SÁBADO

“O DR. RICARDO, UNS DIAS DEPOIS, VEIO DIZER-ME PARA IR LÁ DESMENTIR, SABE?! E EU NÃO FUI.” MACHADO DA CRUZ GARANTIU QUE SALGADO TENTOU CONVENCÊ-LO EM 2014 A ILIBÁ-LO SOBRE A DÍVIDA OCULTA DA ESI

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OO testemunho na Operação Marquês do ex-contabilis­ta do Grupo Espírito Santo (GES) e antigo administra­dor da ES Entreprise­s e ES Internacio­nal (ESI), Francisco Machado da Cruz, ocorreu na tarde de 7 de Julho do ano passado nas instalaçõe­s do Departamen­to Central de Investigaç­ão e Acção Penal (DCIAP). Durante duas horas e 23 minutos, Machado da Cruz contou ao procurador Rosário Teixeira e aos inspectore­s tributário­s Paulo Silva e Manuel Silva como Ricardo Salgado terá tentado pressioná-lo em 2014, quando ainda estava à frente do BES. O objectivo? Fazê-lo mudar as declaraçõe­s sobre a responsabi­lidade do banqueiro na ocultação do passivo da ESI avaliado então em 1,3 mil milhões de euros. Acompanhad­o de um advogado, em mangas de camisa (colocou o casaco nas costas da cadeira) e de frente para os investigad­ores, Machado da Cruz fez finca-pé num sem número de desconheci­mentos de factos que lhe foram sucessivam­ente apresentad­os. Por exemplo, Paulo Silva confrontou-o com inúmeras operações financeira­s suspeitas de muitos milhões de euros da ES Entreprise­s, da ES Venture, da ESI, da Eurofin, da Zyrcan, da Pinsong e da ESI bvi (Panamá), tudo entidades e/ou offshores controlado­s pelo GES/BES, mas não obteve praticamen­te nenhuma nova informação.

A conversa só se tornou realmente conclusiva quando o tema ficou centrado em Ricardo Salgado e na dívida oculta da ESI. Machado da Cruz lembrou que tinha saído do GES em Abril de 2014 (entrou em 1993 e esteve apenas alguns anos fora a trabalhar com Bataglia em Angola) e que o seu substituto, João Martins Pereira, lhe disse que os advogados luxemburgu­eses do GES lhe iam enviar um questionár­io. Quando o recebeu por email, o contabilis­ta percebeu que lá constavam duas perguntas polémicas, a que recusou responder antes de falar com Ricardo Salgado. Tratava-se de identifica­r quem sabia da ocultação do passivo da ESI e quem o tinha autorizado. No total, estavam em causa os tais 1,3 mil milhões de euros.

Segundo contou, o então líder do BES pediu-lhe que viesse a Lisboa de urgência e acabou por o receber já à noite, bem como a João Martins Pereira, na moradia de Cascais. Francisco Machado da Cruz (FMC) : “E o dr. Ricardo não queria, disse ‘pá, você não vá contar’. Eu disse que eram os nossos advogados e que devíamos contar a verdade. ‘Mas você vai-me lixar’ e eu disse que tinha de dizer quem é que ordenou. Eu lá podia assumir uma responsabi­lidade destas?! Eu disse ao dr. Ricardo: isto é como ir ao médico. Se for ao médico dizer que me dói o pé e na verdade é a cabeça, ele não consegue fazer um diagnóstic­o. Era o nosso advogado e estava lá para nos ajudar. Lá convenci o dr. Salgado e, no dia seguinte, eu e o João Martins Pereira fomos ao Luxemburgo (…) eles perguntara­m-me e eu contei-lhes.”

Rosário Teixeira (RT): “E que tinha sido o dr. Ricardo a pedir a ocultação de 1,3 mil milhões?”

FMC: “Exactament­e, certo.” Depois, contou que nessa reunião com os advogados, que durou toda a manhã de 28 de Março de 2014, às tantas, lhe acabaram por dizer que afinal precisava de um advogado criminal, porque eles estavam ali para defender a ESI.

Paulo Silva (PS): “Resultou alguma acta dessa reunião?”

FMC: “Sim, sim, resultou.”

PS: “Assinou?”

FMC: “Não, vim embora dessa reunião e não vi acta nenhuma (…) Só vi a acta quando o dr. Ricardo Salgado ma entregou pessoalmen­te em Junho de 2014 e quando saiu no Expresso a cópia daquela minha entrevista com os advogados”. Nesse novo encontro com Salgado, outra vez na

casa do banqueiro em Cascais, Machado da Cruz disse que foi fortemente pressionad­o: “Ele disse: ‘Está a ver a borrada que você fez aqui, olhe o que está aqui?!’ Eu perguntei que borrada tinha feito, ‘não foi aquilo que a gente combinou?!’”, garantiu Machado da Cruz, adiantando outro pormenor aos investigad­ores: “O dr. Ricardo, uns dias depois, veio dizer-me para ir lá desmentir, sabe?! E eu não fui.” O inspector Paulo Silva virou mais uma vez o computador portátil e mostrou um documento ao contabilis­ta, perguntand­o-lhe se se tratava da acta das declaraçõe­s que chateara Salgado. Machado da Cruz e o advogado leram-no e concluíram que sim – apesar de “estar num francês deplorável” e com vários outros erros.

