HAVERÁ ALGUÉM QUE ACREDITE QUE OS ENFERMEIROS VÃO CONTINUAR A TRABALHAR “POR AMOR À CAMISOLA”!
Há duas semanas que os portugueses escolheram os seus representantes na Assembleia da República e que terminou o longo período de promessas tentadoras e aliciantes para convencer os eleitores. Assistimos a uma das campanhas eleitorais mais manipuladoras de sempre, em que se disse tudo e o seu contrário, apelando às emoções mais animalescas do ser humano.
Aos enfermeiros, todos prometeram valorização profissional, mas só os partidos da extrema direita e da extrema esquerda defenderam a classificação como profissão de desgaste rápido ou o estatuto de risco e penosidade.
A verdade é que para a generalidade das forças políticas, sobretudo os que são ou foram responsáveis pela governação, os enfermeiros não são, nem nunca foram uma prioridade!
A maioria dos portugueses, e por inerência os políticos também, ainda veem os enfermeiros como “ajudantes dos médicos” e apesar de há mais de 40 anos a profissão estar legalmente reconhecida como autónoma, com direito ao exercício liberal e sujeita a normas europeias de livre circulação, continuamos com políticas que bloqueiam o acesso a cuidados de enfermagem, que impedem os enfermeiros de assumir o atendimento direto à população nas suas áreas próprias de atuação. Os enfermeiros e o SNS enfrentam grandes desafios, como a falta de investimento, a sobrecarga de trabalho, a escassez de recursos, a falta de oportunidades de progressão na carreira e a baixa retenção de profissionais. Estes fatores e os baixos salários levam os Enfermeiros a procurar oportunidades mais aprazíveis no estrangeiro.
De acordo com os dados do anuário estatístico da Ordem dos Enfermeiros, em 2023, estavam inscritos 25.377 enfermeiros especialistas habilitados a exercer de forma independente em áreas onde a população atualmente não tem resposta às suas necessidades de saúde. Somos um país paradigmático!
Nos serviços de urgência, onde recorrem as pessoas com situações emergentes, com elevado risco de vida, entregamos aos enfermeiros sem especialidade a responsabilidade de triar e encaminhar cada caso para o setor adequado e até determinar quanto tempo pode esperar para ser atendido, no entanto nos cuidados de saúde primários a entrada no sistema só pode ser feita pelo médico de família.
Por exemplo, a alocação da vigilância da saúde da mulher e saúde da criança aos enfermeiros especialistas, poderá, dependendo das características da lista associada ao médico de família e enfermeiro de família, implicar um decréscimo de consultas na área da saúde da mulher entre 400 a 530 consultas/ano/médico e na área da saúde infantil entre 350 a 440 consultas/ano/médico (não estão incluídas consultas por doença).
Mas continuamos a aceitar que para medir, pesar, avaliar o desenvolvimento psicomotor de uma criança e ensinar a mãe a introduzir alimentos é preciso uma consulta médica. Depois as notícias são, que há mais de 1,7 milhões de portugueses sem médico de família e que a contratação de médicos tem sido um “fracasso”! Continuamos a insistir numa organização medicocentrica mais cara, que desperdiça a capacidade instalada em cuidados de enfermagem especializados e que por ser ineficiente cria negócio ao setor privado. Um jogo de interesses onde se subverte a organização do SNS para assegurar o crescimento de serviços privados e onde alguns enriquecem! Depois nunca há dinheiro para pagar condignamente aos enfermeiros, que mantêm os serviços abertos à custa de trabalharem horas a mais, falsas horas extra, que são pagas incorretamente, quando não desaparecem por milagre das escalas ao fim de uns meses!
Os sucessivos governos insistem em manter os enfermeiros com salários dos mais baixos da Europa e a permitir que outros países recrutem com facilidade os nossos enfermeiros mais qualificados para assumirem nesses países o que não os deixamos fazer aqui!
Ou seja, formamos enfermeiros com elevada competência, para outros povos beneficiarem dos seus cuidados.
Mas na perspetiva do enfermeiro a situação é ainda mais incompreensível!
Para além de não os deixarem exercer na sua plenitude as suas competências próprias, ainda os sujeitam à precariedade laboral, a carga horária excessiva, a atropelos aos seus direitos consagrados, a ambientes onde as ações de assédio, de intimidação ou de coação moral são exercidas de forma continuada. E se juntarmos à equação que a diferença entre o salário líquido de entrada na carreira especial de enfermagem e o salário mínimo rondará os 296,88€, vale a pena ponderar mudar de profissão!
Haverá alguém que acredite que os enfermeiros vão continuar a trabalhar “por amor à camisola”!
Para a Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros – ASPE, que represento, o próximo Governo e Ministro da Saúde terão que quebrar este ciclo de palavras sonantes e práticas desrespeitosas que mantem uma profissão essencial subjugada a outras, mal remunerada e sem perspetivas de desenvolvimento profissional.
O salário vai muito para além de ser apenas uma transação financeira; trata-se de um elemento vital na equação da satisfação profissional e do equilíbrio entre vida pessoal e profissional, influenciando diretamente o desenvolvimento e o bem-estar dos enfermeiros e consecutivamente os seus índices de produtividade e compromisso para com a instituição. E depois dos recentes discursos inflamados de todos os partidos políticos em defesa do SNS, será necessário passar das palavras aos atos, e reconhecer efetivamente o valor do trabalho dos enfermeiros, até porque os doentes ficam internados em enfermarias, porque precisam de cuidados de enfermagem e uma qualquer cirurgia não se faz sem pelo menos três enfermeiros!
Ao contrário do que muitos pensam, o futuro do SNS depende mais da sua reestruturação em função das necessidades de saúde da população e da articulação das respostas multiprofissionais disponíveis do que do orçamento que lhe seja atribuído.
E uma coisa é certa, se não cuidarem dos enfermeiros que, com sacrifício, têm mantido o SNS a funcionar, não vão conseguir ir buscá-los a lado nenhum, porque não há país no mundo que não seja deficitário em enfermeiros.
Fica o alerta!
Os sucessivos governos insistem em manter os enfermeiros com salários dos mais baixos da Europa e a permitir que outros países recrutem com facilidade os nossos enfermeiros mais qualificados para assumirem nesses países o que não os deixamos fazer aqui!