O IMPARÁVEL SENHOR AMÉRICO
Portugal sempre foi pequeno para o homem que nunca quis parar nem perder tempo – mes mo que para isso tivesse de usar o motorista como duplo.
OComo livro esteve na estante do seu gabinete, em Mozelos, Santa Maria da Feira, durante muitos anos. Mas
Fazer Amigos e Influenciar Pessoas (Dale Carnegie, 1936) não era propriamente o lema de vida de Américo Amorim. O homem mais rico do País – directo, duro, muitas vezes implacável – teve disputas com a família, com sócios, com gestores e com amigos. Pelos negócios, sempre pelos negócios, trabalhou e deixou de trabalhar com portugueses, russos, angolanos, romenos, brasileiros, comunistas, liberais, no fundo com toda a gente. “Se fosse possível fazia uma fábrica por dia”, costumava dizer o empresário que sabia viver num País demasiado pequeno para a sua ambição. Em 1993, quando lhe perguntaram se alguma vez tinha subornado alguém em Portugal para concretizar um negócio ou privilegiar os interesses das suas empresas, respondeu sem rodeios: “Em Portugal não. Não vale a pena.” Amorim detestava perder tempo. Talvez por isso raramente se atrasasse – chegou a aparecer numa reunião com a cara ensanguentada, depois de ter sofrido um
“NÃO TE ARMES EM PARVO QUE JÁ BATI EM GAJOS MAIORES DO QUE TU”, DISSE A UM FUNCIONÁRIO Saiam de Mozelos city. Lavem a cabeça no mundo. Não se deixem aprisionar pela mentalidade do caldo-verde
acidente de viação, deixando o curativo para depois. E talvez também por isso tivesse dificuldade em aceitar trabalhadores menos solícitos. Em 1989, no restaurante do Hotel Polana, em Maputo, exasperou-se com a demora do empregado, que nunca mais ia à sua mesa. Amorim estava à cabeceira e tinha junto a si Jorge Armindo (hoje presidente da Amorim Turismo) e mais 10 ou 11 pessoas. Quando o empregado ia distribuir as ementas, o milionário interrompeu-o: “Omeletas para todos!” Não ia estar à espera e impôs a refeição ao resto da comitiva. Outra vez, para repreender um funcionário que não tinha partilhado na altura devida uma informação sobre um prémio ganho por uma empresa do grupo, olhou para o papel e perguntou: “O que é isto?” “Desculpe, senhor Américo, desculpe…”, balbuciou o funcionário. Ouviu logo o patrão: “Não te armes em parvo comigo, que já bati em gajos maiores do que tu!” Bacelo, o seu fiel motorista, que também servia de mordomo e guarda-costas, ajudava a manter a ordem nas empresas – quando o patrão estava fora, e por ser fisicamente parecido com ele, fazia de seu duplo, cumprindo rondas de automóvel à entrada das fábricas para ser visto pelos trabalhadores. Amorim também não chegou a bater numa equipa do jornal O Diabo que o foi entrevistar, em 1993, mas o encontro teve animosidades de sobra. Logo no início, estalou um conflito por causa dos gravadores. O empresário não queria que os jornalistas gravassem a conversa e estes também não aceitaram que um assessor de Amorim fizesse o mesmo. O rei da cortiça não gostou da lista de 27 perguntas que recebeu antecipadamente e avisou que tinha mudado de ideias: “Estive a pensar e afinal não lhe vou dar a entrevista.” Seguiu-se uma pequena batalha pelo controlo da caneta do entrevistador: “De um diálogo de duas horas, conseguimos escrevinhar alguns apontamentos – o que, diga-se de passagem, não foi fácil, pois foram frequentes as suas tentativas de nos agarrar a caneta.”
