SÁBADO VIAJANTE

Ser ou não ser?

Um vinho pode ser muitas coisas, mas o que é e deixa de ser depende, mais do que do vinho em si, do provador: quanto mais (e melhor) procuramos, mais ele se deixa encontrar

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Um distinto grupo de U escanções discutia, à mesa, o caráter do magnífico rosé que cintilava nos copos: o São Luiz Winemaker’s Collection Tinto Cão, da Kopke, que não hesitamos em recomendar a fãs da exuberânci­a do Douro. Elencavam-se as suas caracterís­ticas – a frescura, notas de flor branca, fruta tropical, citrinos, um toque herbáceo – até chegarmos a um termo com que qualquer entusiasta pelo mundo do vinho já se cruzou: “mineral”.

Estava instalada a discussão. “Não há consenso sobre a palavra ‘mineralida­de’”, dizia um, “porque chegou-se à conclusão de que a raiz da videira não absorve os minerais da terra”, motivo pelo qual, em algumas das maiores certificaç­ões internacio­nais de vinho, como o Court of Master Sommeliers, não se pode hoje dizer que um vinho é mineral (incidental­mente, um dos termos mais utilizados pelos enófilos portuguese­s), ainda que sejam evidentes sensações olfativas como pedra molhada, grafite, terra ou pólvora em certos vinhos. Significa isso que essas notas, afinal, não “existem” no vinho?

A cisão era interessan­te, mas demorou a ocorrer-me a bizarria desta questão. De todos os, aparenteme­nte incompatív­eis com o universo das uvas, termos utilizados para descrever vinho, porque é que haveríamos de implicar justamente com a mineralida­de? Certamente as raízes das videiras portuguesa­s também não absorvem os aromas a petróleo (estaríamos perante uma importante descoberta), tabaco ou resina, opi“o niões tão válidas em contexto de prova como os mais convencion­ais apontament­os de citrinos, maçã ou frutos vermelhos.

Muito disto funciona, é claro, por força da sugestão. Recordo-me de uma prova em que me foi apresentad­o um tinto como nosso pimento-verde”. Ao provar, lá estava ele: um absoluto e incontorná­vel caráter de pimento-verde. Teria descoberto esse caráter se ele não me tivesse sido sugerido? Talvez não. Mas isso significar­ia que ele não estava lá? Se consultarm­os o dicionário do vinho de António Maçanita, descobrimo­s que o pimento-verde é um aroma primário vegetal caracterís­tico de castas como o Cabernet Sauvignon, e derivado da presença da pirazina no vinho – pouco, na verdade, para quem não o sentiu no paladar.

O facto é que, mais do que uma prática de exemplar perceção sensorial, a degustação é um desafiante exercício de memória. Mais tarde, nessa mesma mesa de almoço, falava-se de como uma das estratégia­s para melhor provar vinho é habituar-se a cheirar os frutos e vegetais frescos do supermerca­do, ou as folhas e flores do jardim. Desta forma, quando damos um trago e sabemos do que vamos à procura (notas de frutas, de madeira, vegetais e até, imagine-se, “minerais”), a memória olfativa é ativada, exatamente como aconteceu quando me foi referido o tal “pimento-verde” – que, em miúdo, costumava cortar e levar ao forno aos fins de semana, para ajudar a minha mãe nos almoços de família.

Pouco a pouco, um novo mundo de sensações revela-se diante dos nossos narizes: as especiaria­s da Touriga Nacional, a menta e pimenta-preta do Syrah, o cunho vegetal do

Arinto de Bucelas ou, de facto, o petróleo de algum Riesling. Ou seja: o que antes não estava lá, passa a estar. ●

Mais do que uma prática de perceção sensorial, a degustação é um desafiante exercício de memória

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O São Luiz Winemaker's Collection Tinto Cão é um elegante rosé com notas de citrinos, flor branca e goiaba. Mas será que essas notas estão mesmo lá?
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