Ensino A polémica recomendação europeia sobre os manuais de História
A ECRI pediu que os livros de História englobem a escravatura e o colonialismo. Detalhe: reconhece que nem olhou para eles. E há quem aponte que isso já lá está.
Adúvida de Paulo Guinote, professor de História e autor do blogue A Educação do Meu Umbigo ,é esta: “Parece-me que não devem ter visto os manuais em causa.” A desconfiança é relativa ao último relatório da ECRI (Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância), uma organização do Conselho da Europa, conhecido a semana passada, e que, além do balanço sobre o racismo em Portugal, traz uma recomendação nova: “Repensar também o ensino da História e, em particular, a História das ex-colónias” e incluir o “papel que Portugal desempenhou no desenvolvimento e, mais tarde, na abolição da escravatura, assim como a discriminação e a violência cometidas contra os povos indígenas nas ex-colónias”.
O que não parece bater certo com o que diz Guinote, que lecciona dois anos (o 5º e o 8º) que incluem essa matéria no programa: “Acho estranho. Os manuais contêm referências abundantes à questão do tráfico negreiro, logo no 5º ano, ao transporte dos escravos em condições muito más, à forma como eram explorados no Brasil... Não percebo que manuais consultaram, ou se isso é apenas uma recomendação geral de quem não viu os manuais.”
Aqui, acertou mesmo. A SÁBADO questionou a ECRI sobre que manuais foram consultados e a resposta foi: “A ECRI não avaliou directamente o conteúdo dos livros.” O relatório, respondeu a organização, foi feito com informação recolhida em reuniões durante uma visita a Portugal. O “ensino da História nos manuais foi apontado por algumas ONG como um motivo de preocupação”. Questionada sobre quem esteve na delegação e em que ONG em concreto, a ECRI respondeu que não pode divulgá-las devido a “regras de confidencialidade”.
Guinote continua perplexo: “Eu fiz manuais no passado, há muito tempo, e já nessa altura tudo isso era tratado. Nas metas do novo Governo há referências bem explícitas a essas questões. Não entendo esta polémica a não ser num contexto em que vivemos agora de um aterrador politicamente correcto. Qualquer coisa serve para fazer uma recomendação...” E tem outra crítica: “O eurocentrismo existe para o bem e para o mal. No caso do 9º ano, por exemplo, destaca-se muito, e bem, a violência nazi e soviética, de Estaline, mas fica completamente oculta a questão chinesa, que é um extermínio bastante violento, o racismo japonês em relação aos chineses e são eliminadas as ditaduras não europeias. E isso é uma forma de eurocentrismo tão grande como a outra de centrar a História só na Europa. Pol Pot existiu, Bokassa existiu, Mao Tsé-Tung existiu, mas esses não constam. Também não falamos, nos manuais, do canibalismo das populações indígenas. A violência é a europeia.”
Mas o que é que está então nos livros? Alguns exemplos avulsos, de vários manuais: “Aos escravos, depois de adquiridos pelo seu proprietário, era exigido muito trabalho. Chegavam a trabalhar 18 horas seguidas, em tarefas pesadas (...). A forma cruel como eram tratados fazia
“PARECE-ME QUE NÃO DEVEM TER VISTO OS MANUAIS”, DESCONFIOU À PARTIDA PAULO GUINOTE
“PARA SER EQUILIBRADO, DEVERIA TAMBÉM INCLUIR O PAPEL DOS AFRICANOS NA ESCRAVATURA”, APONTA JOÃO PEDRO MARQUES
com que se revoltassem e fugissem para o interior. Quando eram apanhados, marcavam-nos com um ferro em brasa nas costas.” (História e
Geografia de Portugal VI, editora Raiz); “Uma das coisas que se vêem hoje no mundo, e nós pelo costume de cada dia não admiramos, é a transplantação imensa de gente e nações negras de que de África continuamente estão passando para esta América” (excerto dos Sermões do Padre António Vieira, em Viagem na
História 8, Areal Editores); “Os países colonizadores, numa atitude de racismo, forçavam os povos colonizados a aceitar os seus modelos culturais, que consideravam mais desenvolvidos”
(Viagem na História 9, Areal). João Pedro Marques, historiador e o mais influente especialista português em escravatura, também critica a exigência do ECRI e aponta à duplicidade de critérios: “Para ser uma visão equilibrada, deveria incluir o papel que os africanos desempenharam no desenvolvimento e mais tarde na abolição da escravatura. Onde é que está a exigência de que os manuais escolares abordem também esse papel dos africanos? Não está. Na região do Norte da Nigéria, em escravatura de plantação, deverão ter existido cerca de 4 milhões de escravos. Não falamos disso.” E vê uma tendência de “demonização dos povos ocidentais. Foi o homem branco que inventou a escravatura? Houve dezenas de formas de escravatura. A coisa mais específica desta é mesmo a sua abolição. Durante milénios, ninguém a pôs em causa, a não ser, a partir de finais do século XVIII, os europeus”. E acha a sugestão externa abusiva: “É chocante que estas entidades supranacionais se considerem autorizadas a dizer o que é que um povo deve considerar que é útil e necessário transmitir como educação histórica aos seus cidadãos. A História é importante para criar cidadania e uma ideia de pertença a uma comunidade. Quem são estas pessoas para vir dizer o que deve caber nessa mensagem?”
De resto, enquadra a sugestão numa “ideologia corrente” e no mesmo tipo de polémica que envolveu a nomeação do ex-museu das Descobertas (que vai chamar-se “A viagem”). Recorda um episódio: “Recentemente fui convidado para dar uma aula na Universidade Nova, sobre escravatura. Quem me recebeu explicou que não tinham podido fazer grande publicidade da mesma, porque recentemente tinham feito um colóquio sobre a expansão portuguesa. À porta havia, simbolicamente, uma pequena caravela.” Alguém queimou a caravela.
A crítica, contudo, não é unânime – o tema divide opiniões. Miguel Monteiro de Barros, presidente da Associação de Professores de História, subscreve a sugestão do ECRI: “Durante demasiado tempo vigorou a ideia de um ‘país de brandos costumes’ que se insinuou, também, na forma como se ensinava (e ainda ensina) a História de Portugal.” O relatório, diz, “toca em pontos sensíveis da narrativa que se tornou omnipresente e aceite pela maioria da população portuguesa”.