Anne Lacaton
Arquitecta faz habitação social e não gosta do termo
Fala no plural mesmo quando está sozinha, força do hábito de trabalhar há 30 anos em dupla com Jean-Philippe Vassal. As suas construções são inspiradas em estufas agrícolas e gostam de reabilitar sem interferir muito na estrutura original (mesmo quando está em ruínas). Apesar de fazerem sobretudo habitação social, não gostam do termo, nem da carga negativa que acarreta. Anne Lacaton conversou com a SÁBADO depois de ter recebido o Prémio Carreira na Trienal de Arquitectura de Lisboa.
Trabalha com Jean-Philippe Vassal desde 1987. Que balanço faz dos tempos em que sonhavam ser arquitectos até hoje?
Não gosto de olhar para trás. Fizemos muitos projectos e temos a sensação de que todos são um processo contínuo.
Foi difícil começar?
Como a maioria dos novos arquitectos, estávamos cheios de ideias, entusiasmo e optimismo. Aqueles tempos não são como os de agora, eram mais promissores... mas quando somos novos temos a força e a resiliência de achar que tudo é possível. Esse entusiasmo e optimismo ajudou-nos ao longo deste tempo – ainda nos ajuda, porque continuamos a fazer os projectos com a mesma curiosidade.
O que acontece aos projectos que deixam para trás?
Mesmo um que tenhamos esquecido há vários anos pode regressar num novo projecto, porque estamos sempre com uma nova competição em mãos. Quando somos convidados a expor os nossos trabalhos, é interessante vê-los todos alinhados, a seguir uma linha condutora em vez de uma timeline.
Interessa-lhe o modo como as casas vão ser habitadas?
Quando se é arquitecto, e se está a desenhar um projecto, o futuro é o agora e não estamos a pensar como as pessoas devem viver daqui a 20 anos. Pensamos no valor da arquitectura em si e, claro, se durará no tempo. As nossas ideias sobre as condições de vida têm sido sempre as mesmas desde que começámos.
Quais são?
A generosidade do espaço é a principal qualidade da arquitectura. Dar espaço é dar liberdade às pessoas. A arquitectura que restringe só possibilita um modo de vida, e é por isso que nós, pelo contrário, queremos dar espaço e liberdade para que cada um encontre a sua maneira de viver. O princípio da apropriação é muito importante no modo como pensamos a arquitectura: como criar uma casa que integra bem o contexto económico, se é bioclimática, se usa todas as potencialidades das energias renováveis... Ao mesmo tempo, temos o cuidado de não criar demasiadas barreiras a quem a vá habitar.
“O que é mais dramático nas demolições éveras pessoas forçadas a mudar de casa”
Se a arquitectura é liberdade, um muro que divide, como aquele que Donald Trump pretende erguer e outros que foram surgindo na Europa, pode ser considerado uma obra de arquitectura?
É muito difícil comparar os muros políticos que as pessoas criam para separar, mas, numa escala modesta da arquitectura, nós estamos mais interessados em espaços abertos e que não precisam de paredes para serem sólidos, apenas de colunas, de chão e fachadas abertas. Uma parede pode ser útil em arquitectura para sustentar o edifício, mas acaba sempre por separar alguma coisa – ea ideia de separar de forma definitiva um espaço é algo de que não gostamos. Sobretudo quando essa parede ou muro serve para separar um território. Infelizmente, nos dias que correm, a sociedade cria cada vez mais muros e isso é um grande problema. A arquitectura não é um acto isolado e a questão da liberdade, para nós, é muito importante. Critica muito a demolição e defende que a memória do lugar deve ser preservada. A arquitectura, no entanto, pretende mais construir do que preservar. Porque defende a conservação? Somos muito críticos, mas não numa atitude de conservação e preservação. Tem mais a ver com a ideia de manter os elementos do espaço, de um território, daquilo que caracteriza um edifício. Desde que esteja em bom estado, acreditamos que é melhor mantê-lo do que demoli-lo. A demolição é muito negativa e faz sempre uma tabula rasa. Preferimos a ideia de juntar camadas e criar algo novo a partir do que já existe. Não gostamos do princípio de que temos de partir do vazio para a criação de algo. Não é uma posição conservadora, não é uma questão de memória, é uma questão de encontrar a qualidade na junção dos elementos.
Preservar o que está bom...
E preservar o que pode ser bom. Observamos o potencial qualitativo dos elementos que estão obsoletos. É importante partir deste valor e não erradicar tudo para criar algo novo. E as pessoas estão incluídas neste valor, porque o que é mais dramático nas demolições, principalmente nas habitações, é ver as pessoas forçadas a mudar de casa (mesmo quando vivem nela há vários anos).
