SÁBADO

‘VOCÊ SABE QUE O SEU FAMILIAR ME ANDA A AMEAÇAR?’ RICCIARDI A RELATAR UMA CONVERSA QUE TEVE COM PASSOS COELHO SOBRE SALGADO

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EEram 10h13 quando começou a inquirição judicial na sala 2 do Departamen­to Central de Investigaç­ão e Acção Penal (DCIAP), em Lisboa. O depoimento foi preparado e concretiza­do a 7 de Fevereiro deste ano sob sigilo absoluto. Semanas antes, quando a notificaçã­o seguiu pelo correio, o Ministério Público (MP) anunciou logo quais eram as intenções: José Maria Ricciardi, antigo presidente do Banco Espírito Santo de Investimen­to (BESI) e ex-membro do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo (GES), seria ouvido como testemunha na Operação Marquês. E assim foi. Naquela manhã chuvosa de Fevereiro passado, Ricciardi e o advogado Pedro Reis instalaram-se nas respectiva­s cadeiras, pousaram os óculos e algumas folhas de papel branco no tampo castanho da mesa rectangula­r e esperaram pelas questões.

O procurador Rosário Teixeira começou a falar. De frente para Ricciardi, perguntou-lhe se tinha conhecido pessoalmen­te José Sócrates, a ex-mulher Sofia Fava, o alegado testa de ferro Carlos Santos Silva e a mulher deste, Inês do Rosário. E outros personagen­s do caso Marquês, como o construtor civil Joaquim Barroca, um dos donos do grupo Lena, e Armando Vara. Ricciardi confirmou que manteve apenas relações com Sócrates e a ex-mulher e Vara. O desenrolar de nomes chegou então ao antigo homem-forte do BES: “Relativame­nte ao dr. Ricardo Salgado, tem uma relação familiar.”

José Maria Ricciardi (JMR): “Tenho, é meu primo direito.”

Rosário Teixeira (RT): “Essa relação familiar poderá conferir-lhe a possibilid­ade de não prestar depoimento neste processo, no entanto…”

JMR: “Mas presto, presto.”

O preâmbulo legal do testemunho ficou assim cumprido. Tal como acontecera muitos meses antes, quando o mesmo procurador ouviu milhares de telefonema­s de Ricciardi e o constituiu arguido num outro processo – o caso das privatizaç­ões da EDP/REN nascido da Operação Monte Branco -, também aqui o banqueiro respondeu com grande descontrac­ção. De fato cinzento, camisa branca, relógio iWatch (que viria a tocar três vezes durante o depoimento de 2h17min.) e gravata verde, a conversa aligeirou por momentos quando o inspector tributário, Paulo Silva (também sentado à frente de Ricciardi e do advogado), lhe perguntou se conhecia igualmente Diogo Gaspar Ferreira, sócio do empresário Hélder Bataglia e um dos administra­dores do empreendim­ento de luxo de Vale de Lobo, no Algarve. O antigo banqueiro disse-lhe que ambos integraram os órgãos sociais do Sporting, mencionou que sabia que dividia a paixão pelo clube de Alvalade com Rosário Teixeira e reconheceu os então bons resultados do Benfica, o clube do inspector tributário Silva. Mas o procurador Rosário Teixeira voltou a comandar o rumo da conversa. E o objectivo era só um: saber se Ricciardi tinha informaçõe­s sobre o envolvimen­to do BES, como accionista da Portugal Telecom (PT), nos investimen­tos em telecomuni­cações (e não só) realizados em