Outros temas tensos da conversa com O Diabo :adetenção do administrador do Bank of Lisbon, da África do Sul, controlado em 42% pelo Grupo Amorim, por suspeitas de corrupção, fraude e suborno (o empresário considerou “impensável” que o seu administrador tivesse cometido esses crimes); uma notícia num jornal romeno sobre as ligações entre a corticeira e a polícia secreta do ditador Ceausescu (Amorim garantiu que tinha sido um concorrente seu da Feira a inventar a história publicada e a distribuir fotocópias durante a noite); e a forte liga-
EM 1993 PASSOU UMA ENTREVISTA A TIRAR A CANETA AO JORNALISTA – NÃO GOSTOU DAS PERGUNTAS
ção comercial com os países da órbita comunista – o milionário mostrou três álbuns de fotografias de uma visita sua recente a Cuba, com imagens de passeios de iate e festas mundanas com ministros de Fidel Castro. E admitiu que tinha havido interesse de um serviço de espionagem de Leste na actividade das suas empresas: uma “abordagem”, como lhe chamou, mas que “não durou mais de 10 minutos”. Terá sido aliciado pelo KGB num hotel de Moscovo. Mas também teve de se despir integralmente numa fronteira para ser revistado.
Há mais episódios, provavelmente tantos quanto os milhões de que é a feita a maior fortuna do País e a 385ª maior do mundo – 3,9 mil milhões de euros que superam outros ricos famosos, como Donald Trump (3,1 mil milhões). Milhões que lhe permitiram, por exemplo, comprar a maior coutada de caça do País, o Monte do Peral, a 60 km de Évora, onde se habituou a caçar perdizes (e, mais raramente, javalis). A herdade, na família desde 1987, pertencia a Jorge de Mello, neto do industrial Alfredo da Silva, fundador da CUF. “Era a menina dos olhos de Jorge de Mello, que só a vendeu [a Amorim] porque estava com grandes dificuldades financeiras”, conta à SÁBADO uma fonte próxima do empresário. Um dia, num almoço com os órgãos sociais do Millennium bcp, e com Jorge de Mello à mesa, Amorim começou a descrever as mudanças que fizera na herdade. Sentado ao seu lado direito, “Jorge de Mello estava visivelmente incomodado e os restantes membros do Conselho Superior tentaram por diversas vezes mudar de assunto”. Mas Amorim continuou a falar das perdizes com que povoara a herdade, das árvores que abatera e das obras feitas. No fim do almoço, Jorge de Mello esperou que o empresário saísse e “agradeceu a todos por terem tentado mudar o tema da conversa”.
O CONFRONTO COM OS PRIMOS DO PORTO E O DESPREZO DA CONCORRÊNCIA
Em 1958, quando ganhava 1.500 escudos por mês, comprou com os irmãos a Quinta de Meladas, que era da família Van Zeller, por 4.500 contos (hoje mais de 400 mil euros). Foi ali que instalaram a fábrica da Corticeira Amorim, em 1963, com o objectivo de aproveitar os desperdícios de cortiça da empresa-mãe, a Amorim & Irmãos. Este novo negócio já era só de Américo, dos seus irmãos José, António e Joaquim, e do tio Henrique, cada um com 20%. Tinham acabado de atravessar o primeiro grande confronto familiar, pelo controlo da Amorim & Irmãos, a empresa herdada do avô, contra o ramo dos primos do Porto – os filhos de José Alves de Amorim acompanhavam a gestão da fábrica mais à distância e opuseram-se à estratégia de crescimento defendida por Amorim e pelos seus irmãos (em 1969 venderiam a sua quota, de 20%). A chamada verticalização previa que a cortiça não fosse apenas exportada como matéria-prima, mas fosse também transformada em Portugal, e distribuída no exterior já sob a forma de produto acabado, criando maiores margens de lucro. Amorim não fez nada para derrubar o regime, mas também não permitiu que o regime o derrubasse a ele. Quando quis abrir esta nova fábrica (então apenas tinha alvará para produzir rolhas), esbarrou nas malhas do condicionamento industrial, o sistema em vigor no Estado Novo, que permitia, na prática, a todos os empresários já instalados no mercado oporem-se ao aparecimento de concorrentes. Não quis esperar. Decidiu abrir a fábrica, montar as máquinas e começar a produzir granulados de cortiça. A autorização só chegou depois – apesar de várias queixas da concorrência junto da Direcção-Geral dos Serviços Industriais. Em 1968, aos 34 anos, abordou uma empresa concorrente, a Isola, para discutir uma estratégia de promoção mundial dos aglomerados negros de cortiça. “Puseram-no à espera, sentado num corredor. Depois lá o receberam, mas trataram-no com um desprezo brutal”, conta à SÁBADO Carlos Oliveira Santos, autor dos dois volumes de Amorim, História de Uma Família (1870-1997) ,um livro encomendado pelo empresário para oferecer a amigos e clientes. “Aquilo era gente salazarista, que olhava para ele como um pacóvio do Norte. Sentiu-se humilhado e ficou-lhes com um ódio terrível.” Resolveu retaliar, fazendo-lhes uma concorrência impiedosa: os preços no mercado internacional baixaram 60% e a Isola foi vencida.
