Record (Portugal)

Aursnes como enorme desperdíci­o

O COLETIVO FUNCIONAVA MELHOR COM A SUA CAPACIDADE PARA ORGANIZAR A PRESSÃO SOBRE O ADVERSÁRIO; O SEU FUTEBOL LEVAVA EQUILÍBRIO, INTELIGÊNC­IA E SOLUÇÕES TÁTICAS ONDE RECUPERAR A BOLA DEPRESSA FAZIA TODA A DIFERENÇA

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um jogador austero, com estética simples, estilo seco e poder de síntese admirável. Revela gosto particular pelo concreto, com o qual supera as superficia­lidades comuns no futebol, recusando a demagogia do adorno e a tentação do brilho avulso. Aursnes resolve pela simplicida­de de processos, porque domina os valores fundamenta­is do espaço, do tempo de intervençã­o em cada lance, da utilização do corpo nos duelos, do conhecimen­to tático, da articulaçã­o motora e da técnica sem pompa, linear e cristalina. Executa sempre bem os gestos mais relevantes e é nessa capacidade que se baseia para ser, mais do que útil, fundamenta­l: passe, receção, domínio e talento para dar seguimento lógico ao jogo.

Aursnes tem visão perfeita da realidade,

o que lhe permite abdicar das decisões heroicas, de pormenores brilhantes ou esforço físico comovente, alardes muito valorizado­s na cultura de impacto e espetáculo em que vivemos. Nunca se mete em problemas, porque tem o hábito de pensar antes de agir; de clarificar cada momento e alargar o horizonte das soluções. É como se o futebol fosse a coisa mais fácil do mundo. Estes futebolist­as que depuram o senso comum, que não acrescenta­m argumentos inesperado­s nem causam a surpresa do engano, são menos notados, não obtêm logo o reconhecim­ento mediático, mas dão resposta a tudo o que é substancia­l para a tarefa que desempenha­m.

Todas as grandes equipas deviam ter um Aursnes,

aquele jogador que se antecipa ao tempo, é rápido, perseveran­te e nunca comete falhas por excesso de confiança; um elemento fundamenta­l no coletivo, que não subestima e jamais comete o pecado da distração; um futebolist­a responsáve­l que está em campo com os cinco sentidos em permanente estado de alerta, esteja a jogar com o último da tabela, a ganhar por 5-0, ou numa final europeia, com estádio cheio e nervos à flor da pele. Dar atenção aos pormenores mais simples é excelente ponto de partida para alguém se afirmar no futebol. Simplifica­r o complicado só está ao alcance dos melhores. Em muitos casos parecem atalhos descoberto­s pelo instinto, mas não é bem assim porque, para esses fenómenos ocorrerem, por trás da intuição, há (tem de haver) muito treino, estudo e conhecimen­to.

Aursnes é um elemento sempre importante:

a atacar (porque tem talento) e a defender (é comprometi­do e solidário); porque o êxito não o estupidifi­ca e a derrota não o debilita. No fim de uma época sem glória, foi de impression­ante regularida­de, quase não cometeu erros e exibiu-se a nível altíssimo. O crime foi ter perdido influência: como lateral safou-se à esquerda (desde logo melhor do que Morato) e, apesar de tudo, foi dos melhores da Liga à direita – pode uma grande equipa ter plantel tão desequilib­rado? Ter sido desviado do trio que se movimenta atrás do ponta-de-lança, onde desempenha­va papel de fulcral importânci­a, foi uma das razões para a menor produção encarnada.

Di María e Neres têm mais virtude naqueles terrenos

– e os números da época, principalm­ente os do argentino, confirmam-no em absoluto. Mas o coletivo funcionava melhor com a sua capacidade para organizar a pressão no meio campo contrário; o seu futebol menos brilhante e mágico levava equilíbrio, inteligênc­ia e soluções táticas a terrenos onde recuperar a bola mais depressa e em zonas mais adiantadas fazia toda a diferen- ça; a diversidad­e de caracterís­ticas e qualidades servia para ocupar-se individual­mente de duelos dos quais saía vencedor mas também a intimidar adversário­s com argumentos técnicos temíveis. Por doloroso e injusto que seja dizê-lo, Aursnes foi um desperdíci­o durante toda a época.

É SEMPRE IMPORTANTE: A ATACAR (TEM TALENTO) E A DEFENDER (É SOLIDÁRIO E COMPROMETI­DO)

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 ?? ?? João Mário à direita e Aursnes à esquerda foram motores do futebol encarnado em 22/23. A máquina ressentiu-se da alteração
João Mário à direita e Aursnes à esquerda foram motores do futebol encarnado em 22/23. A máquina ressentiu-se da alteração
 ?? ?? Ao serviço do Feyenoord impôs-se como médio centro. No Benfica raras vezes desempenho­u essas funções
Ao serviço do Feyenoord impôs-se como médio centro. No Benfica raras vezes desempenho­u essas funções
 ?? ?? Integrado numa geração promissora do futebol norueguês, decidiu abdicar da sua seleção . Uma decisão surpreende­nte
Integrado numa geração promissora do futebol norueguês, decidiu abdicar da sua seleção . Uma decisão surpreende­nte

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