AS CANTINAS SOCIAIS MAIS IMUNDAS
Comida imprópria, sujidade, bichos: alguns casos foram apanhados pela ASAE, outros não
Por fora é um edifício de luxo, por dentro reserva umas quantas surpresas gastronómicas – chega-se a elas pelo fundo do corredor das traseiras. A fachada confunde-se com um hotel de charme, imaculadamente branca e cheia de janelas. O requinte mantém-se nos quartos modernos e confortáveis, nas salas de estar a perder de vista, piscina, ginásio e zonas verdes. Mas o cenário de sonho esconde um pesadelo – um segredo bem guardado no piso inferior, um espaço exíguo com bancadas sujas e um exaustor carregado de gordura.
Esta é a história de um bas-fond improvável: a cozinha de um lar de terceira idade a funcionar no Porto e criado para o segmento alto, onde as mensalidades cobradas aos mais de 100 utentes (muitos em fase terminal e sob cuidados continuados) oscilam entre os 1.800 e os 4.000 euros. Preços inversamente proporcionais ao respeito pelos padrões de higiene e de segurança alimentar que a lei exige. Como vai constatar a seguir, trata-se de um entre muitos casos críticos neste sector: são as cantinas para idosos institucionalizados – e não as das escolas – que lideram as irregularidades (mas já lá vamos).
As refeições do lar do Porto, de qualidade discutível, são concessionadas a uma empresa externa. Comecemos pela loiça: está lascada e é um perigo – para funcionários e utentes. O menu também levanta dúvidas, sem variedade nem grandes preocupações nutricionais. Todos os dias surgem reclamações da comida. “Peixe a nadar em gordura, carne demasiado grelhada e dura, alimentos muito fritos e crus”, denuncia à SÁBADO uma funcionária da instituição, que sob anonimato assegura que a ementa é apenas a ponta do icebergue. A propósito de gelo, os procedimentos de conservação de alguns alimentos apontam no mínimo para amadorismo. Por exemplo, com a gelatina – feita em grandes quantidades, para durar três a cinco dias – o entra-e-sai da câmara frigorífica compromete a qualidade. O mesmo sucede com a sopa, num constante aquece-e-arrefece até azedar. “Utentes e funcionários já tiveram, pelo menos, uma gastroenterite desde que ali chegaram”, queixa-se a mesma fonte.
As pragas são outro foco de contaminação, ainda que os funcionários usem touca e luvas. Já houve uma de baratas, em grande escala, há dois anos. O chão e as bancadas estavam repletos destes insectos: “Continuaram a usar a cozinha durante dois dias e só depois chegou a equipa de desinfestação. Agora temos formigas. Fazem desinfestações com alguma regularidade, mas não são suficientes.”
Ao nível da despensa e da gestão da mesma impera o racionamento. “Muitas vezes, no turno da noite não há comida porque fecham tudo à chave”, prossegue a funcionária. Quem tiver apetite, paciência. Caso os utentes peçam uma sopa ou pão extra ouvem sempre a mesma resposta: simplesmente não há.
A situação foi denunciada à Autoridade de Segurança
Alimentar e Económica (ASAE) em 2017 e reencaminhada às autoridades de Saúde porque, à época, o tema da denúncia era outro: uma epidemia de sarna, “cuja competência não se encontra atribuída à ASAE”, explicou à SÁBADO fonte oficial do organismo. A SÁBADO tentou confrontar a administração do lar com estes problemas, mas até à hora de fecho desta edição aquele órgão manteve-se incontactável.
Cantinas de lares lideram taxa de incumprimento
Se pensa que já conhece os meandros negros dos refeitórios pelas denúncias recentes dos escolares, mude de ideias. “Nos lares há casos mais graves do que nas escolas. O sindicato tem procurado intervir para que as condições melhorem”, alerta à SÁBADO Francisco Figueiredo, dirigente sindical do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte. O problema é quantificável pela taxa de incumprimento registada pela ASAE (29%, em 2017), mais 12% da que se verifica no contexto das escolas e 10% acima do mesmo indicador nos hospitais. “Realmente a parte dos lares tem um índice de denúncia superior ao das escolas. Não se actua, apenas e só, a reboque da denúncia A ou B. Há planeamento. Num determinado momento decidimos fazer uma operação nacional”, reitera à SÁBADO o inspector-geral da ASAE, Pedro Portugal Gaspar.
Esse momento aconteceu em Novembro passado, quando a entidade mobilizou 70 inspectores por dia para fiscalizarem 120 lares. “Tendo sido instaurado um processo-crime por géneros alimentícios avariados e 16 processos de contra-ordenação, destacando-se como principais infracções o incumprimento dos requisitos gerais e específicos de higiene, a falta de inspecção periódica à instalação de gás e a falta de licenciamento para a actividade”, lê-se no comunicado divulgado no dia 25 daquele mês.