Fora de Portugal, a Europa de Leste foi um dos primeiros alvos estratégicos de Amorim. Em 1963, em plena ditadura salazarista, quando os contactos com a Europa Oriental rareavam, pagou os 5 escudos de imposto de selo (hoje 2 euros) para dirigir este requeri-
AMORIM DESCREVEU AS MUDANÇAS QUE FEZ NO MONTE DO PERAL – JORGE DE MELLO, ANTIGO DONO, NÃO GOSTOU Portugal tem a atitude de um funcionário público
mento ao ministro do Interior: “Excelência, Américo Ferreira de Amorim, solteiro, de 28 anos de idade, industrial, natural e morador em Mozelos, Vila da Feira, (…) vem rogar a V. Exª se digne autorizar que se ausente de Portugal para realizar uma viagem de carácter comercial aos seguintes países: Checoslováquia, Polónia, Rússia, Roménia, Hungria, Bulgária e Jugoslávia.” O pedido foi autorizado no dia seguinte pelo inspector Barbieri, depois subdirector da PIDE.
A polícia política podia estranhar estas incursões comerciais, mas não tinha razões para desconfiar do jovem Amorim. O presidente da Câmara da Feira informou que nada constava em seu desabono, moral e civilmente. E asseverou: “É situacionista.” Se houvesse dúvidas, o próprio empresário se dispôs a desfazê-las numa carta ao director da PIDE: “Oportunamente e quando V. Exª entender conveniente, serão dadas todas as garantias de ordem política, civil e moral, que se entendam necessárias.”
A EXPROPRIAÇÃO DE TERRAS E A AFRONTA AO GOVERNO DE VASCO GONÇALVES
A chegada da Revolução não poupou Américo Amorim: o governo de Vasco Gonçalves criou uma zona de intervenção da reforma agrária e expropriou-lhe 3 mil hectares de terras no Alentejo, para serem entregues às Unidades Colectivas de Produção. Depois tentou implementar um plano para controlar o comércio externo de cortiça, com a ajuda de uma delegação soviética chefiada por um dirigente de apelido Zamiatin. Mas Amorim conhecia este russo das suas visitas ao Leste, manteve com ele duas conversas em Espinho e na Figueira da Foz e convenceu-o a recuar na intenção de concentrar as suas encomendas através do Estado, continuando a comprar directamente aos fornecedores – e boicotando o plano do gonçalvismo para nacionalizar o comércio externo da cortiça. O seu grupo criou ainda uma estrutura de apoio aos diplomatas das embaixadas do Leste que se instalaram em Portugal depois do 25 de Abril, para os ajudar informalmente com o aluguer de apartamentos, ou idas ao médico e às compras. A arte da diplomacia foi usada também com os dirigentes das Unidades Colectivas de Produção, transportados em autocarros até às fábricas de Mozelos, para verem como a empresa trabalhava e tentar desmontar a tese de que seria praticada qualquer política especulativa. Assim foi possível manter as compras regulares de cortiça àquelas unidades.
MAIS DOIS IRMÃOS SAEM DOS NEGÓCIOS
Após a revolução, Amorim não só não foi preso nem fugiu como aproveitou para fazer grandes negócios. Quando voltou de umas férias em Espanha, no Verão
CHEGOU A ESPERAR SENTADO, NUM CORREDOR, PARA FAZER UMA PROPOSTA À CONCORRÊNCIA. VINGOU-SE
“QUIS MOSTRAR QUE EU ESTAVA NUMA FASE DE DESLUMBRAMENTO”, DISSE JARDIM SOBRE AMORIM Portugal vai a reboque. Somos a cópia mal imitada
de 1975, e apesar de não lhe terem devolvido as terras expropriadas, desatou a comprar terrenos ao desbarato, a latifundiários assustados – e conquistou a maior parte dos terrenos que hoje estão na família.
