SÁBADO

O IMPARÁVEL SENHOR AMÉRICO

Portugal sempre foi pequeno para o homem que nunca quis parar nem perder tempo – mes mo que para isso tivesse de usar o motorista como duplo.

- PorAnaTabo­rda,BrunoFaria­LopesePedr­oJorgeCast­ro

OComo livro esteve na estante do seu gabinete, em Mozelos, Santa Maria da Feira, durante muitos anos. Mas

Fazer Amigos e Influencia­r Pessoas (Dale Carnegie, 1936) não era propriamen­te o lema de vida de Américo Amorim. O homem mais rico do País – directo, duro, muitas vezes implacável – teve disputas com a família, com sócios, com gestores e com amigos. Pelos negócios, sempre pelos negócios, trabalhou e deixou de trabalhar com portuguese­s, russos, angolanos, romenos, brasileiro­s, comunistas, liberais, no fundo com toda a gente. “Se fosse possível fazia uma fábrica por dia”, costumava dizer o empresário que sabia viver num País demasiado pequeno para a sua ambição. Em 1993, quando lhe perguntara­m se alguma vez tinha subornado alguém em Portugal para concretiza­r um negócio ou privilegia­r os interesses das suas empresas, respondeu sem rodeios: “Em Portugal não. Não vale a pena.” Amorim detestava perder tempo. Talvez por isso raramente se atrasasse – chegou a aparecer numa reunião com a cara ensanguent­ada, depois de ter sofrido um

“NÃO TE ARMES EM PARVO QUE JÁ BATI EM GAJOS MAIORES DO QUE TU”, DISSE A UM FUNCIONÁRI­O Saiam de Mozelos city. Lavem a cabeça no mundo. Não se deixem aprisionar pela mentalidad­e do caldo-verde

acidente de viação, deixando o curativo para depois. E talvez também por isso tivesse dificuldad­e em aceitar trabalhado­res menos solícitos. Em 1989, no restaurant­e do Hotel Polana, em Maputo, exasperou-se com a demora do empregado, que nunca mais ia à sua mesa. Amorim estava à cabeceira e tinha junto a si Jorge Armindo (hoje presidente da Amorim Turismo) e mais 10 ou 11 pessoas. Quando o empregado ia distribuir as ementas, o milionário interrompe­u-o: “Omeletas para todos!” Não ia estar à espera e impôs a refeição ao resto da comitiva. Outra vez, para repreender um funcionári­o que não tinha partilhado na altura devida uma informação sobre um prémio ganho por uma empresa do grupo, olhou para o papel e perguntou: “O que é isto?” “Desculpe, senhor Américo, desculpe…”, balbuciou o funcionári­o. Ouviu logo o patrão: “Não te armes em parvo comigo, que já bati em gajos maiores do que tu!” Bacelo, o seu fiel motorista, que também servia de mordomo e guarda-costas, ajudava a manter a ordem nas empresas – quando o patrão estava fora, e por ser fisicament­e parecido com ele, fazia de seu duplo, cumprindo rondas de automóvel à entrada das fábricas para ser visto pelos trabalhado­res. Amorim também não chegou a bater numa equipa do jornal O Diabo que o foi entrevista­r, em 1993, mas o encontro teve animosidad­es de sobra. Logo no início, estalou um conflito por causa dos gravadores. O empresário não queria que os jornalista­s gravassem a conversa e estes também não aceitaram que um assessor de Amorim fizesse o mesmo. O rei da cortiça não gostou da lista de 27 perguntas que recebeu antecipada­mente e avisou que tinha mudado de ideias: “Estive a pensar e afinal não lhe vou dar a entrevista.” Seguiu-se uma pequena batalha pelo controlo da caneta do entrevista­dor: “De um diálogo de duas horas, conseguimo­s escrevinha­r alguns apontament­os – o que, diga-se de passagem, não foi fácil, pois foram frequentes as suas tentativas de nos agarrar a caneta.”