A irregularidade mais grave detectada num lar da região Norte, em Vila Real, resultou na apreensão de 372 quilos de carne imprópria para consumo. O inspector responsável pela delegação da ASAE no Porto, Vítor Serra, não se mostra surpreendido à SÁBADO: “Já em Maio de 2017 havia sido suspensa a actividade de duas cantinas, uma em Lamego e outra em Vila Real, por grave falta de higiene.” A juntar a este incumprimento, por vezes detectam outro – sintomático do atraso dos meios rurais: a falta de ligação à rede pública de abastecimento de água, “sendo utilizada a do poço ou furo, sem qualquer sistema de desinfecção ou controlo analítico”, explica Vítor Serra.
Acrescem as pragas, que invadem uma residência sénior da área metropolitana do Porto. As baratas persistem até hoje. Os ratos e os dejectos deles não se avistam há um mês. Uma funcionária deste lar relata à
SÁBADO como foi a caça aos roedores que há mais de um mês não visitam a casa: “As colegas da cozinha andaram atrás deles com vassouras, mas eles enfiaram-se nos forros dos sofás do refeitório. Descobrimos que desciam pela chaminé, ao lado da sala de estar.” Na cozinha fazem-se malabarismos para fazer render a comida: é comum juntarem óleo ao azeite, provocando azia aos utentes. As batotas passam ainda pela sopa, que leva farinha para engrossar; pelo óleo usado dezenas de vezes; ou pelo reaproveitamento dos pastéis. “Fizeram pastelões de sardinha. Como sobraram, congelaram. Tiraram do frio, voltou a sobrar e congelaram de novo. A qualidade diminuiu bastante quando mudaram para uma empresa concessionada.” À ementa intragável junta-se a pasta tipo ração, servida num lar de aparência insuspeita numa freguesia da Maia. A filha de uma utente queixa-se à SÁBADO que a alimentação dos idosos “era à base de água, farinha e pão”. A sopa era uma raridade, assim como a fruta fresca (só tinham a versão enlatada).
No fundo das arcas frigoríficas de alguns lares do Norte há quem guarde reminiscências de comida – e deixe acumular muito, mas muito gelo. As fotos a que a SÁBADO teve acesso, através de fiscalizações da
NUM LAR DA MAIA, A ALIMENTAÇÃO ERA À BASE DE ÁGUA, FARINHA E PÃO. A SOPA ERA UMA RARIDADE NOS LARES DE IDOSOS HA CASOS DO QUE NAS ESCOLAS
ASAE, mostram um tabuleiro com aquilo que era suposto ser pato cozido para fazer arroz (apreendido no início de 2017); ou lulas queimadas pelo processo irregular de congelação, quase putrefactas (2016); ou ainda um frango congelado e esverdeado (2016). Nas cozinhas e dispensas de outros lares da zona Centro, as imagens mostram erros grosseiros de armazenamento: leite, vinho, cereais e outros géneros alimentares convivem lado a lado com um monte de roupa suja (2015). Quatro arcas congeladoras de um lar (com 75 residentes e apoio domiciliário a outros 65) conseguiram a proeza de ainda surpreender a inspectora-directora da unidade regional do Sul, Ana Moura, no terreno há 25 anos. Em Outubro de 2016, a ASAE deparou-se com uma enorme quantidade de carne de porco e de ovino (750 quilos). Descobriu que tinha sido abatida ilegalmente, sem respeito pelas regras sanitárias. O proprietário do lar tinha também uma exploração agro-pecuária e conciliava ambos os negócios. “Se não existe nada documentado, a nossa proposta será no sentido de serem destruídas. Após a perícia, as carnes foram destruídas por determinação do Ministério Público”, explica a responsável. Um colega do Norte, Vítor Serra, enumera os ilícitos mais frequentes deste tipo de cantinas: além da falta de higiene e da não implementação de procedimentos de segurança alimentar, soma-se a falta de inspecção das instalações de gás. “Podem colocar em risco quer a saúde dos utentes, quer a segurança das instalações.”
Idosos obesos e desnutridos
Tratando-se de uma população de risco, particularmente vulnerável pela avançada idade e pelo sistema imunitário mais debilitado, os cuidados alimentares devem ser redobrados. Não é de agora que a ASAE detecta o não cumprimento dos mínimos exigidos por lei. A partir de 2006, quando António Nunes liderou o organismo (até 2013) percebeu que os problemas estruturais das cozinhas dos lares passavam pela falta de profissionalização. “Muitas vezes funcionam em regime de voluntariado, o que condiciona muito a formação. A maior parte das questões que se levantavam na altura eram com o cumprimento de regras básicas como o uso da touca; a separação entre peixe, carne e vegetais; e a exiguidade das cozinhas”, conta o ex-inspector-geral à SÁBADO.
