Memória de um tempo diferente
Por muitas décadas não houve exceções e até Eusébio teve de cumprir a recruta. Durante a guerra do Ultramar, muitos tiveram de deixar a carreira em suspenso para combater
Em tempos, o futebol português e o serviço militar coexistiram sem grande polémica. Ou melhor, sem espaço para discussões. Todos os jovens craques tinham de fazer a sua parte e passar pela obrigação de cumprir a recruta conciliando, quando era possível, a atividade militar com a carreira futebolística. Sobretudo durante o Estado Novo e, de forma ainda mais vincada, na Guerra do Ultramar.
Que o diga Albertino, antigo internacional português que passou boa parte da carreira entre FC Porto e Boavista. Era um jovem de grandes aspirações, acabado de sair da formação do Leixões, quando foi chamado a cumprir a recruta e enviado para combate em Angola. “Ter 20 ou 21 anos e ser chamado para a tropa nunca é bom, ainda para mais para passar 14 meses em combate”, começa por contar a Record , descrevendo como se viu forçado a colocar a carreira em pausa. “Sabia que queria ser jogador de futebol... se não desse, tinha-me virado logo para a pintura. Na altura, os contratos ficavam suspensos quando íamos para a tropa ou para a guerra. Por isso, fui e voltei, passados dois anos, ainda como jogador do Leixões. Mas foi diabólico. Andei em combate, vi um bom amigo morrer, muita gente ficou traumatizada. A guerra não é um filme”, recorda. Depois de mais de um ano em combate, Albertino conta que conseguiu arranjar uma solução para continuar a jogar a futebol... caída do céu. “Chegaram uns senhores de helicóptero, dirigentes de um clube da 1.ª divisão angolana que iam buscar outro rapaz. Souberam que era do Leixões e arranjaram maneira de ir também. Até chorei! Aliás, quase caí para o lado... só queria sair dali, até ia a pé”, conta. “Faltavam dois jogos para a época acabar e descemos de divisão. No ano seguinte, convidaram-me para ser treinador-jogador... aos 22 anos! Estávamos para subir quando se deu o 25 de Abril e tive de fugir dali.”
Daí voltou para o Leixões e acabou por ser convidado pelo FC Porto para ir com a equipa a uma digressão na América do Sul. “No espaço de um ano, passei de estar no meio da guerra a tentar ouvir os relatos do FC Porto, para estar a jogar com a equipa.” O serviço obrigatório continuou até 2004, mas Albertino garante que em moldes bem diferentes. “Os jogadores já tinham direito a dispensa para ir treinar e jogar. Alguns só iam ao quartel uma ou duas vezes por mês”, conta.
Glória no Mundial Militar
Portugal chegou a dar cartas no Mundial Militar, uma prova que, desde 1946, junta seleções de futebol formadas com efetivos das Forças Armadas. A edição mais recente disputou-se em 2019 na China - foi o Bahrain a vencer -, mas os tempos áureos dos lusos ficaram nos anos 50, durante o Estado Novo. Lisboa recebeu duas edições, incluindo a de 1958 em que Portugal se sagrou campeão mundial ao bater França na final. Os lusos conseguiram ainda dois vice-campeonatos (1956 e 1959) e um terceiro lugar (1954). Itália segue como o país mais titulado (oito troféus).
Nem Eusébio escapou
Eusébio é protagonista de uma das histórias mais célebres dos tempos de conscrição. De resto, o serviço militar é apontado como uma das principais razões que manteve o Pantera Negra no Benfica durante grande parte da carreira. Foi em 1962 que a obrigação de “ir à tropa” o terá impedido de rumar a Itália. “Tinha contrato com a Juventus, mas tinha 20 anos, tinha de ir à tropa e não podia ser transferido”, revelou em entrevista em 1995.
ALBERTINO TINHA 21 ANOS QUANDO DEIXOU O LEIXÕES PARA COMBATER EM ANGOLA: “A GUERRA NÃO É UM FILME”