Para continuar a crescer era preciso dinheiro e para arranjar dinheiro nada melhor do que o capitalismo popular reabilitado entre os anos 80 e 90, com o cavaquismo. Só que essa estratégia não era consensual entre os irmãos Amorim. O mais velho, José, começou a discordar do projecto de crescimento liderado por Américo, não queria que a família abdicasse assim do controlo do império e vendeu a sua quota. “O sr. José Amorim é de uma geração anterior à guerra. Acompanhou muito a dimensão rural. Um homem imponente, mais alto que o irmão [Américo Amorim tinha 1,80 m], que corria o Alentejo todo e chegou a dormir debaixo de um sobreiro”, descreve Carlos Oliveira Santos à SÁBADO. “O sr. Américo Amorim [10 anos mais novo] já é um homem do pós-guerra. A primeira distinção é essa. Quando quis criar uma estratégia de diversificação, nomeadamente quando decidiu avançar para a banca comercial, ao sr. José pareceu que era um voo que já não seria para ele, um risco para o qual já não estava disponível”, acrescenta o biógrafo, desvalorizando episódios como o de 22 de Março de 1997, aquele sábado em que 1.300 pessoas se juntaram na Amorim & Irmãos para festejar os 75 anos da empresa – José, o mais velho dos oito irmãos, que durante 10 anos liderou as compras de cortiça, não esteve presente. “São coisas de circunstância. Ambos seguiram o seu caminho sem ressentimentos”, explica Carlos Oliveira Santos – José Amorim, 92 anos, continua a ir uma ou duas vezes por semana à sua Simon – Sociedade Imobiliária do Norte. “Quando Américo Amorim me solicitou que escrevesse a história empresarial deixou bem claro que o irmão tinha tido um papel que tinha de ser respeitado.”
Já em 2013, também o irmão Joaquim, que nos anos 60 liderou a expansão no Brasil, vendeu a sua participação na holding de topo da família, a Interfamília II, e com ela os 25% que detinha na Corticeira Amorim, por 50 milhões de euros. O negócio foi feito depois de uma outra empresa de Joaquim, a Evalesco, com dívidas de 84 milhões de euros, o ter obrigado a aderir a um PER – comprometeu-se a usar o valor que recebeu para amortizar as dívidas.
LITÍGIO COM JARDIM GONÇALVES NO BCP
Quando o Governo reabriu a banca à iniciativa privada, o homem de Mozelos fez questão de estar no pelotão da frente. Primeiro tentou convencer os accionistas da Sociedade Portuguesa de Investimentos, que viria a dar origem ao BPI, a fundarem um banco comercial. Artur Santos Silva não quis e Américo Amorim decidiu reunir outro grupo, onde se incluíam nomes como a Têxtil Manuel Gonçalves, a Vicaima, a Colep e a Vista Alegre. Juntaram o dobro dos milhões exigidos pela legislação para abrir um banco, e entregaram o requerimento a pedir autorização ao Ministério das Finanças, em 1984. Obtida a licença, os promotores decidiram abordar Jardim Gonçalves para dirigir a nova instituição, que viria a chamar-se Banco Comercial Português (BCP). Jardim Gonçalves era então presidente de um banco nacionalizado, o Português do Atlântico, e não conhe-
cia pessoalmente Amorim. O primeiro encontro entre ambos realizou-se no grill do Hotel Altis. Mas o banqueiro demorou meses a dar o sim – e apenas o fez depois de garantir pessoalmente, num documento, a remuneração da administração nos primeiros três anos. “Foi talvez a pessoa na minha vida de mais difícil recrutamento, de mais difícil adesão a um projecto”, confessou mais tarde o industrial.