Os pratos de qualidade duvidosa chumbaram no-
vamente em Abril de 2009, aquando de uma avaliação feita pela Proteste. Entre os 20 lares inspeccionados, detectaram alguns menus com sal a mais; e outros desequilibrados ao nível nutricional (fritos recorrentes e comidas pesadas). “A sopa era servida diariamente, mas pouco variada. As ementas eram desadequadas a esta faixa etária: devem ser alimentos mais facilmente mastigáveis; deve haver mais peixe do que carne e pratos leves”, explica à SÁBADO a coordenadora Técnica Alimentar na Deco, Dulce Ricardo.
Nove anos depois desta investigação, ainda há muito por fazer. O panorama da restauração nos lares é “alarmante”, classifica à SÁBADO a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Alexandra Bento. Argumenta com três estudos nacionais, realizados no ano passado; um da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e dois da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto. Os resultados do primeiro levantamento estatístico apontam para a prevalência de desnutrição de 4,8% nos idosos institucionalizados e de 0,6% nos não institucionalizados. O risco de isso vir a acontecer é de 38,7% nos utentes de lares e de 16,9% nos idosos que estão em casa, segundo o mesmo estudo. Mais um sinal de alerta foi lançado em 2017, pelo Inquérito Alimentar Nacional e de Actividade Física: 39,2% dos idosos são obesos.
A comida de hospital tem fama justa?
Perante este quadro, a bastonária espanta-se com o facto de os lares ainda não terem nutricionistas. “Uma ementa para idosos não deve ser igual à das crianças ou dos doentes. É fundamental que tenham uma alimentação saudável. Não podemos permitir que um idoso esteja em risco de desnutrição. As pessoas neste estado têm maior risco de contrair doenças, de infecção, de má cicatrização de feridas e de morte prematura”, diz.
A DESNUTRIÇÃO ATINGE 4,8% DOS IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS E 0,6% DOS QUE ESTÃO EM CASA EM LARES DO CENTRO HAVIA VARIOS ALIMENTOS AO LADO DE ROUPA SAJA
Se há comida com fama de insípida é a de hospital. Seria um mal menor se os pratos com falta de sal viessem de uma cozinha irrepreensível. Mas nem sempre é assim, apontam fontes sindicais do sector à SÁBADO.
Num hospital da zona Centro o momento é de impasse. Os representantes dos trabalhadores desta cozinha, de onde saem 1.500 refeições por dia, manifestam uma insatisfação crescente pelos equipamentos obsoletos (alguns com cerca de 30 anos). Há tampas de panelas que não vedam; os porta-paletes exigem esforço a puxar; as máquinas de lavar loiça, quando funcionam, libertam água e detergente, a ponto de os funcionários estarem sempre a escorregar e correrem riscos ao nível das vias respiratórias. À lista de queixas acrescentam o pavimento em mau estado, que não é antiderrapante como deveria ser; as câmaras de frio constantemente avariadas e à espera de reparação por demasiado tempo; e os carros de transporte de alimentação degradados.
As reclamações das más condições de trabalho constam de um documento, entregue ao conselho de administração no fim de Novembro. Os cozinheiros de várias categorias deste serviço e outros funcionários – despenseiros, chefes de copa, pasteleiros, etc., com remunerações mensais entre os 536 e os 792 euros – pedem uma intervenção de fundo e urgente. “Se nada for feito e os equipamentos continuarem a funcionar mal, há perigo de servir comida com detergente ou contaminada”, diz uma fonte hospitalar à SÁBADO.
O conselho de administração assegura à SÁBADO que está “ciente das condições” e irá tomar medidas adequadas. O orçamento das obras está previsto e a reunião com os interlocutores – a direcção do sindicato – marcada na agenda (início de Fevereiro). “A renovação das instalações e dos equipamentos encontra-se estimada em cerca de 7 milhões de euros. É um procedimento que, pelo valor, é complexo, atendendo também às limitações orçamentais. No entanto, estamos a analisar várias soluções possíveis considerando a situação prioritária”, avançaram os responsáveis numa resposta por email.