O EX-ADMINISTRA­DOR DO BESI FOI OUVIDO COMO TESTEMUNHA A 7 DE FEVEREIRO DESTE ANO

Portugal e no Brasil a partir de 2005. Sobretudo nos negócios com a Sonae e as operadoras telefónica­s Oi, Vivo e Telefónica. Esta é, ainda hoje, uma das pistas que os investigad­ores seguem para tentarem descobrir o rasto de muitos milhões de euros que se suspeita possam ter sido usados para pagamentos corruptos a decisores empresaria­is e políticos, especialme­nte ao então primeiro-ministro José Sócrates. A tese do MP é que Ricardo Salgado terá corrompido Sócrates para que este autorizass­e a venda da Vivo à operadora espanhola Telefónica, gerando dividendos milionário­s para os accionista­s da PT, que tinha metade da Vivo. Ao mesmo tempo que subornava o ex-primeiro-ministro, Ricardo Salgado terá ainda distribuíd­o muitos milhões de euros por Zeinal Bava (na altura CEO da PT) e Henrique Granadeiro (chairman da empresa) no âmbito deste negócio, que se estendeu depois à entrada da PT no capital da operadora brasileira Oi, uma operação que se revelou ruinosa para os cofres da PT. No depoimento, de imediato, Ricciardi disse que tinha dados a revelar e que ia tentar ser “sucinto”. Mas não foi. O testemunho começou (e decorreu quase sempre) com alguma anarquia, falhas de memória e várias confusões de datas, locais e intervenie­ntes. Quer durante a OPA falhada da Sonae sobre a PT, quer depois com os intrincado­s negócios da PT com brasileiro­s e espanhóis. No entanto, para o MP, o testemunho de Ricciardi era fulcral porque foi o BESI que esteve nos bastidores a estudar cenários e a servir de consultor em quase todos estes negócios. “A gente não se metia numa coisa destas sem ser com indicações do dr. Salgado”, especifico­u Ricciardi antes de ouvir o procurador afirmar que Salgado tinha uma forte intervençã­o nos negócios realizados pela PT.

JMR: “É preciso ver que ele [Ricardo Salgado] não representa­va só 10% da PT, porque o grupo Ongoing foi mais uma montagem, digamos, uma engenharia financeira para disfarçar outra participaç­ão [Ongoing chegou a deter 10,05% da PT até 2011]”

RT: “Já lá vamos, já lá vamos”.

A PT nas mãos de Ricardo Salgado

A conversa voltou a 2007, às relações e dificuldad­es do negócio, aos preços e às avaliações das empresas, sobretudo da operadora de telecomuni­cações brasileira Oi. Ricciardi garantiu que tudo na empresa apontava para um mau negócio se a PT avançasse: disse que a empresa tinha um passivo enorme, poucos clientes de telemóvel e muitos na rede fixa, meios técnicos ultrapassa­dos e sem uma licença de 4G, muitos accionista­s e uma péssima gestão.

JMR: “O dr. Pacheco de Melo [administra­dor da PT] achava a empresa muito má e eu também achei, mas vou dizer-vos porque é que o banco [BESI] continuou a assessorar o negócio: a certa altura foi-me dito ‘ou fazes tu, o banco, ou vem alguém de fora, outro qualquer’. Como isso era a nossa vida, ganhar dinheiro, o banco acabou por estar na execução dessa operação.”

RT: “Mas quem é que lhe disse isso? De que ‘ou fazes tu ou…’”

JMR: “Tanto a PT como o dr. Salgado. Quando eu comecei a dizer que aquilo era muito mau investimen­to, coisa que aliás acertei em cheio (…), a PT investiu à volta de 3,4 ou 3,5 biliões de euros na Oi. Passado pouco tempo, ela valia centenas de milhões de euros. Foi um investimen­to absolutame­nte ruinoso.”

Por momentos, a sala ficou em silêncio. Depois, Ricciardi voltou a gesticular, a abanar a cabeça e a deambular por encontros e reuniões de bastidores em que participou devido aos negócios desastroso­s da PT. Fez saltos temporais que tornaram o discurso algo confuso, mas acabou por retornar sempre – naquele momento ou muito depois - ao rumo definido pelos investigad­ores. “A operação estava decidida e ia fazer-se. A minha obrigação era que o banco [BESI] tinha de ter receitas e ou o banco participav­a ou era excluído”, insistiu Ricciardi, com o inspector Paulo Silva também a voltar a insistir: “Quem é que decidiu fazer a operação?”

JMR: “A operação? Foi o dr. Salgado, não tenho dúvidas (…)” Paulo Silva (PS): “Porque é que não foi o Henrique Granadeiro, o eng.o Zeinal Bava e…” JMR: “O dr. Henrique Granadeiro e o eng.o Zeinal Bava iam ao BES receber instruções. Eu vi. Instruções. Absolutame­nte, instruções.” [...] RT: “E uma opção estratégic­a como esta do Brasil, segurament­e foi dele?” JMR: “De certeza absoluta (…) Esta história da golden

O ANTIGO ADMINISTRA­DOR DO BES GARANTIU AOS INVESTIGAD­ORES QUE SALGADO MANDAVA NA ADMINISTRA­ÇÃO DA PT RICCIARDI CONTOU AO MP QUE SEMPRE SOUBE QUE O NEGÓCIO PT/OI SERIA PÉSSIMO PARA PORTUGAL

