FILMES CURTOS, NOITES LONGAS
FESTIVAL DE VILA DO CONDE E A NOVA GERAÇÃO DE REALIZADORES
Há uma nova geração do cinema português a dar cartas – uma que saiu das escolas de cinema a fazer curtas-metragens, a estreá-las nos mais importantes festivais de cinema e a voltar de lá com os principais prémios no bolso – e um festival, Curtas Vila do Conde, que este ano celebra a sua 25.ª edição, entre 8 e 16 de Julho, com mais filmes e concertos que nunca. Pode não parecer, mas ambos estão intrinsecamente ligados. Pensemos em 2009. João Salaviza ganhou a Palma de Ouro em Cannes com Arena, a sua primeira curta-metragem profissional, e foi a histeria total. Nunca o cinema português tinha conquistado prémios em secções competitivas de um festival como Cannes, Berlim ou Veneza. Menções honrosas, prémios da crítica e outras distinções, sim; o caneco principal? Nunca.
Passados oito anos, em Fevereiro de 2017, quando Diogo Costa Amarante ganhou o Urso de Ouro para a melhor curta-metragem na Berlinale houve surpresa, claro, mas comedida. Não era a primeira nem a segunda vez que uma curta portuguesa ganhava o Urso de Ouro – era precisamente a terceira. Aliás, com a Palma de Ouro para Salaviza, desde
2009 quatro curtas-metragens portuguesas foram premiadas nos principais festivais de cinema da Europa. É que já em 2016 o Urso de Ouro tinha vindo para Portugal na mala de Leonor Teles, que levou a concurso Balada de um Batráquio. O mesmo acontecera em 2012 com Salaviza e a sua curta Rafa, apenas três anos depois de Cannes.
Em Vila do Conde, que já leva 25 anos a dedicar-se a filmes com uma duração inferior a 40 minutos, a acompanhar a evolução deste formato e a ver nascer a primeira geração de realizadores de curtas – a chamada Geração Curtas, de fim dos anos 90 – celebra-se a data com “a maior edição de sempre”, diz ao GPS Nuno Rodrigues, programador do festival desde o início, em 1993. Pretexto para recordar os primeiros tempos.
“Ainda me lembro das primeiras entrevistas, com os jornalistas a perguntarem ‘o que é isso das curtas?’”, refere. “Nesses primeiros anos havia um ar de desconfiança, mas a partir da 4.ª edição o Vila do Conde começa a merecer a atenção de importantes festivais internacionais como Oberhausen e Clermont-Ferrand.” Nesse sentido, aponta Nuno, “o festival abriu portas para o cinema português”, pois passou a ser frequentado pelos programadores de festivais e de secções de curtas de festivais mais abrangentes que vinham conhecer a produção nacional. “Essa primeira geração tinha imensas dificuldades na internacionalização porque existiam nomes como Manoel de Oliveira ou Pedro Costa que eram conhecidos pelo seu cinema, mas não pelas curtas. O formato tinha essa dificuldade: quem são estes realizadores que ninguém conhece?” Nuno Rodrigues refere-se a realizadores que começaram nas curtas “entre 1996 e 1998”, antes de se tornarem referências incontornáveis do cinema português independentemente do formato. Foi o caso de Miguel Gomes (As Mil e Uma Noites, 2015), João Pedro Rodrigues (O Ornitólogo, 2016), Sandro Aguilar (Mariphasa, 2017, que sendo uma longa terá a sua estreia mundial precisamente no Curtas Vila do Conde), João Nicolau (John From,
2015) ou Ivo Ferreira (Cartas da Guerra, 2016). João Salaviza pertence à geração seguinte. A primeira vez que mostrou um filme num festival foi precisamente lá, com a curta Duas Pessoas, ainda era estudante. “Tenho por isso uma relação antiga e de afecto com o Vila do Conde”, diz. Por coincidência, Altas Cidades de Ossadas, a curta com que este ano esteve em Berlim, será o seu primeiro filme a estrear no Curtas.
Altas Cidades de Ossadas é um regresso a este formato depois de Montanha (2015), a primeira longa-metragem de Salaviza, estreada no festival de Veneza. “Há uma relação mais imediata com as curtas que me agrada muito, que é a de não ter de esperar dois ou três anos para sequer saber se vai ser possível filmar”, refere o realizador de 33 anos. “Uma longa tem uma dimensão tão grande, são anos de vida. Montanha começou a ser pensado em 2009... Fui dormir a pensar no filme durante seis anos.” Diogo Costa Amarante, que já tinha estado na Berlinale com o filme As Rosas Brancas, em 2014, recorda que também João Pedro Rodrigues voltou a fazer curtas-metragens quando tinha já uma carreira consolidada no formato maior. “A curta dá espaço à experimentação, a jogar mais com a forma, com o estilo, a criar uma espécie de sensação... é quase como um poema, enquanto uma longa é um registo completamente diferente”, diz ao GPS o cineasta de Oliveira de Azeméis, 35 anos, para quem a curta “não é um degrau para chegar não sei aonde”. Percebe-se pelos seus discursos [de Diogo e de Salaviza] que os dois realizadores têm a curta-metragem como um objecto artístico com uma linguagem própria. Leonor Teles, que em 2016, com 24 anos, se tornou a mais jovem vencedora de sempre da Berlinale, parece concordar: “Para mim não é um meio nem um rito de passagem [para a longa-metragem], é um formato com lugar próprio no cinema e devia ser visto e encarado como tal. Em tão pouco tempo podes conseguir muita coisa, e as curtas têm a particularidade de serem muito livres.” Durante a última edição da Berlinale, em Fevereiro de 2017, a programadora Maike Mia Höhne referiu, em entrevista ao jornal que podia ter seleccionado ainda mais filmes portugueses, mas que não o fez porque, na verdade, não podia ter uma competi-
“AINDA ME LEMBRO DAS PRIMEIRAS ENTREVISTAS, COM OS JORNALISTAS A PERGUNTAREM ‘O QUE É ISSO DAS CURTAS?’”, DIZ O PROGRAMADOR DO CURTAS VILA DO CONDE
ção internacional só com portugueses. Ao GPS, Maike tenta explicar o prestígio e o sucesso (quantificável em prémios) das curtas portuguesas fora de portas. Para isso usa a analogia da onda, como a Nouvelle Vague de Godard e Truffaut. “No fim dos anos 90 surgiu um novo cinema romeno, de estilo realista, e agora está a haver uma onda portuguesa. [O realizador] João Viana é um bom exemplo. Quando ele veio à Berlinale [em 2013] tinha dois filmes com o mesmo material: uma curta [Tabatô ]e uma longa-metragem [A Batalha de Tabatô].”
Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, desconstrói, porém, a tese da onda com uma ideia de desenrascanço face às dificuldades: “Agora o que temos é outra coisa, que vem de uma tradição de fazer cinema em Portugal de uma forma descomplexada, livre e que não tem constrangimentos industriais porque, de facto, não existe um mercado ou uma indústria de cinema.” Também para Diogo Costa Amarante a ausência desses constrangimentos ajuda a explicar este momento: “Há a sensação de que cá se cultiva muito a liberdade e a espontaneidade, e que isso dá origem a filmes que pessoas de outros países até queriam fazer mas que não podem porque têm restrições.” Na mesma linha, Laurence Reymond, da equipa de programação de Cannes, salienta ao GPS que “todos os anos” encontra filmes e realizadores “criativos e originais, mesmo durante os anos da crise”, e que talvez “não seja coincidência que o cinema português pareça reinventar-se constantemente e não tenha receio de correr riscos artísticos. É algo que eu admiro imenso”.