Em meados de Dezembro, os funcionários de uma cozinha de um hospital da região Oeste preparavam-se para servir a sopa aos utentes, como de costume ao meio-dia. Não contavam com a chegada de dois inspectores de uma unidade regional da ASAE, que suspendeu logo o serviço. O espaço onde operavam era provisório há 19 anos e multiplicavam-se os problemas. As paredes não estavam devidamente revestidas com material lavável; as manchas de bolores acumulavam-se nos tectos; aqui e ali havia poças de água no chão, resultantes de depressões extensas e profundas no pavimento. Desde então, está encerrado. “As
NUM HOSPITAL HÁ TAMPAS DE PANELAS QUE NÃO VEDAM; AS MÁQUINAS DE LAVAR LOIÇA LIBERTAM ÁGUA
pessoas têm de perceber que as instalações onde os alimentos são confeccionados podem afectar gravemente a qualidade dos produtos”, diz à SÁBADO a inspectora-directora do Sul, Ana Moura.
As refeições são agora preparadas numa cozinha da empresa adjudicada, distante do hospital. A SÁBADO apurou que há reclamações de utentes e tentou sem sucesso obter uma posição do conselho de administração. Comer com talheres de plástico e pratos descartáveis – ainda que temporariamente, enquanto decorrem as obras – não é fácil para quem está doente. Há garfos que se partem a cortar um bife duro e copos de plástico em risco de derreterem com chá quente. Quanto à comida é uma questão de sorte: tanto pode ser saborosa como intragável (caso de um peixe que não se sabia se era cozido ou estufado devido ao sabor indecifrável).
Ministério da Educação atento
Depois da lagarta viva encontrada num prato, da sopa com sabor a café e tabaco ou dos rissóis por fritar o que se espera das cantinas escolares? Mais controlo, mais regulação e mais monitorização, responde à SÁBADO fonte oficial da tutela.
No fim do ano, o Ministério da Educação implementou um despacho (nº 10.919/2017, Plano Integrado de Controlo da Qualidade e Quantidade das Refeições Servidas nos Estabelecimentos de Educação e Ensino Públicos) que prevê um reforço de monitorização.
Dito de outra forma, após os recentes escândalos o Ministério passou a dar enfoque às cantinas e os efeitos fizeram-se notar quase de imediato. “Com o plano de monitorização, as queixas diminuíram drasticamente. Nas últimas semanas, não apareceram situações significativas”, diz à SÁBADO Alberto Santos, do conselho executivo da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP).
Neste campo, a confederação compromete-se a ser parceira de controlo mas depara-se com um poderoso obstáculo: as empresas concessiona-
A RENOVAÇÃO DE UMA COZINHA HOSPITALAR ESTÁ ESTIMADA EM 7 MILHÕES DE EUROS
das que dominam o mercado. “Sabemos que em nome da rentabilidade há maleabilidade de critérios”, acrescenta o responsável. Ou seja, se os preços descem, a qualidade sai prejudicada. Os números são elucidativos do crescimento do sector: em pouco mais de 1.000 cantinas escolares, há 776 concessionadas, a maioria na zona Norte e Centro. O preço-base das refeições fornecidas por estas empresas de outsourcing varia entre €1,18 e €1,42, enquanto nas cantinas de gestão directa o valor sobe para €1,68. “É uma diferença considerável que permite que estas cantinas tenham mais qualidade”, avalia Alberto Santos.
Baratas às ninhadas
Ainda há muito para fazer. Os resultados da última fiscalização de âmbito nacional da ASAE, divulgados a 28 de Dezembro, atestam-no. Das 129 escolas inspeccionadas, foram instaurados 23 processos de contra-ordenação, “destacando-se como principais infracções o incumprimento de requisitos gerais e específicos de higiene, a inexistência de processos baseados nos princípios do HACCP [análise de perigos e controlo de pontos críticos] ou a deficiente implementação e a falta de inspecção periódica à instalação de gás”, lê-se no comunicado. A inspecção decorreu durante as férias de Natal, para não prejudicar o funcionamento das escolas e garantir que neste semestre as coisas corram melhor nas zonas do País que se revelaram mais críticas: Coimbra, Santarém e Lisboa.
Mas foi na zona Oeste que houve um caso de contornos surreais, em finais de 2015. Daí estar presente na memória da inspectora-directora Ana Moura. Havia baratas, muitas, às ninhadas, e já não circunscritas à cantina. É certo que os insectos procuram áreas quentes, perto das máquinas de café ou de fogões; portanto limitaram-se a acompanhar a trajectória dos fornos para outras salas. Isto porque a cozinha tinha sido alvo de uma suspensão de actividade pela ASAE até que a praga fosse debelada. “Estávamos longe de imaginar que iriam transportar os equipamentos para outro espaço”, conta a responsável. A ASAE, a escola e os serviços municipalizados juntaram esforços para controlarem a situação. Só ao fim de dois meses ficou resolvida.
HÁ COPOS DE PLÁSTICO QUE CORREM O RISCO DE DERRETER COM O CHÁ QUENTE