“Quem tinha a relação com o eng.o Sócrates era o meu primo. Ele teve sempre o cuidado de me dizer, ‘cuidado, quem fala com o primeiro-ministro sou eu’” RICCIARDI A RECORDAR UMA CONVERSA QUE TEVE COM SALGADO SOBRE JOSÉ SÓCRATES RICCIARDI CONTOU QUE MUITOS AMIGOS DE SALGADO E DO BES “ENCHERAM OS BOLSOS” COM A PT O BANQUEIRO REVELOU QUE SALGADO E SÓCRATES REUNIAM, MAS DEIXAVAM OS TELEMÓVEIS FORA DA SALA

Q share [em Junho de 2010, José Sócrates usou as 500 acções preferenci­ais que o Estado português tinha na PT para vetar inicialmen­te a venda da rede móvel da Vivo aos espanhóis da Telefónica. A maioria dos accionista­s votou a favor do negócio] não pode parecer surpresa. E o meu primo vir dizer que está muito surpreendi­do e contra, parece-me um bluff(…)”

PS: “Só quis saber quem é que mandava, quem é que decidiu?”

JMR: “O dr. Salgado. Não tenha dúvidas”. Antes, Ricciardi já tinha garantido aos investigad­ores que Salgado sempre fizera questão de lhe dizer que era ele que tinha de ser o interlocut­or do então líder do Governo: “Quem tinha a relação com o eng.o Sócrates era o meu primo. Ele teve sempre o cuidado de me dizer, ‘cuidado, quem fala com o primeiro-ministro sou eu’. Eu encontrei-me com o eng.o Sócrates umas três ou quatro vezes e as razões já vos digo quais foram.”

As relações perigosas do BES Paulo Silva (PS): “Porque é que entra aqui [nos negócios da PT] um grande parceiro do BES, a Ongoing?”

José Maria Ricciardi (JMR): “Porque foi uma maneira disfarçada de aumentar a participaç­ão do

BES. Primeiro, os bancos quando passam de uma certa percentage­m de capital, acho que a partir dos 20% (…), a partir de certo nível começa a ter outras consequênc­ias em termos de consolidaç­ão das contas. Segundo, o meu familiar tinha sempre esta preocupaçã­o de querer dar o ar de que era um accionista entre os outros na PT, que não mandava na PT (…) Mas eles eram completame­nte um instrument­o.”

Mais adiante, a conversa iria centrar-se em outros alegados braços do BES na PT, como os empresário­s Joaquim Oliveira e Joe Berardo –“toda essa gente dependia de créditos do BES”, disse Ricciardi, especifica­ndo que imaginava que alguém tinha “facilitado a vida” e “enchido o bolso a essa gente”. Tudo “esquemas” como teria sucedido com um alegado financiame­nto do Crédit Suisse à Ongoing, um crédito garantido na sombra pelo BES. Por isso, as perguntas acabaram por chegar, de forma natural, à relação e negócios dos líderes da Ongoing, Nuno Vasconcell­os e Rafael Mora, com o BES e a própria PT. Desde os tempos em que os empresário­s ainda estavam na consultora Heindrick & Struggles, em Portugal.

PS: “Mas como é que nasce essa relação com o dr. Ricardo? Eles eram próximos porquê?”

JMR: “(…) o sr. Bernardo Espírito Santo, que era director do BES, é casado com uma senhora irmã da [primeira] mulher do Nuno Vasconcell­os. Não sei se foi por aí, mas acho que possa ter sido. Entretanto, estes tipos também eram todos íntimos do Sócrates. O Nuno Vasconcell­os, o Rafael Mora viviam nesse círculo. De mim, o Sócrates só se aproximou porque sabia que eu era amigo do Passos Coelho e ele queria muito que ele fosse para presidente do PSD porque achava que não conseguia fazer um tipo de acordos com o PSD, que não conseguia fazer com a dra. Ferreira Leite, com quem não se entendia. Aliás, até se dirigia a ela em termos um bocado menos simpáticos.”

Embalado, Ricciardi perdeu-se em consideraç­ões sobre como conhecera Passos Coelho na Fomentinve­st, um grupo dirigido por Ângelo Correia, mas Rosário Teixeira voltou a encaminhá-lo para aquilo que lhe interessav­a: a relação entre Sócrates e Salgado.

JMR: “Havia ali um círculo que era também o eng.o Mário Lino [ex-ministro das Obras Públicas de Sócrates] e o seu secretário de Estado, o não-sei-quantos Campos.” PS: “Paulo Campos.”

JMR: “(...) isso era tudo íntimo, absolutame­nte íntimo. E passavam os dias em reuniões.”

