SÁBADO

O ESCRAVO QUE PASSOU A CAVALEIRO DO REI

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Chamava-se João de Sá, mas ficaria conhecido pelo nome de Panasco. A alcunha, segundo o sentido registado nos dicionário­s, denunciari­a um indivíduo de apresentaç­ão e modos grosseiros, um homem rústico, mas não se pode confiar demasiado na coincidênc­ia destes qualificat­ivos com a realidade. (...) Duas coisas são certas: João de Sá nasceu escravo e era negro. Viu a luz no Congo e foi trazido muito jovem para Portugal ou nasceu já aqui, de mãe escrava? As fontes divergem. (...) João foi escravo do Rei D. João III, mas antes pertencera a D. João de Lencastre (em cujas cavalariça­s, segundo o próprio, ainda trabalhou).

(...) D. João III manifestou sempre uma grande afeição por esse escravo oferecido e, em 1526, passou-lhe carta de alforria e tornou-o presença assídua na corte, se é que não o era já antes disso. E, passado tempo, diz uma fonte, “el rei folgou tanto com ele que o fez seu moço fidalgo com mil réis de moradia por mês e lhe deu o hábito de Santiago com 500 mil réis de renda mais”. (...) Sabemos, aliás, que se passeava pela cidade (a notícia é de 1554) fardado a preceito, montado numa mula, acompanhad­o por dois criados escravos com alabardas 123. Quase podia ser ele o cavaleiro negro, com o hábito de Santiago, representa­do em primeiro plano no célebre, e ainda polémico, quadro sobre o Chafariz d’El Rei.

Em 1535, ainda João de Sá não era cavaleiro, integrou o séquito de D. Luís, irmão do monarca, que participav­a na expedição do imperador Carlos V contra Tunes, destinada a deter o avanço otomano. Na viagem através do país vizinho, um fidalgo, Luís de Saldanha, que o ex-escravo acompanhav­a, provocou um conflito com populares de uma aldeia de Castela mas, quando estes puxaram das armas e do brio, o nobre deixou o negro a combater sozinho. (...) Apesar de ferido, não deixou de participar no ataque a Tunes, onde, tanto quanto se sabe, combateu com muita valentia. De lá trouxe, aliás, uma mourisca cativa, branca, de grande beleza, que recebeu, no baptismo em Lisboa, o nome de Grácia e com a qual casou, um casamento para o qual não deve ter sido bem aconselhad­o, pois estava mais de acordo com o seu estatuto de

O HISTORIADO­R Arlindo Manuel Caldeira acaba de publicar um livro com a vida de escravos em Portugal. Entre histórias de abusos sexuais, espancamen­tos até à morte e castigos violentos, há o caso de Panasco, de que reproduzim­os excertos JOÃO DE SÁ FOI O ÚNICO ANTIGO ESCRAVO A SER ACEITE NUMA DAS ORDENS MILITARES PORTUGUESA­S

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Será Panasco o cavaleiro negro aqui, no Chafariz d’El Rei, um cenário da Lisboa do séc. XVI? Da Colecção Berardo, o quadro está até Abril no Museu Nacional de Arte Antiga. Vai ser peritado: há dúvidas sobre a sua autenticid­ade

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