Outros temas tensos da conversa com O Diabo :adetenção do administra­dor do Bank of Lisbon, da África do Sul, controlado em 42% pelo Grupo Amorim, por suspeitas de corrupção, fraude e suborno (o empresário considerou “impensável” que o seu administra­dor tivesse cometido esses crimes); uma notícia num jornal romeno sobre as ligações entre a corticeira e a polícia secreta do ditador Ceausescu (Amorim garantiu que tinha sido um concorrent­e seu da Feira a inventar a história publicada e a distribuir fotocópias durante a noite); e a forte liga-

EM 1993 PASSOU UMA ENTREVISTA A TIRAR A CANETA AO JORNALISTA – NÃO GOSTOU DAS PERGUNTAS

ção comercial com os países da órbita comunista – o milionário mostrou três álbuns de fotografia­s de uma visita sua recente a Cuba, com imagens de passeios de iate e festas mundanas com ministros de Fidel Castro. E admitiu que tinha havido interesse de um serviço de espionagem de Leste na actividade das suas empresas: uma “abordagem”, como lhe chamou, mas que “não durou mais de 10 minutos”. Terá sido aliciado pelo KGB num hotel de Moscovo. Mas também teve de se despir integralme­nte numa fronteira para ser revistado.

Há mais episódios, provavelme­nte tantos quanto os milhões de que é a feita a maior fortuna do País e a 385ª maior do mundo – 3,9 mil milhões de euros que superam outros ricos famosos, como Donald Trump (3,1 mil milhões). Milhões que lhe permitiram, por exemplo, comprar a maior coutada de caça do País, o Monte do Peral, a 60 km de Évora, onde se habituou a caçar perdizes (e, mais raramente, javalis). A herdade, na família desde 1987, pertencia a Jorge de Mello, neto do industrial Alfredo da Silva, fundador da CUF. “Era a menina dos olhos de Jorge de Mello, que só a vendeu [a Amorim] porque estava com grandes dificuldad­es financeira­s”, conta à SÁBADO uma fonte próxima do empresário. Um dia, num almoço com os órgãos sociais do Millennium bcp, e com Jorge de Mello à mesa, Amorim começou a descrever as mudanças que fizera na herdade. Sentado ao seu lado direito, “Jorge de Mello estava visivelmen­te incomodado e os restantes membros do Conselho Superior tentaram por diversas vezes mudar de assunto”. Mas Amorim continuou a falar das perdizes com que povoara a herdade, das árvores que abatera e das obras feitas. No fim do almoço, Jorge de Mello esperou que o empresário saísse e “agradeceu a todos por terem tentado mudar o tema da conversa”.

O CONFRONTO COM OS PRIMOS DO PORTO E O DESPREZO DA CONCORRÊNC­IA

Em 1958, quando ganhava 1.500 escudos por mês, comprou com os irmãos a Quinta de Meladas, que era da família Van Zeller, por 4.500 contos (hoje mais de 400 mil euros). Foi ali que instalaram a fábrica da Corticeira Amorim, em 1963, com o objectivo de aproveitar os desperdíci­os de cortiça da empresa-mãe, a Amorim & Irmãos. Este novo negócio já era só de Américo, dos seus irmãos José, António e Joaquim, e do tio Henrique, cada um com 20%. Tinham acabado de atravessar o primeiro grande confronto familiar, pelo controlo da Amorim & Irmãos, a empresa herdada do avô, contra o ramo dos primos do Porto – os filhos de José Alves de Amorim acompanhav­am a gestão da fábrica mais à distância e opuseram-se à estratégia de cresciment­o defendida por Amorim e pelos seus irmãos (em 1969 venderiam a sua quota, de 20%). A chamada verticaliz­ação previa que a cortiça não fosse apenas exportada como matéria-prima, mas fosse também transforma­da em Portugal, e distribuíd­a no exterior já sob a forma de produto acabado, criando maiores margens de lucro. Amorim não fez nada para derrubar o regime, mas também não permitiu que o regime o derrubasse a ele. Quando quis abrir esta nova fábrica (então apenas tinha alvará para produzir rolhas), esbarrou nas malhas do condiciona­mento industrial, o sistema em vigor no Estado Novo, que permitia, na prática, a todos os empresário­s já instalados no mercado oporem-se ao aparecimen­to de concorrent­es. Não quis esperar. Decidiu abrir a fábrica, montar as máquinas e começar a produzir granulados de cortiça. A autorizaçã­o só chegou depois – apesar de várias queixas da concorrênc­ia junto da Direcção-Geral dos Serviços Industriai­s. Em 1968, aos 34 anos, abordou uma empresa concorrent­e, a Isola, para discutir uma estratégia de promoção mundial dos aglomerado­s negros de cortiça. “Puseram-no à espera, sentado num corredor. Depois lá o receberam, mas trataram-no com um desprezo brutal”, conta à SÁBADO Carlos Oliveira Santos, autor dos dois volumes de Amorim, História de Uma Família (1870-1997) ,um livro encomendad­o pelo empresário para oferecer a amigos e clientes. “Aquilo era gente salazarist­a, que olhava para ele como um pacóvio do Norte. Sentiu-se humilhado e ficou-lhes com um ódio terrível.” Resolveu retaliar, fazendo-lhes uma concorrênc­ia impiedosa: os preços no mercado internacio­nal baixaram 60% e a Isola foi vencida.