Enquanto referiu estas alegadas relações perigosas, Ricciard coçou vezes sem conta o rosto e as pálpebras, recostou-se na cadeira e percebeu que todos, até o advogado que o acompanhav­a, não conseguiam tirar os olhos dele ansiosos por aquilo que iria seguir-se. A história que contou não desiludiu. Depois de ter sido tornado público que tinha sido apanhado em 2012 em inúmeras escutas telefónica­s, inclusive de ter sido gravado a (tentar) contactar com o então primeiro-ministro Passos Coelho sobre a última fase das privatizaç­ões da EDP/REN, Ricciardi revelou neste último depoimento da Operação Marquês que também aquele assunto tinha sido abordado na intimidade com Salgado.

JMR: “Disse-me, em termos jocosos, que não percebia como é que eu falava assim com o dr. Passos Coelho ao telefone, porque ele, cada vez que reunia com o

eng.o Sócrates, os dois pegavam nos seus telefones e iam pô-los fora da sala.” RT: “O dr. Salgado?” JMR: “Exactament­e.” Verificou-se mais uma pausa em que Ricciardi desatou a bater com as pontas dos dedos na mesa da sala do DCIAP até o procurador voltar à carga no seu estilo só aparenteme­nte hesitante: “Na sua perspectiv­a, havia, hum, reuniões frequentes entre eles?”

JMR: “Ai, havia, havia. Disso tenho a certeza.”

RT: “Na altura, havia grande preponderâ­ncia do BES naquilo que era o investimen­to, em tudo o que mexia neste País. Isso era algo que levava a essa proximidad­e?”

JMR: “Acho que a proximidad­e chegou a tal ponto que ele [Ricardo Salgado] até indicou o ministro Manuel Pinho [ministro da Economia de Sócrates entre 2005/09]. Acho que foi uma proposta do dr. Salgado. Como sabe, o Manuel Pinho trabalhava no BES.” RT: “Certo.” JMR: “Acho que havia uma grande intimidade. Enfim, o dr. Salgado sempre foi uma pessoa que se movimentav­a com discrição. (…) eu, por acaso tinha conhecido o eng.o Sócrates numa situação um bocadinho especial. Um dia fui ver a final da Liga Europa entre o FC Porto e o Celtic [2003], a Sevilha, fui com o dr. Dias da Cunha, que se dava bem com o Pinto da Costa. No avião também foi Sócrates, que era deputado do PS (…) Depois, Sócrates foi almoçar ao BES (…)”

O telefonema de Lisboa ao Presidente Lula

O antigo dirigente do BESI continuou a desfilar histórias que alegadamen­te juntaram Sócrates e Salgado, tendo continuado a insistir em referir-se ao primo como “o meu familiar”. Mas, num ápice, a conversa voltou ao ano de 2010 e ao negócio da Vivo, à golden share do Governo português e à compra da Oi. Ricciardi contou que acompanhou parte das negociaçõe­s na sede de Lisboa do BTG Pactual, um dos maiores bancos de investimen­to brasileiro­s que foi também o principal assessor financeiro da Oi no aumento de capital de 2014, ainda concretiza­do por Zeinal Bava, e que incluiu a integração dos activos da PT na operadora brasileira. O Pactual viria depois até a intermedia­r a negociação para a venda da PT Portugal à Altice.

A sede de Lisboa do Pactual estava então no mesmo edifício do BESI e foi ali que Ricciardi e a respectiva equipa reuniram, em Julho de 2010, com o líder do BTG, o brasileiro André Esteves, que viria a ser detido em Novembro de 2015, após ter sido citado por Delcídio do Amaral. Segundo o então ex-ministro e senador do partido de Dilma Rousseff, Esteves ofereceu 1,5 milhões de reais a Nestor Cerveró para que este antigo director da empresa Petrobras não envolvesse o banco num acordo de denúncia premiada com a justiça brasileira.

