VILAR FORMOSO VAI TER MUSEU DOS JUDEUS QUE SE SALVARAM DOS NAZIS
Dezanove descendentes de refugiados da II Guerra Mundial fizeram a mesma viagem dos pais que sobreviveram graças ao cônsul português.
Abre em Agosto. Fomos lá com os descendentes dos judeus que se salvaram dos nazis na II Guerra Mundial graças a Aristides de Sousa Mendes
Avisita ao novo museu está prestes a começar. Junto à estação ferroviária de Vilar Formoso, a norte-americana Rebecca Barber e outros dezoito descendentes de judeus que escaparam aos nazis durante a II Guerra Mundial escutam com atenção a explicação da arquitecta Luísa Pacheco Marques. “Estamos no preciso local em que os vossos familiares estiveram no fim de Junho de 1940. Nesses dias este sítio estava cheio de gente. Há quem diga que parecia Piccadilly Circus [centro de Londres] em hora de ponta. Duas mil pessoas chegaram aqui diariamente ao longo de uma semana – quase todos com vistos concedidos por Aristides de Sousa Mendes.” Foi graças ao cônsul português de Bordéus, em França, e à sua rebelião contra as ordens de Salazar que cerca de 30 mil pessoas escaparam ao Holocausto.
Entre elas estava Otylia Lea Steppel, mãe de Rebecca Barber, que exibe agora o passaporte da progenitora. O documento está amarelado pelo tempo – Rebecca tirou-o do cofre, especialmente para esta viagem que reconstitui os passos de tantos outros refugiados que, como a sua mãe, foram salvos por Aristides. O grupo, organizado pela Sousa Mendes Foundation, saiu de Bordéus a 24 de Junho e terminou a viagem em Lisboa a 4 de Julho. Pelo meio os descendentes (a maioria de nacionalidade norteamericana) passaram por Salamanca, Viseu, Porto e Figueira da Foz – cidades que acolheram refugiados na II Guerra Mundial. E pararam na vila fronteiriça para conhecer o novo museu de Vilar Formoso, Fronteira da Paz, com inaugura-
ção marcada para 26 de Agosto. O projecto de homenagem ao cônsul português e aos refugiados que por ali passaram custou 1 milhão de euros e foi financiado pelo fundo europeu EEA Grants, pelo Ministério da Cultura e pela Câmara Municipal de Almeida. “Além de reavivar a memória, é também uma forma de dinamizar a região”, disse à SÁBADO António Baptista Ribeiro, presidente do município, que também acompanhou a visita.
Num espaço ainda em obras, já é possível vislumbrar o resultado final. Gente como Nós, O Início do Pesadelo e Viagem são os nomes de alguns dos núcleos que evocam o Holocausto, a fuga para Portugal e a vida dos judeus no País. Ali será também exibido um documentário do cineasta russo George Rony, que retratou a chegada de centenas de refugiados à estação de caminhos-de-ferro de Vilar Formoso. “E vamos contar a história do Aristides através do testemunho do filho Pedro, que estava lá [em Bordéus] quando o cônsul atribuiu os vistos”, diz a historiadora Margarida Magalhães Ramalho, responsável pelos conteúdos do museu.
A luz de Vilar Formoso
Primeiro em corredores, depois num espaço mais amplo, a arquitecta Luísa Pacheco Marques vai apresentando o novo museu. Rebecca Barber aproveita para mostrar mais um documento da mãe. Desta vez é o diário, que lê em voz alta. “Chegámos a Vilar Formoso. Em Espanha, estava tudo andrajoso, sujo e frio nesta época do ano. Nesta cidade fronteiriça era diferente: quente, luminoso e limpo”.
Rebecca, 69 anos, só soube que a mãe era uma das sobreviventes do Holocausto depois de Otylia Lea Steppel ter morrido, em 1983. “Quando limpei a casa onde vivia, encontrei o diário na mesa de cabeceira. Demorei 10 anos até conseguir lê-lo. Tinha medo de descobrir quem era esta mulher.”
