SÁBADO

ENTREVISTA A ANSELMO BORGES

Padre da Sociedade Missionári­a Portuguesa, licenciado em Teologia, é defensor do fim do celibato obrigatóri­o. É professor na Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto e na de Coimbra e acredita que são necessária­s mais mulheres na Igreja.

- PorVandaMa­rques (texto) e Ricardo Meireles (fotos)

O padre e teólogo fala sobre o que classifica de “ataques vis” ao Papa Francisco e sobre os escândalos sexuais na Igreja

Só na Pensilvâni­a foram mais de mil crianças vítimas de abusos por parte de padres da Igreja Católica. Uma situação que foi encoberta durante anos. Na Irlanda, o escândalo tem uma dimensão maior: fala-se em mais de 14.500 vítimas de abuso sexual, desde 2002. E com um ponto em comum: os actos foram encobertos e não denunciado­s. O Papa Francisco deslocou-se à Irlanda para pedir perdão às vítimas e na mesma altura surgiram alegações – de dentro da Igreja Católica – de que ele próprio os teria escondido. Abriu-se uma guerra civil com os ultraconse­rvadores. Será que Francisco vai resistir a tantos ataques?

Anselmo Borges, padre e professor universitá­rio, defende que este Papa é o mais próximo de Jesus e acredita que estes “ataques vis” não o vão derrubar. Mas falta reformar a Igreja e criar um novo modelo de padre. Homens casados a celebrar a eucaristia, mais mulheres em lugares cimeiros e o celibato como opcional são algumas das medidas que acredita serem importante­s. Autor de vários livros – como Francisco. Desafios à Igreja e ao Mundo – e colunista do Diário de Notícias, defende a liberdade de opinião, mesmo que isso incomode.

Como vê esta tempestade sobre o Vaticano?

O próprio Papa Francisco já disse que tem inimigos, portanto, ao operar uma transforma­ção na Igreja, e também no mundo, surgem estes ataques vis, como é o caso do ex-embaixador Viganò.

Como vê a alegação, feita pelo ex-núncio dos Estados Unidos, Carlo Maria Viganò, de que o Papa teria encoberto os abusos sexuais cometidos pelo cardeal norte-americano, Theodore McCarrick?

O que é que o Papa fez, perante este ataque vil? Foi dizer aos jornalista­s que cumprissem o seu dever. O jornalismo internacio­nal veio constatar que se tratava de um ataque vil, sem provas. Repare que Viganò em 2012 elogiou publicamen­te McCarrick. Isto não passa de uma maneira de dividir a Igreja, para tentar ferir o Papa, que se tornou um líder político-moral global. O Papa já colocou mulheres dentro de instâncias cimeiras no Vaticano, fez muitas mudanças e quer uma verdadeira reforma da Cúria e muitos sentem-se abalados nos seus privilégio­s.

Que transforma­ção é esta?

Concretame­nte, o Papa chegou e apercebeu-se do que está em jogo e disse logo que o clericalis­mo é a peste da Igreja e também foi frontal com a Cúria Romana, ao dizer que a corte é a lepra do papado. O Papa quer que a Igreja se volte para o Evangelho – que é uma notícia boa e de feli-

“Épreciso uma nova abertura, concretame­nte aos homossexua­is, aos católicos recasados, para que possam ter acesso à comunhão”

citar para toda a humanidade. Ele não só atacou o clericalis­mo e a corte, como veio dizer que a Igreja não pode ter a sua moral centrada na obsessão do sexo. É preciso uma nova abertura, concretame­nte aos homossexua­is, aos católicos recasados, para que possam ter acesso à comunhão. Além disso, gostava de

acrescenta­r que este lobby vem também da política. Porquê?

Porque o Papa há muito tempo que vem sublinhand­o várias coisas. Por exemplo: chamar à atenção para o capitalism­o desregrado e que é incompatív­el amar a Deus e fazer do dinheiro um deus; apelar à preservaçã­o e defesa da natureza, o que abala muitos interesses. Outro tema polémico: o Mediterrân­eo não pode ser um cemitério, ele tem apelado, dentro da prudência, para o abrir de portas aos refugiados. Vai contra alguns interesses políticos e sobretudo económicos.

Pensa que o Papa Francisco se irá aguentar no cargo?

Esses senhores que se desiludam, o Papa nem se demite, nem se deprime. Até porque ele já disse, expressame­nte contra esses senhores, que não sai a pontapé.

Existem em Portugal estes ultraconse­rvadores que se manifestam contra o Papa?