Os vossos projectos combinam forma, função e economia. De que maneira a crise económica mudou o vosso trabalho?
“O luxo é algo que faz bem, dá prazer, dá conforto. Há muitas coisas improváveis que nos dão essa sensação”
Quando começámos a praticar, muito antes destes tempos de crise, percebemos que controlar os custos e a economia – ou seja, fazer o máximo com o mínimo – era muito importante. E essa foi uma ferramenta para a liberdade. O que é caro nem sempre é o melhor e a qualidade não se prende com o dinheiro gasto. Nos países ocidentais, não costumam olhar para o custo real das coisas. Muitas vezes acredita-se que a arquitectura é para criar projectos e, só depois, é que se pensa nos custos. Nunca nos sentimos satisfeitos com este modo de trabalhar.
Reaprenderam o que foi dado na escola através da experiência?
Tivemos as melhores experiências em África, onde trabalhámos durante cinco anos, logo depois de nos graduarmos. Não havia quase nada e as pessoas faziam muito a partir desse nada. Tinham uma forma inteligente e criativa de reutilizar vezes sem conta os materiais e isso foi, para nós, uma grande lição. O nosso primeiro projecto foi uma casa para uma família com um orçamento muito reduzido, por isso enfrentámos essa questão dos custos cedo. E decidimos que isso não seria um constrangimento: as ambições que tínhamos para esta casa – ser muito ampla, aberta e climatizada – foram cumpridas de forma descomprometida por termos um orçamento muito baixo.
Como?
Trabalhar muito para encontrar soluções e, ao mesmo tempo, manter as ideias. A economia dá-nos liberdade de escolha. Podemos fazer coisas lindas com um orçamento reduzido porque o luxo não é determinado pela relação com o dinheiro. O luxo é algo que faz bem, dá prazer, dá conforto. Há muitas coisas improváveis que nos dão essa sensação e que não dependem do dinheiro.
O que define uma casa?
A casa é uma ligação que se cria com a ideia de habitabilidade. É feita pela pessoa, mas também pelo espaço, pela mobilidade e fafamílias cilidade de circulação, pelas divisões, pela luz, pela possibilidade de se adicionar espaço extra. Actualmente, as casas são muito pequenas nas cidades por causa da densidade populacional. Mas isso está errado. O que tentamos fazer sempre, sobretudo nos projectos de habitação, é optimizar o terreno que temos de maneira a dar mais a quem vive nas cidades.
Acreditamos que o espaço traz algo às pessoas, não em termos pessoais ou egoístas. Dar mais espaço a uma família faz com que as relações melhorem (porque as pessoas não estão sempre juntas num só espaço, podem ter cada uma o seu próprio território). Dar mais espaço às é, para nós, uma garantia de que podem receber os vizinhos, por exemplo. Pode parecer naive, mas é aquilo que esperamos da arquitectura.
Criar espaços de socialização é um objectivo vosso?
O mundo está a mudar, e vemos isso todos os dias, e não é por isso que devemos comprimir as pessoas em espaços pequenos. Pensamos que temos de combinar, de forma educativa, as mudanças no mundo (a densificação) com a melhor qualidade de vida. A qualidade de vida começa com uma boa casa porque ela é aquilo que temos de mais privado. Por essa razão, acreditamos que a vida social começa na boa qualidade da casa.
Defendem que a habitação social não deveria ser uma categoria. Porquê?
Não gostamos de categorizar. A habitação social é muitas vezes associada a um escalão mais baixo e não gostamos desse princípio. Em França, onde temos uma cultura forte de habitação social, houve sempre boas experiências nesse campo, mas o perigo dessa categoria vem depois, quando falamos em casas mais baratas. A habitação deveria ser um direito de todos, por isso um arquitecto tem de construir boas casas, generosas, independentemente dos subsídios, das categorias de financiamento ou das pessoas que a irão habitar.
Conhece bem a arquitectura portuguesa?
Adoramos o trabalho de Siza. Sabe, recebemos muitos estagiários portugueses no nosso ateliê e gostamos muito das suas competências.
Em que projectos estão a trabalhar agora?
Estamos a terminar um projecto de transformação de habitação social modernista em Bordéus e temos trabalhado em competições. Concorremos para uma escola de arquitectura na Dinamarca e um centro de aprendizagem em França.
Ter espaço é um luxo...