Menos uma Flor num jardim poluído
Espancada, estrangulada e rodeada de uma poça do próprio sangue. Futebolista argentina é mais uma vítima do crime mais denunciado e o que mais mata
Espancada, estrangulada e encontrada numa poça de sangue. Podia ser o cenário de um filme, mas o terror é real. Foi este o fim de Florencia Guiñazú, morta na última semana às mãos do marido. Era mãe de duas crianças, uma mulher de sorriso fácil e futebolista do Mendoza, da Argentina. O crime chocou aquele país sul-americano, mas casos como este são muitos, têm várias línguas e acontecem em vários pontos do globo. E o estimado leitor sabe que não precisamos de ir longe para identificar milhares de mulheres que sofrem algum tipo de violência, sendo que a doméstica é o crime mais denunciado e o que mais mata. Mas já lá vamos. Florencia, ou Flor, como carinhosamente gostava de ser tratada, era vista como uma força da natureza. Não faltava a um treino e os filhos, uma menina de 5 anos e um menino de 7, ficavam a assistir, muitas vezes. Destacava-se pela estatura, velocidade e pela forma como fintava os problemas que tinha em casa. Considerando a forma como encarava a vida, poucos acreditariam que era com o pior adversário que alguma vez teve que partilhava teto. Apesar de terem estado separados, Florencia e Ignacio Agustín Notto, que se suicidou após cometer o crime, tinham-se reconciliado há poucos meses. Antes, a jogadora, de 30 anos, chegou a apresentar várias queixas e o homem esteve mesmo preso. Acabou libertado em novembro.
Havia, por isso, sinais suficientes de que o pior podia acontecer. E aconteceu mesmo, com Milo e Ámbar, as duas crianças, em casa. Os filhos do casal jogavam PlayStation na sala enquanto os pais discutiam noutra divisão, onde depois aconteceria a tragédia. Antes de acabar com a própria vida, o homem deixou uma mensagem na janela do quarto: “Chamem o 112, as crianças estão sozinhas.”
O anúncio do emblema argentino foi feito em jeito de pedido.
“Tal como nesta fotografia [a cumprimentar uma companheira], recordaremos sempre a Flor estendendo a mão e um sorriso. Nem uma [mulher] a menos. Parem de nos matar”, pode ler-se na partilha do Mendoza.
A notícia sensibilizou a Argentina, um país onde, apesar de tudo, a taxa de criminalidade contra as mulheres é alta e tem vindo a aumentar. No ano passado, 322 mulheres foram assassinadas. E os primeiros dados de 2024 são alarmantes: até final de fevereiro, já se registavam 61 vítimas, mais 10 por cento em relação ao período homólogo do ano anterior (56).
Sem sair do país dos ídolos Messi e Maradona, encontramos muitos relatos de mulheres que sofrem ou sofreram em contexto desportivo. E há um outro
JOGADORA, QUE NÃO FALTAVA A UM TREINO DO MENDOZA, JÁ TINHA DENUNCIADO O MARIDO E PAI DOS SEUS DOIS FILHOS
caso bem recente. Na última semana, Jorge Martínez, ex-treinador da equipa feminina do Boca Juniors foi condenado a um ano de prisão por abuso sexual contra Florencia Marco, assessora de imprensa da mesma equipa. “Ao invés de falar olhando-nos nos olhos, ele falava a olhar para os nossos seios. Porque ‘ele é assim’, diziam-me no clube. Ao invés de te abraçar como uma pessoa normal, abraçava-te e tocava-te nas partes íntimas. Porque ‘já faz parte dele’, diziam. O abuso começou a ser normalizado dentro da equipa. Acontecia comigo e muitas outras mulheres”, relatou Flor, numa entrevista ao ‘La Nación’.
“Não há pessoas imunes”
Antes de falar sobre a realidade em Portugal [ver página seguinte], Carla Ferreira, assessora técnica da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), defende que estes casos mostram “a transversalidade do fenómeno da violência” contra as mulheres. “São exemplos que nos alertam para a transversabilidade destes crimes, ou seja, não há pessoas imunes. As mulheres continuam a ser desproporcionalmente afetadas”, reflete.