Otylia e os pais saíram de Dusseldorf, na Alemanha, na sequência da Noite de Cristal e dos violentos ataques a judeus em Novembro de 1938. Estiveram em fuga durante dois anos, até chegarem a França. “Esconderam-se em vagões, estiveram no meio de bombardeamentos. Foi terrível”, diz Rebecca, acrescentando que além de Vilar Formoso os familiares estiveram na Curia, concelho de Anadia, e em Pampilhosa da Serra. Na viagem que agora fez a Portugal tirou fotografias nos mesmos locais em que a mãe esteve. “Não quero chorar, mas esta foi provavelmente uma das viagens mais emotivas da minha vida.”
Setenta e sete anos depois
Quem também quis conhecer o novo museu foi Lissy Jarvik, de 93 anos. De fato de treino, boné e óculos de sol, caminha pelo braço do filho Jerry. É a única do grupo que es-
“CHEGÁMOS A VILAR FORMOSO. EM ESPANHA ESTAVA TUDO ANDRAJOSO, SUJO E FRIO”, DIZ O DIÁRIO DE UMA SOBREVIVENTE
teve na estação de caminhos-de-ferro em Junho de 1940 – tinha 16 anos. Confessa que já se esqueceu de muitos detalhes – foi há 77 anos –, mas com a ajuda do filho conta que viveu com a família na Figueira da Foz antes de embarcarem para os EUA, em Janeiro de 1941. Durante a visita estava longe de imaginar que, dias depois, olharia para a casa onde viveu com os pais e com a irmã, na Rua Bernardo Lopes. “Encontrámos essa informação no arquivo municipal da terra”, explicaria Jerry, em Lisboa (o périplo terminou na capital). “Estivemos à porta e tirámos fotos”, revela. O local avivou as lembranças de Lissy. “Sempre tive a imagem daquela casa. Não consigo explicar o que senti”, refere a idosa. Além das memórias ou dos relatos dos familiares, grande parte das pessoas que viaja com a Sousa Mendes Foundation traz também fotografias. É o caso de Paulette Freed, que exibe dezenas de retratos enquanto conta que o pai viveu 10 meses na Figueira da Foz. “Sem o Sousa Mendes eu provavelmente não existia”, sublinha a norte-americana. Paulette diz que a família, que fugiu de Antuérpia, na Bélgica, a 10 de Maio de 1940, acabou por “revolucionar” a vida social na Figueira da Foz, onde viveram uns meses. “A minha mãe contava que as portuguesas eram muito submissas – não saíam sem os maridos. Só os homens iam ao café. A minha mãe conseguiu convencer algumas mulheres locais a irem também. Estava muito orgulhosa. De certa forma contribuiu para a emancipação feminina”, refere. Neste Caminho da Liberdade – Journey on the Road to Freedom, nome da viagem que já vai na terceira edição, está também Gerald Mendes, um dos netos do cônsul. “O meu pai, 12.o filho de Aristides, falava muito de Portugal e do meu avô [que emigrou para o Canadá], um homem feliz que gostava de contar piadas e que foi recebido como um herói em Cabanas de Viriato [onde nasceu], em 1940”, diz o descendente.
A vida da família Mendes complicar-se-ia pouco depois. Salazar não permitiu que Aristides continuasse na carreira diplomática e o cônsul passou por graves privações económicas. “O meu pai não foi à escola entre os 13 e os 20 anos, porque estava empenhado em ajudar o meu avô na sua defesa. Só voltou a estudar quando saiu de Portugal”, diz Gerald, que vive entre Lisboa e Paris.