Faltava apenas a autorização do Banco de Portugal, cujo governador passou a ser Vítor Constâncio, em 8 de Fevereiro de 1985, e que ia manifestando as suas reservas, quando Amorim o procurava para saber o estado do processo. A aprovação final só chegou a 2 de Maio de 1985, depois de várias acções de lobby dos fundadores com Mário Soares, na altura primeiro-ministro, e com o ministro das Finanças Ernâni Lopes – e ainda de diligências de António de Almeida, na altura secretário de Estado do Tesouro, e de João Salgueiro junto de Vítor Constâncio.
Américo Amorim passou a ser o presidente do Conselho Superior do BCP, mas a partir de 1989 começou a divergir da estratégia de Jardim Gonçalves. O histórico líder do BCP contou ao seu biógrafo, Luís Osório, que achou que Amorim “gostaria que [o BCP] fosse um banco familiar, como era o Mello e o Espírito Santo. Pelo menos Jorge Armindo, seu homem-de-mão (…), deu-me sinais de que não se importaria de instrumentalizar o banco”, acrescentou.
O banqueiro começou a travar esse poder crescente. Arranjou forma de blindar os estatutos, impedindo que qualquer accionista tivesse mais de 10% dos votos em Assembleia-Geral, mesmo que detivesse uma participação superior. Depois promoveu um aumento de capital subscrito inteiramente no mercado internacional, afastando-se assim do objectivo inicial de manter um núcleo forte de accionistas portugueses. “Jardim Gonçalves tinha sido contratado para liderar o BCP, Amorim era o fundador, esperava que o presidente respeitasse o que considerava ser o espírito inicial do projecto”, diz à SÁBADO uma fonte próxima do empresário. Como diria o próprio mais tarde: “Saí porque me senti profundamente desconfortável. Depois de três anos difíceis com a administração e o presidente. Entendi que as linhas orientadoras da instituição, que não estavam escritas mas foram conversadas entre cavalheiros, foram profunda-
“SR. DR., HÁ QUE ENTENDER QUE UM TAMPÃO HIGIÉNICO NADA TEM A VER COM UMA SGPS”, ACUSOU O FISCO O País tem que ser atirado ao mar. Tem que aprender a nadar
mente desvirtuadas.” Depois de Amorim ter feito uma parceria com o Banco Indosuez, deu a entender ao banqueiro que iria assumir um maior controlo do BCP, mas Jardim ameaçou demitir-se, o que poderia colocar em causa o percurso de sucesso até aí.
Em 1992, houve um episódio bizarro neste confronto, relatado pelo banqueiro: Amorim sugeriu que o convívio anual entre os administradores e conselheiros do banco, com as respectivas mulheres, se realizasse na casa nova de Jardim, em Sintra. “Nessa altura percebi que havia uma intenção clara da parte dele. Quis mostrar que eu estava a entrar numa fase de deslumbramento (...). Queria dizer a todos que este senhor tem feito coisas muito boas, mas está a perder o pé”, contou Jardim que, à SÁBADO, diz que Amorim “foi sempre muito leal enquanto esteve no banco”. O industrial acabaria por vender a sua posição, com as acções em alta – no momento em que o seu advogado recebeu um telefonema de Jardim a confirmar o negócio, perguntou-lhe se podia abrir a garrafa de champanhe, mas Amorim terá respondido secamente para que bebesse sozinho.
Numa entrevista em 1991, ao Semanário, falara do BCP como se fosse da família: “Não é previsível que alguma vez se venha a alienar essa participação. Costumo dizer que os filhos não se vendem e eu considero-me muito ligado sentimental e accionariamente.” Mais tarde admitiu: “Foi provavelmente o meu maior falhanço empresarial.”
Não desistiu da banca. Em 1993 promoveu a criação do Banco Nacional de Crédito Imobiliário (BNC), que mais tarde trocaria por uma participação no Banco Popular espanhol, onde se tornou o maior accionista privado (7,8%).
No início do governo de António Guterres, em 1996, o BNC concorreu à reprivatização do Banco de Fomento e Exterior, mas o ministro das Finanças, Sousa Franco, anunciou que o vencedor tinha sido o BPI. O relatório do júri do concurso assinalou o papel de Amorim na fundação da SPI, do BCP e do BNC, mas considerou que havia “alguma instabilidade na manutenção dos seus investimentos no sector financeiro”. O empresário escreveu a Sousa Franco, considerando aquela afirmação “profundamente injusta e claramente incorrecta” (expressões sublinhadas na carta).
