTV, que acontecem na Luz. E isso começa logo na repetição dos lances duvidosos, que vezes demais é omitida quando a sua repetição pode mostrar benefício do Benfica.
Foi o que aconteceu recentemente com o segundo e decisivo golo do Benfica contra o Rio Ave
ou com o primeiro e igualmente decisivo golo contra o Boavista, ambos – sobretudo este último – parecendo precedi- dos de faltas que a realização op- tou deliberadamente por não esclarecer e os comentadores por não comentar. Pior ainda, no jogo contra o Boavista, foi a cotovelada que Arthur Cabral enfiou na cara de Salvador Agra, que o árbitro viu, puniu com fal- ta, mas nem para amarelo considerou. Não se tratou de uma obstrução, de um encosto, uma palmada: foi uma agressão, pura e simples, sem bola, para aleijar e para vermelho directo em qualquer lugar do Mundo. Nos saudosos (para os benfiquistas) tempos dos ‘sumaríssimos’, era assim, com esta ‘táctica’, que os jogadores determinantes do Porto - Quaresma, Hulk - eram tirados dos jogos: agarravam-nos pelo peito, pelo pescoço, até eles sacudirem os morcegos e então “ai Jesus, cotovelada!”: expulsão e suspensão por dois jogos. Na Luz, o Benfica teria ficado com dez, ainda na primeira parte e com 0-0. Seria outro jogo, como foi o do Porto em Alvalade, quando Pepe foi para a rua, depois de ter sacudido com o braço Matheus Reis que o empurrara por trás, impedindo-o de cobrar rapidamente um livre. Mas, na Luz, uma cotovelada na cara, sem provocação alguma, sem disputa de bola sequer, não dá direito a amarelo nem a repetição. Dá sim direito, depois, a ouvir um senhor chamado António Rola, comentador encartado de arbitragem da BTV, atirar-se ao árbitro acusando-o de todas malfeitorias imaginárias contra o Benfica, pondo mesmo em causa a sua honorabilidade e seriedade. Extraordinário: um ex-árbitro que aceita ser remunerado por um clube para dizer mal dos árbitros no activo que não favoreçam tanto quanto o desejável o clube que lhe paga! E que autoridade moral acha ele que terá para o fazer?
Que o Benfica reivindique a possibilidade de transmitir os jogos
no seu estádio por razões comerciais é um direito que lhe assiste. Mas se isso serve também para ocultar e monopolizar a verdade dos factos, já não é um direito, é um privilégio insustentável. * Texto escrito com a antiga ortografia