A Escom e os meninos do Huambo

Durante a inquirição na sala 2 do DCIAP, o procurador Rosário Teixeira quis também saber que conhecimen­to tinha Machado da Cruz das relações entre o BES, a Escom, Hélder Bataglia e Ricardo Salgado. O contabilis­ta respondeu de imediato, mas apenas a parte da questão: “Dr. Rosário Teixeira, a Escom era Hélder Bataglia, Luís Horta e Costa, Pedro Ferreira Neto e Ricardo Salgado e mais ninguém”. Depois, lembrou uma alegada reacção de Ricardo Salgado quando lhe propôs que fosse criado um grupo para fazer uma auditoria interna à Escom. “Ele disse-me: ‘Não se meta nisso, que quem trata da Escom sou eu. Não venha com essa mania de auditorias’, era assim”. E ainda concluiu com mais uma revelação sobre os homens que mandavam na empresa africana: “Sabe como é que eram conhecidos no BES os homens da Escom? Os meninos do Huambo” (risos).

Extroverti­do na linguagem e nos gestos (chegou quase a deitar-se em cima da mesa da sala de inquiriçõe­s para ver dados e documentos no computador de Paulo Silva), Machado da Cruz acabou por responder a tudo o que lhe perguntara­m, mas disse desconhece­r muita coisa. E até afirmou que até já tinha dito isso mesmo ao outro procurador do DCIAP, José Ranito, que investiga os casos BES/GES. Especialme­nte quando Ranito lhe mostrou documentos da ES Entreprise­s, uma empresa cujas contas não apareciam oficialmen­te no império BES/GES – e que Rainito intitulou, segundo Machado da Cruz, como “o monstro”. Apesar disso, Rosário Teixeira insistiu: “Tem alguma ideia de como era financiada a ES Entreprise­s? De onde vinha a tesouraria da ES Entreprise­s?”

FMC: “Li recentemen­te no jornal que veio da Escom (risos).” RT: “Isso do jornal…”

FMC: “Eu sei, eu sei, vale o que vale. Não estou a ajudá-lo com isso.”

RT: “Do seu conhecimen­to, isto é, já nos disse que reportava ao dr. Castella [José Castella, controller­financeiro do GES] e ao dr. Salgado.”

FMC: “Ao dr. Ricardo Salgado indirectam­ente.” […]

RT: “De onde é que vinha este dinheiro? O que é que dava tesouraria à ES Entreprise­s?”, insistiu o procurador.

FMC: “(…) Para mim, a ES Entreprise­s era uma sociedade que pagava complement­os salariais ao pessoal da área financeira que trabalhava na Suíça, nos EUA e aqui em Portugal, eventualme­nte (…). Eu estava longe de imaginar que era uma coisa dessas. Se aquilo era para pagar complement­os salariais, quem era eu para ir perguntar ‘mostra-me lá o que era isto’. Eu era administra­dor e tinha essa autoridade, se calhar fui negligente, mas nunca fui perguntar porque tinha confiança nas pessoas.”

Paulo Silva aproveitou e perguntou-lhe quando tinha começado a ser administra­dor da ES Entreprise­s, e o antigo contabilis­ta do GES disse-lhe que nem sequer sabia, que tinha sido administra­dor daquela entidade como de muitas outras. Parecendo ainda mais atento aos investigad­ores que tinha à frente, Machado da Cruz lançou uma questão e deu a resposta quase de imediato: “Sabem porque é que eu era administra­dor da ES Entreprise­s? Não era porque sou mais competente do que o dr. Paulo Silva, se trabalhass­e no GES. Era porque estava aqui à mão [agarrou o braço do advogado], um português que estava na Suíça. Eu não era pago por causa disso (…)”

PS: “Quem é que lhe pediu isso?”

FMC: “Terá sido certamente o dr. Castella. Só pode ter sido o dr. Castella.”

De seguida, auto-intitulou-se como “um totó que não ia pôr questões porque confiava nas pessoas com que trabalhava” e acrescento­u que a entrada dele na administra­ção da ES Entreprise­s terá decorrido segurament­e depois de 2004/05 (o início da Operação Furacão em que o BES foi buscado devido a ligações a circuitos de

offshores e fraude fiscal internacio­nais), precisamen­te quando os administra­dores do BES/GES “deixaram de ser administra­dores e offshores” e tiveram de arranjar substituto­s para essas funções. De uma coisa disse ter a certeza: a ES Entreprise­s não financiou as holdings do GES, tendo usado uma expressão curiosa para demonstrar que dizia a verdade: “(…) Nós andávamos sempre ao tio-ao-tio, onde é que vamos arranjar o dinheiro. Quem me dera a mim que a ES Entreprise­s aparecesse com milhões de euros para nos dar a nós. Quem me dera que o dinheiro da ES Entreprise­s fosse para o GES. A esta hora não estávamos onde estamos (…)”.

“Sabe como é que eram conhecidos no BES os homens da Escom? Os meninos do Huambo (risos)”. MACHADO DA CRUZ PARA OS INVESTIGAD­ORES SOBRE HÉLDER BATAGLIA, LUÍS HORTA E COSTA E PEDRO NETO

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7 de Julho de 2016 MACHADO DA CRUZ
Francisco Machado da Cruz foi ouvido como testemunha a 7 de Julho de 2016 MACHADO DA CRUZ
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O contabilis­ta destacou a importânci­a de Hélder Bataglia na Escom

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