A ACUSAÇÃO DE FRAUDE E OS TAMPÕES NAS CONTAS DA EMPRESA
O que é que podia incomodar o homem mais rico do País? Um dos primeiros e mais mediáticos processos que enfrentou foi a acusação de fraude, movida pelo Ministério Público, relacionada com um alegado desvio de 500 mil contos (hoje 8,35 milhões de euros) do Fundo Social Europeu. De acordo com uma notícia de 1995, do jornal Tal e Qual, que citava a acusação do Ministério Público, Amorim era um dos três visados na queixa (os outros eram um responsável pela área de Recursos Humanos do grupo e um economista) sobre a utilização indevida de fundos para formação profissional. Dizia mais: os trabalhadores da Amorim tinham de facto sido chamados a participar nos cursos financiados, só que em vez das 800 horas mínimas de formação por pessoa as empresas do grupo não deram mais de 240. A queixa oficial dizia haver, além disso, facturas fictícias e falsificação de assinaturas.
O processo foi arquivado em 2000, 11 anos depois de ter começado – o Tribunal da Relação do Porto considerou prescritos os crimes de fraude,
falsificação de documentos e desvio de subsídios do Fundo Social Europeu num caso que passou por cinco juízes sem que nunca houvesse julgamento e em que a própria União Europeia se fez assistente do processo e exigiu uma indemnização. Proença de Carvalho, um dos advogados do empresário, atribuiu a prescrição ao Ministério Público, que “deixou arrastar o processo demasiado tempo”.
Uns anos mais tarde, outro caso acabaria mesmo por chegar a tribunal. “Sr. dr., há que entender que um tampão higiénico nada tem a ver com uma SGPS”, disse o inspector José Paulo Pequeno, responsável pelas 36 páginas com 600 pedidos de esclarecimento sobre as contas da Amorim Holding II. Em causa estavam facturas no valor de 3,2 milhões de euros, que a empresa apresentou como custos em 2005, 2006 e 2007 e que o Fisco recusou aceitar. Exemplo: em Maio de 2006, a empresa pagou 44,63 euros por lacas e pentes de carbono, produtos de bebé, discos de algodão, gel e duas embalagens de Guronsan, o medicamento para a ressaca. No mesmo ano pagou um tira-nódoas, pensos e tampões higiénicos, discos desmaquilhantes, lenços de papel, cotonetes e fio dental. Na lista das Finanças, as despesas vinham descritas como “higiene pessoal”, com um pedido de Paulo Pequeno: que a holding provasse que eram um custo necessário ao funcionamento da empresa. Na altura, confrontada pela SÁBADO, a Amorim “reconheceu a existência de lapsos na contabilização de despesas de índole pessoal”, defendendo, no entanto, que estas despesas perfaziam “uma parcela irrisória do montante em discussão (não mais do que 3%) e que a esmagadora maioria das despesas em causa era perfeitamente dedutível porque era relativa à aquisição de serviços directa e obviamente ligados à actividade da empresa”. Havia gastos para todos os gostos: 94 euros em massagens no Eco Resort Praia do Forte, no Brasil; 200 fotografias do aniversário de uma neta de Amorim (464,64 euros) e respectiva festa (5.896,80 euros); despesas com esteticistas e cabeleireiros, artes marciais, osteopatas,
shiatsu e talassoterapia (tratamentos com água do mar e água doce), restaurantes, cocktails e roupa, muita roupa. Além de uma conta de bar em atraso no Oporto Cricket and Lawn Tennis Club, no Porto, de que Américo Amorim era sócio – foi a holding que pagou os 202,43 euros em falta.