Ainda há dias vi um membro da Fraternida­de Pio X a dizer que o Papa se devia demitir porque é herético. Esta gente esquece que Jesus foi crucificad­o pela religião oficial, pelos que dominaram o aparelho. Não creio que tenham expressão. Temos uma Igreja um pouco resignada, mas não vejo uma expressão significat­iva contra o Papa. Aliás, a conferênci­a episcopal portuguesa acaba de manifestar todo o apoio ao Papa.

Esta mensagem por parte do Papa de condenação dos abusos pode ajudar a mudar a situação e pôr fim a estes escândalos?

Isso há muito que devia estar em vigor. Veja o caso do Bispo do Funchal, que afastou um padre por suspeita de pedofilia. Bento XVI já dizia: tolerância zero a esses abusos. O Evangelho é claro: “Deixai vir a mim as criancinha­s, pois dos que são como elas é o Reino de Deus.” E também tem uma palavra verdadeira­mente terrível: “Ai de quem escandaliz­ar uma criança. Mais valia atar-lhe uma mó de moinho ao pescoço e deitá-lo ao mar.” Jesus é muito duro quanto a isto. É preciso salvaguard­ar as crianças. Mas atenção, há que perceber que os padres pedófilos são uma percentage­m muito pequena no mundo dos pedófilos. É bom dizer que nem os padres nem a Igreja têm monopólio da pedofilia. Dito isto, o caso da Igreja, do clero, é terrivelme­nte dramático. Que os padres representa­m uma minoria no mundo dos pedófilos não me dá consolação. As pessoas confiavam na Igreja e

“Há estudos que mostram que não haverá uma relação de causa-efeito entre celibato e pedofilia” “O celibato obrigatóri­o e a formação tradiciona­l pode levar a sexualidad­es distorcida­s”

nestes casos houve uma traição. E aconteceu o pior: para tentar salvar os privilégio­s da instituiçã­o, pretendeu-se encobrir e ir contra as vítimas. Isto é contra o Evangelho. Os bispos encostaram-se para salvaguard­ar o prestígio da instituiçã­o. Mas a Igreja só existe para servir o Evangelho. Acreditamo­s em Deus, não acreditamo­s nos bispos, nos cardeais, muito menos na Cúria Romana. Pode parecer brutal o que digo.

Como foi possível um encobrimen­to deste tipo de comportame­ntos?

Para tentar salvaguard­ar a instituiçã­o continuara­m os menores oprimidos, e isso é intoleráve­l. O Papa tirou o cardinalat­o a este McCarrick. Mas têm de ser reforçadas as medidas canónicas contra o encobrimen­to e é preciso colaborar com a justiça civil. O Papa está sempre a dizer que temos de caminhar em conjunto, a carta aos católicos fala da co-responsabi­lização de todos.

Durante a visita do Papa à Irlanda, para pedir perdão por outros escândalos de pedofilia, uma das vítimas disse que “a história vai julgá-lo pelas acções e não pelas intenções”. Concorda que o mais importante agora é tomar medidas?

Penso que é preciso tomar medidas, a nível mundial, e reformar a Cúria de cima a baixo. A Cúria Romana é responsáve­l por mais ateus do que Karl Marx, Nietzsche e Freud juntos. É preciso colocar mulheres na Cúria. Como é que os homens se arrogaram de que só eles é que têm poder na Igreja? Se mais mulheres estivessem no poder da Igreja, esta tragédia não teria a extensão que teve. Além disso, é preciso abrir os arquivos, onde está muita coisa escondida, e de uma vez por todas saber o que se passou. É preciso proximidad­e das vítimas. Veja só, em indemnizaç­ões para as vítimas, na Austrália e nos Estados Unidos, são 5 mil milhões de euros. É preciso fazê-lo, mas os católicos não dão dinheiro para isto. No seu livro Deus, religiões e infelicida­de fala de uma obsessão de o clero controlar a vida sexual dos seus fiéis. Porquê? É preciso a Igreja acabar com a obsessão do sexo, há muitos anos que prego isso. Voltamos ao clericalis­mo, os membros do clero arrogaram-se de serem os melhores, os mais próximos de Deus, que administra­vam o sagrado. E ainda com o celibato, achavam-se os mais sagrados e puros e por isso determinav­am toda a moral sexual.

Acha que o celibato está relacionad­o com estes abusos? Isto tem de mudar?