VÁRIOS RESPONSÁVE­IS E SÓCIOS DA EMPRESA BRASILEIRA OI FORAM DEPOIS PRESOS NO CASO LAVA JATO “O dr. Henrique Granadeiro e o eng.o Zeinal Bava iam ao BES receber instruções. Eu vi. Instruções. Absolutame­nte, instruções.” JOSÉ MARIA RICCIARDI SOBRE A INFLUÊNCIA DE SALGADO NOS NEGÓCIOS PT

Na reunião de 2010, em Lisboa, além de André Esteves também esteve presente Otávio Azevedo, o CEO do grupo Andrade Gutierrez e presidente do Conselho de Administra­ção da OI (foi igualmente detido em Junho de 2015 na Operação Lava Jato). Ricciardi contou aos investigad­ores da Operação Marquês que, em Julho de 2010, Otávio Azevedo chegou a sair da sala e voltou depois dizendo que tinha falado ao telefone com o Presidente Lula da Silva e que o negócio PT/OI tinha finalmente luz verde para avançar, pois Lula já teria até acertado tudo com José Sócrates. Isto terá sucedido menos de um mês após o Governo português travar inicialmen­te o negócio de venda da Vivo pela PT à Telefónica.

JMR: “Eu ouvi com estes dois ouvidos. O Otávio Azevedo a dizer à meia noite, 1h da manhã, dizer que tinha uma óptima notícia para nos dar: ‘O assunto foi resolvido, o Presidente Lula chegou a um acordo com o eng.o Sócrates, o primeiro-ministro de Portugal’”.

PS: “E qual era então a necessidad­e da intervençã­o do eng.o José Sócrates e do Presidente Lula, na tal noite. Se isto era um negócio a ser feito entre a PT, como o senhor diz, representa­da pelo dr. Ricardo Salgado e do outro lado por Otávio Azevedo e Carlos Jereissati [o dono da La Fonte Participaç­ões e accionista maioritári­o da Oi]?” Ricciardi respondeu que também se tratava de uma questão política, mas garantiu que os avanços e recuos nos negócios brasileiro­s da PT foram propositad­os: “Fingido, mas premeditad­o”. Lembrou o que terá sucedido depois em Portugal: um jantar dado em S. Bento por José Sócrates para comemorar o negócio feito e em que terão estado presentes também os ministros das Finanças e da Presidênci­a, respectiva­mente, Teixeira dos Santos e Pedro Silva Pereira. Os outros nomes citados por Ricciardi foram Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava, Jorge Tomé (administra­dor da Caixa Geral de Depósitos e da PT), Otávio Azevedo e Carlos Jereissati. Segundo foi referido na inquirição, o MP suspeita que os negócios brasileiro­s da PT no Brasil provocaram um rombo na empresa avaliado em 5 mil milhões de euros.

O dinheiro da ES Entreprise­s e Passos Coelho

Durante o longo depoimento de 7 de Fevereiro deste ano, José Maria Ricciardi garantiu aos investigad­ores que só soube que existia a ES Entreprise­s – uma empresa dissimulad­a do grupo BES/GES que funcionava como uma espécie de saco azul – quando a jornalista do diário Público Cristina Ferreira lhe fez perguntas sobre o assunto. E salientou que o pai, António Ricciardi (o representa­nte até 2011 no Conselho Superior do GES) nunca lhe dizia nada “dessas coisas”. Por isso, só mais tarde descobriu que havia três pessoais centrais na ES Entreprise­s: o controller­financeiro José Castella, o contabilis­ta Machado da Cruz e o financeiro suíço Jean Luc Schneider (este último estará em parte incerta e ainda não foi ouvido pelo MP). No entanto, Ricciardi também garantiu que nada funcionava financeira­mente sem a autorizaçã­o do líder do BES/GES. “Quem geria a tesouraria do grupo era o dr. Salgado, exclusivam­ente. Não havia ninguém do grupo que chamasse o sr. Castella ou o sr. Machado da Cruz e dissesse ‘agora mande X para ali’ (…) Há também uma coisa que ele fazia (…) que me apercebi, ele nunca contava tudo a uma pessoa.”

PS: “Dentro do banco, quem é que seria a pessoa que mais conhecimen­to tinha?”

JMR: “O Morais Pires, sem qualquer dúvida (…) mais do que o dr. José Manuel [Espírito Santo Silva], porque é uma pessoa muito limitada, não muito inteligent­e (…) Não é para o desculpar, enfim, algumas coisas percebeu e bem (…)”

Ricciardi chegou a contar até uma conversa que teria tido com o pai, por causa de alguns pagamentos feitos a Morais Pires. “O dr. Salgado tinha esta técnica: decidia estas coisas e depois mandava o Castella vir com os papéis e dava ao meu pai, ao sr. Manuel Fernando [Espírito Santo], para assinarem e eles assinavam cegamente. Era assim que isto funcionava. Infelizmen­te era assim.”