A OPERAÇÃO FURACÃO E AS LAGOSTAS ENVIADAS PARA CUBA
h Foi Carlos Alexandre que autorizou o Ministério Público a entrar de surpresa num dos mais poderosos grupos empresariais portugueses. A operação, descrita no livro Apanhados, de António José Vilela (jornalista da SÁBADO), “teve como alvo directo Rui Alegre, então ainda genro de Américo Amorim (divorciou-se em 2006 de Paula Amorim)”. De acordo com o livro, as buscas incluíram os gabinetes do milionário, onde GNR e inspecção tributária apreenderam informação com detalhes sobre os negócios dos Amorim em Cuba (ver caixa). Rui Alegre, administrador do grupo, “garantiu que pouco ou nada sabia sobre o esquema montado pela Esger [consultora detida pelo BES] para mascarar os ganhos nos negócios internacionais da empresa que comercializava, por exemplo, máquinas agrícolas, cortiça, calçado, têxteis, produtos alimentares e vinhos” – parte delas com destino a Cuba. “Cuba trocava produtos portugueses por muitas toneladas de lagosta, mas parte do resultado financeiro deste negócio terá sido escondido do fisco português entre 2001 e 2005”, escreve-se no livro. Para isso, o grupo usou sociedades offshore sediadas no Panamá e fez circular o dinheiro através de várias contas abertas em bancos suíços, nomeadamente na Compagnie Bancaire Espírito Santo, depois Banque Privée Espírito Santo.
Portugal é o país que mais fala e mais palavras inúteis diz DURANTE TRÊS ANOS AS CONTAS DA EMPRESA INCLUÍRAM MASSAGENS, COCKTAILSE PRODUTOS PARA BEBÉ
O interrogatório ao genro de Américo Amorim durou três horas – a assinatura de Rui Alegre estava em várias operações, mas o empresário alegou que assinava várias vezes sem ler e atribuiu a responsabilidade às empresas do grupo; já José Rios, o outro administrador constituído arguido, defendeu que o esquema foi usado para “ultrapassar as dificuldades burocráticas de mercados como os de Cuba”. Mas admitiu, também, que “várias transferências financeiras das contas bancárias da entidade Dorion para a Aberman Services – controladas pelo Grupo Amorim fora de Portugal – tinham servido em tempos para pagamentos a ‘pessoal, desde horas extraordinárias até prémios, incluindo complementos de vencimento’ que ‘eram feitos em numerário e não manifestados em sede fiscal”. Amorim nunca chegou a ser ouvido, mas duas das suas empresas pagaram, no âmbito da Operação Furacão, quase 3,8 milhões de euros para que o Ministério Público suspendesse a acusação até 2016 – o ano em que o caso foi definitivamente arquivado.
O SALTO NA ENERGIA E O CHOQUE COM ISABEL DOS SANTOS
h Se até 2005 Américo Amorim liderava uma das principais fortunas em Portugal – com interesses passados ou presentes na cortiça, no imobiliário, na banca, na energia e no turismo – foi com a entrada em força no capital da Galp que conquistou o estatuto de homem mais rico de Portugal. A Galp rende muito em
AFASTOU-SE DE ISABEL DOS SANTOS – AMBOS GOSTAM DE MANDAR. QUANDO MORREU, A EMPRESÁRIA ELOGIOU-O
dividendos, mas é a enorme valorização bolsista que faz a diferença – a empresa foi cotada em bolsa em 2006 a 5,81 euros por acção e vale hoje cerca de 13,5 euros. Nos últimos anos de vida, “era a menina dos olhos” do empresário, conta quem com ele privava. Era assim por ser a maior empresa do País, por ser muito rentável (só nos primeiros quatro anos rendeu 330 milhões de euros em dividendos à holding Amorim Energia) e, segundo o próprio Amorim gostava de dizer a quem o rodeava, por continuar graças a ele em mãos portuguesas, em contraste com a maioria das empresas em sectores estratégicos – um ponto importante para um empresário que no passado vendera a estrangeiros vários negócios, o que lhe mereceu acusações de falta de patriotismo (que muito o irritavam). Uma dessas vendas acontecera no seu primeiro ensaio como accionista da Petrogal. Amorim entrara em 1992 no consórcio privado (Petrocontrol) que acorreu à primeira fase de privatização da empresa. Depois de suportar perdas e um conflito com o Estado (por causa dos termos da segunda fase de privatização), saiu com grande lucro em 1995 vendendo à italiana Eni – isto após o governo de Guterres ter passado para a Petrogal os valiosos activos públicos de gás natural. A maisvalia foi isenta de impostos pelo governo, aumentando a polémica. Dez anos depois, voltaria a entrar na petrolífera para ficar precisamente ao lado da Eni. Para comprar os 33,34% do capital (que dão controlo maioritário sobre decisões estratégicas), pôs 1,6 mil milhões através da empresa Amorim Energia, mas não estava sozinho – a petrolífera estatal angolana Sonangol assumiu parte do capital da Amorim Energia, bem como o banco espanhol Caixa Galícia. A participação da Sonangol faz-se através da Esperanza Holdings que, por sua vez, pertence em 45% a Isabel dos Santos. (Amorim sempre teve boas relações em Luanda.)