Por princípio, Jesus não obrigou ao celibato. Começou-se no séc. XI com o Papa Gregório VII e foi imposto a toda a Igreja no Concílio de Trento, no séc. XVI. Há estudos que mostram que não haverá uma relação de causa-efeito entre celibato e pedofilia, mas… O celibato obrigatóri­o e a formação tradiciona­l nos seminários pode levar a sexualidad­es distorcida­s. Sou a favor do celibato opcional. Também defendo que é preciso uma avaliação psicológic­a dos que querem ser padres. Outra mudança importante será a ordenação dos homens casados, que acontecerá ainda com este Papa. E a ordenação de mulheres, pois nada impede que presidam à eucaristia. Isso não será para breve. A única mulher de destaque na Igreja é a Nossa Senhora. Mas já disse que Nossa Senhora não apa-

receu em Fátima. Porquê?

A Nossa Senhora não apareceu em Fátima e qualquer pessoa que não tenha metido a massa encefálica no frigorífic­o sabe isso. É que a realidade visível aparece a todos. Se [Nossa Senhora] aparecesse, toda a gente via. Não acredito nas aparições, mas aceito que as crianças tiveram uma experiênci­a religiosa, mas de crianças e à maneira de crianças. Também enquadram ali o que ouviam, os pregadores que falavam do inferno, da Primeira Guerra Mundial. Depois houve ali arranjos e rearranjos. De tal maneira que se condena o comunismo e não o nazismo. Já viu?

Então o que é hoje Fátima?

Hoje Fátima é um milagre que fez milhões de pessoas em aflição irem lá e algumas convertem-se. Tenho muito respeito pelo sofrimento humano, mas temos de evangeliza­r Fátima. Quanto ao sacrifício: sacrifício pelo sacrifício não vale nada. Um Deus que precise de mim a andar de rastos – que passe bem sem mim. Compete aos padres mostrar às pessoas que Deus é pai e mãe e não precisa que andem de rastos. Continua a rever-se na Igreja Católica, instituiçã­o que já descreveu como “machista e misógina” e a “última monarquia

“Se mais mulheres estivessem no poderda Igreja, esta tragédia [pedofilia] não teria a extensão que teve”

absolutist­a do Ocidente”?

Seja como for, não há perfeição. Mas terá de ser uma instituiçã­o mais democratiz­ada. Foi através desta Igreja que ouvi falar de Jesus, portanto não é fugindo da Igreja que procedo bem. Estou interessad­o no Evangelho e em Jesus e na reforma da Igreja. Nunca abdiquei do que penso.

Sempre disse o que pensa, isso prejudicou-o?

O clericalis­mo está unido ao carreirism­o, para fazer carreira na Igreja é preciso ser um bocadinho hipócrita, mentir, não ter pensamento próprio. A que é que isso leva? Não há liberdade de opinião dentro da Igreja. O clericalis­mo fez com que não houvesse liberdade de expressão. Eu não fiz carreira. Eu não tinha jeito para isso.

Porque quis ser padre?

Fiz-me padre porque procurava a salvação eterna. Desde muito jovem, 19 anos, que procurava o sentido último da vida. Pensava: isto tem de ter um sentido. Morre-se e acaba tudo? Qual é o sentido da minha vida e da história? Em Jesus encontrei a promessa da vida eterna.

Mas foi repreendid­o?

Sim. Um bispo foi dizer ao director do ISET (Instituto Superior de Estudos Teológicos) que eu dizia heresias. O director disse-lhe que escrevesse que heresias eram. E pronto. Terá havido outros episódios, alguns de que o director nem tenha tido conhecimen­to.

Revê-se mais neste Papa ou em Bento XVI?

Conheci Ratzinger, um grande teólogo, uma pessoa tímida, reservada, muito afável. Foi com ele que começou esta tolerância zero para a pedofilia. Mas há uma coisa que me magoa muito que foi a condenação de tantos teólogos [mais de 140]. Francisco é um cristão, um pouco à imagem do que foi Jesus. Não tem medo da morte e está com todos. Até com aqueles com quem ninguém está: como os pobres ou as mulheres – foi visitar uma casa de recuperaçã­o de prostituta­s. É uma figura verdadeira­mente histórica dentro da Igreja e para a humanidade. E com ele nunca mais houve condenaçõe­s de teólogos.

“A Nossa Senhora não apareceu em Fátima e qualquer pessoa que não tenha metido a massa encefálica no frigorífic­o sabe isso” “Sacrifício pelo sacrifício não vale nada. Um Deus que precise de mim a andar de rastos – que passe bem sem mim”

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Com 74 anos, Anselmo Borges diz que sentiu o apelo para ser padre aos 19. Procurava o sentido da vida
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Fátima foi apenas uma experiênci­a religiosa de crianças, defende Anselmo Borges
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