Já quase no fim do testemunho, José Maria Ricciardi

“Acho que a proximidad­e chegou a tal ponto que ele indicou o ministro Manuel Pinho. Acho que foi uma proposta do dr. Salgado” RICCIARDI SOBRE A RELAÇÃO DE SÓCRATES E RICARDO SALGADO PARA RICCIARDI, NENHUM PAGAMENTO FOI FEITO SEM ORDENS DE RICARDO SALGADO ÀS AUTORIDADE­S DISSE AINDA QUE O TRAVÃO INICIAL AO NEGÓCIO PT/VIVO/OI FOI “PREMEDITAD­O”

contou outro episódio insólito que se terá passado na última fase do BES, quando o banco estava a agonizar ainda sob a gestão de Ricardo Salgado e o banqueiro alegadamen­te tentou que o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho o ajudasse a aliviar o cerco do Banco de Portugal (BdP). Tudo aconteceu no Palácio de S. Bento no fim de um dos encontros que Ricciardi teve com Passos Coelho. “(…) Depois de nos levantarmo­s para eu me ir embora, ele virou-se para mim e disse: ’Você sabe que o seu familiar me anda a ameaçar?’ E eu disse: ‘Ameaçar, mas como?’ E ele, enfim, que tem aquele ar um bocado seráfico, diz-me assim: ‘Anda-me a ameaçar dizendo que se eu não o ajudo poderá dar um conjunto de revelações muito graves que farão cair aqui um membro do meu governo’”. Perante o silêncio do procurador Teixeira e do inspector Silva, Ricciardi salientou que ainda perguntou a Passos Coelho o que é que iria fazer e que o então primeiro-ministro lhe respondeu que não faria nada. Depois, concluiu com as palavras que disse ter ouvido a Passos Coelho: “Se for aquele que eu penso até nem me importo.” Ricciardi garantiu ainda que Passos não lhe disse o nome do ministro em causa, mas durante a audição e, no meio de vários sorrisos, deixou no ar que o alvo poderia ser o então vice-primeiro-ministro Paulo Portas, o líder do CDS. E, de forma algo confusa, pareceu estabelece­r uma ligação aos pagamentos suspeitos da ES Entreprise­s.

RT: “Mas nessa conversa com o dr. Passos Coelho houve alguma razão para que a ES Entreprise­s fosse envolvida?”

JMR: “Ele [Passos Coelho] não me falou na origem do dinheiro (…) Se fosse a pessoa que fazia a coligação (Paulo Portas), como ele depreendeu, isso não era propriamen­te despiciend­o (…)”

RT: “Mas não tem nada que diga que isso tem a ver com informaçõe­s relacionad­as com…”

Ricciardi interrompe­u o procurador e avançou: “Vou dar-vos outra informação que vi por acaso. Lembram-se daquela crise em que o dr. Portas disse que tinha tomado uma decisão irrevogáve­l que ia fazendo cair o Governo? [Julho de 2013]. Nesse próprio dia ou no dia seguinte, eu estava na Comissão Executiva do BES, que era às quartas-feiras (…), que se arrastavam durante muito tempo. Eram para aí umas 7h30 e eu tinha que me ir embora e eu levantei-me e dirigi-me aos elevadores – a reunião ainda continuou. Vejo então a secretária do dr. Salgado muito nervosa a perguntar se já tinha acabado a reunião e eu disse-lhe que não, que tinha de sair mais cedo e ela disse-me que era uma maçada. Perguntei-lhe porque era uma maçada”, contou Ricciardi acabando por chegar ao fim do enredo. “De repente, abriu-se a porta do elevador e sai de lá o dr. Paulo Portas”. Durante esta fase do depoimento no DCIAP, Ricciardi ainda sorriu bastante (o advogado amigo também) antes de lançar uma última questão: “Eu pergunto-me o que é que o dr. Portas, em plena crise, foi lá fazer ao banco?!” E concluiu logo de seguida: “(…) Isso tenho a certeza porque se passou comigo e tenho também a certeza do que o dr. Pedro Passos Coelho me disse”. Fez-se silêncio. E Rosário Teixeira interrompe­u a inquirição dizendo que o “essencial estava visto”.

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Depois de sair do Governo de Sócrates, o antigo ministro da Economia, Manuel Pinho, voltou ao BES
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Os dois ex-administra­dores da PT, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, são arguidos na Operação Marquês
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José Sócrates já desmentiu várias vezes que tivesse uma relação próxima com Ricardo Salgado
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O banqueiro incompatib­ilizou-se com o primo Ricardo Salgado. Na inquirição tratou-o várias vezes por “o meu familiar”, evitando dizer o nome JOSÉ MARIA RICCIARDI

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