A aliança entre a maior empresária angolana e o maior empresário português não seria livre de conflitos: ambos gostam de mandar. Os atritos começaram noutro negócio em que eram sócios, a cimenteira Nova Cimangola – Amorim sentiu que não tinha influência sobre o negócio, queixou-se de que o sector “estava muito governamentalizado em Angola” e repetiu o que fez muitas vezes ao longo da vida: bateu com a porta. Na Galp, a posição angolana não tinha acções da empresa – a participação era indirecta, através da Amorim Energia – e, apesar de receber dividendos, sentia que estava fora da enorme valorização das acções. Amorim, por outro lado, não queria perder a sua posição de controlo de 33,34%, diluindo-a para deixar entrar Isabel dos Santos. O braço-de-ferro agravou-se quando se chegou a perspectivar a entrada da Petrobas para a posição da Eni na Galp – os angolanos sentiam-se ultrapassados –, mas Amorim nunca cedeu e, entretanto, a desistência dos brasileiros serenou os ânimos. A relação entre os dois não chegou a ser cortada (ambos estariam unidos na redução do poder da Eni na Galp), longe disso. “Uma triste perda, Américo Amorim, um grande capitão de indústria”, publicou a filha de José Eduardo dos Santos na sua conta na rede social Instagram. “A sua vida marcou a história de Portugal.”
SALGADO: UM PARCEIRO ATÉ AO FIM
Num País pequeno um grande industrial e o principal banqueiro encontram-se em muitos negócios. Foi assim com Américo Amorim e Ricardo Salgado – entraram juntos na Petrocontrol e na Telecel (que seria comprada pela Vodafone). Uma fonte próxima do
AMORIM ADMITIU A IRRITAÇÃO COM AQUILO QUE DIZIA SEREM OS “TIQUES SNOBES” DE SALGADO DIRIGIDOS A SI
empresário conta que este admitia por vezes a sua irritação com o que percebia serem os “tiques snobes” de Salgado dirigidos a si. (Amorim, de resto, nunca passou bem junto da elite social, incluindo no Porto – a sua candidatura ao Clube Portuense terá sido rejeitada mais do que uma vez; o empresário desvalorizou sempre essa rejeição: “Esses círculos não fazem parte das minhas preocupações. Não posso estar a perder tempo com coisas que não têm nada a ver com o futuro”, disse em entrevista a Maria Filomena Mónica). A diferença social, como as diferenças de ideologia, nunca atrapalharam os negócios e os dois homens mantiveram uma relação que, não sendo de amizade, ia além do meramente profissional – frequentavam ocasionalmente festas familiares (incluindo casamentos) e tinham uma relação que fonte próxima de Amorim diz ser “civilizada”.
Amorim, sempre presciente nos negócios, não terá previsto o colapso do universo Espírito Santo e da liderança de Salgado, na qual acreditou. Duas sociedades do empresário, a Topbreach e a Oil Investments, tinham 179 milhões de euros investidos em dívida da Espírito Santo Irmãos, valor que foi vaporizado com a insolvência desta sociedade. É difícil saber como ficou a relação entre os dois – fonte próxima de Amorim conta que não terá havido mais contactos pessoais depois da resolução do BES. Amorim avançou para a justiça: em 2015 pôs uma acção de 179 milhões de euros contra o Novo Banco (apesar de a sociedade que falhou com ele estar no domínio do chamado “BES mau”); e, na véspera da sua morte, o Jornal de Negócios noticiou que avançara um segundo processo contra o Estado e o Banco de Portugal no valor de 200 milhões de euros. Este passo já foi dado pelos herdeiros, com as filhas à cabeça
– e serão eles a travar esta batalha.