De barco com cheiro a sardinhas
Se é verdade que a maioria dos refugiados viajou de automóvel e de comboio, houve quem optasse por vir de barco. Foi o caso da família holandesa Van Der Bergh, que chegou a Bayonne no início de Junho de 1940. “Havia milhares de pessoas a tentar sair de França. A minha família decidiu contratar um barco de pesca português que tinha vindo de Aveiro com sardinhas e que iria regressar à cidade do Porto vazio”, conta Cookie Fishcher, descendente dos Van Der Bergh, que integrou a viagem da Sousa Mendes Foundation para conhecer as suas raízes. “É uma forma de pôr a minha vida em perspectiva.” Comovida, recorda os dias que a família viveu antes da fuga para Portugal. “Souberam que esta-
OS HOLANDESES VAN DER BERGH CHEGARAM A PORTUGAL NUM BARCO DE PESCA DE SARDINHAS E SÓ COMERAM FIAMBRE
vam a dar vistos no consulado português e um deles recolheu os 15 passaportes e levou-os a Aristides para que os carimbasse [nessa altura não sabiam o nome do português]”. Já com autorização, viajaram durante oito dias numa embarcação suja e onde o cheiro a peixe era nauseabundo. Partilharam a mesma casa de banho (uma para 15) e os poucos alimentos que restavam. “O que havia em maior quantidade era fiambre, o que não é propriamente adequado para judeus. Mas claro que naquela situação acabaram por comer”, conta Cookie Fisher, acrescentando que a mãe, então com 25 anos, era uma das passageiras mais engenhosas. “Antes da fuga preparou várias mochilas com o mesmo kit de sobrevivência (todas incluíam uma muda de roupa, sapatos e uma lanterna) para precaver a perda de alguma delas.
E quando soube que ia de barco, comprou plástico para proteger o passaporte em caso de naufrágio.” Nem a lanterna de Ada Van den Bergh era uma lanterna qualquer – arranjou uma antioxidante. “Era uma mulher muito prática. Estava determinada a chegar aos Estados Unidos não importava de que forma fosse e sabia que os judeus eram um alvo a abater. O meu avô tinha lido o Mein Kampfe estava ciente do que isso significava”, conta Cookie, revelando que nessa altura a mãe escrevia a um homem por quem se apaixonara. “Nunca me falou dele em vida, o que me chocou de certa forma”. Ada e a família chegariam a Portugal em segurança. Semanas depois, a refugiada partia para os Estados Unidos – Cookie não sabe exactamente como conseguiu. Descobriu apenas que na lista de passageiros o nome da mãe constava como criada de um casal de professores –estava responsável por seis cães. Do grupo que esteve em Vilar Formoso faz parte também Marianne Rosenberg, neta do famoso coleccionador de arte Paul Rosenberg. O francês, que representou artistas como Pablo Picasso, Georges Braques, André Masson e Henri Matisse, tinha uma galeria de arte em Paris quando a guerra chegou. “Uns anos antes, pressentindo o que iria acontecer, começou a enviar obras de arte para os Estados Unidos, Austrália e alguns países da América Latina”, conta Marianne, revelando que mesmo assim foram roubadas 400 peças – a família empenhou-se em recuperá-las nos últimos anos; faltam 68.
A lição de Aristides
Graças a Sousa Mendes conseguiram fugir de França, logo após a invasão nazi, em 1940. “Foram de carro para Bordéus e receberam vistos para Portugal. Dos 17 membros da família, três ficaram retidos em França: o meu pai e três primos – os rapazes com mais de 17 anos não podiam sair de França”, conta Marianne, acrescentando que acabariam por se salvar, mas mais tarde. Já em Lisboa, Paul Rosenberg partiu de barco para os Estados Unidos. “O meu avó tinha organizado uma exposição de Picasso no Moma (Museum of Modern Art), em Nova Iorque. Toda a gente o conhecia e foi assim que ele arranjou vistos”, conta Marianne que hoje tem uma galeria de arte com o nome da família naquela cidade norte-americana. A coleccionadora de arte, de 63 anos, garante que Sousa Mendes foi fundamental no destino dos Rosenberg. “Antes da guerra, o meu avô organizou protestos contra as vendas de arte promovidas por Hitler. Era certamente um alvo a abater”, declara. Para Marianne, o legado do diplomata português é fundamental hoje. “Ele deixou uma mensagem muito importante para a actualidade: é preciso ocuparmo-nos das pessoas”. E explica: “Não basta olhar para aquele menino sírio morto na praia [fotografia que se tornou símbolo do drama dos refugiados que tentam chegar à Europa]. Aristides mostrou-nos que é preciso agir.”
“O MEU PAI NÃO FOI À ESCOLA ENTRE OS 13 E OS 20 ANOS PARA AJUDAR O MEU AVÔ”, DIZ GERALD