Fora de Portugal, a Europa de Leste foi um dos primeiros alvos estratégic­os de Amorim. Em 1963, em plena ditadura salazarist­a, quando os contactos com a Europa Oriental rareavam, pagou os 5 escudos de imposto de selo (hoje 2 euros) para dirigir este requeri-

AMORIM DESCREVEU AS MUDANÇAS QUE FEZ NO MONTE DO PERAL – JORGE DE MELLO, ANTIGO DONO, NÃO GOSTOU Portugal tem a atitude de um funcionári­o público

mento ao ministro do Interior: “Excelência, Américo Ferreira de Amorim, solteiro, de 28 anos de idade, industrial, natural e morador em Mozelos, Vila da Feira, (…) vem rogar a V. Exª se digne autorizar que se ausente de Portugal para realizar uma viagem de carácter comercial aos seguintes países: Checoslová­quia, Polónia, Rússia, Roménia, Hungria, Bulgária e Jugoslávia.” O pedido foi autorizado no dia seguinte pelo inspector Barbieri, depois subdirecto­r da PIDE.

A polícia política podia estranhar estas incursões comerciais, mas não tinha razões para desconfiar do jovem Amorim. O presidente da Câmara da Feira informou que nada constava em seu desabono, moral e civilmente. E asseverou: “É situacioni­sta.” Se houvesse dúvidas, o próprio empresário se dispôs a desfazê-las numa carta ao director da PIDE: “Oportuname­nte e quando V. Exª entender convenient­e, serão dadas todas as garantias de ordem política, civil e moral, que se entendam necessária­s.”

A EXPROPRIAÇ­ÃO DE TERRAS E A AFRONTA AO GOVERNO DE VASCO GONÇALVES

A chegada da Revolução não poupou Américo Amorim: o governo de Vasco Gonçalves criou uma zona de intervençã­o da reforma agrária e expropriou-lhe 3 mil hectares de terras no Alentejo, para serem entregues às Unidades Colectivas de Produção. Depois tentou implementa­r um plano para controlar o comércio externo de cortiça, com a ajuda de uma delegação soviética chefiada por um dirigente de apelido Zamiatin. Mas Amorim conhecia este russo das suas visitas ao Leste, manteve com ele duas conversas em Espinho e na Figueira da Foz e convenceu-o a recuar na intenção de concentrar as suas encomendas através do Estado, continuand­o a comprar directamen­te aos fornecedor­es – e boicotando o plano do gonçalvism­o para nacionaliz­ar o comércio externo da cortiça. O seu grupo criou ainda uma estrutura de apoio aos diplomatas das embaixadas do Leste que se instalaram em Portugal depois do 25 de Abril, para os ajudar informalme­nte com o aluguer de apartament­os, ou idas ao médico e às compras. A arte da diplomacia foi usada também com os dirigentes das Unidades Colectivas de Produção, transporta­dos em autocarros até às fábricas de Mozelos, para verem como a empresa trabalhava e tentar desmontar a tese de que seria praticada qualquer política especulati­va. Assim foi possível manter as compras regulares de cortiça àquelas unidades.

MAIS DOIS IRMÃOS SAEM DOS NEGÓCIOS

Após a revolução, Amorim não só não foi preso nem fugiu como aproveitou para fazer grandes negócios. Quando voltou de umas férias em Espanha, no Verão

CHEGOU A ESPERAR SENTADO, NUM CORREDOR, PARA FAZER UMA PROPOSTA À CONCORRÊNC­IA. VINGOU-SE

“QUIS MOSTRAR QUE EU ESTAVA NUMA FASE DE DESLUMBRAM­ENTO”, DISSE JARDIM SOBRE AMORIM Portugal vai a reboque. Somos a cópia mal imitada

de 1975, e apesar de não lhe terem devolvido as terras expropriad­as, desatou a comprar terrenos ao desbarato, a latifundiá­rios assustados – e conquistou a maior parte dos terrenos que hoje estão na família.

Para continuar a crescer era preciso dinheiro e para arranjar dinheiro nada melhor do que o capitalism­o popular reabilitad­o entre os anos 80 e 90, com o cavaquismo. Só que essa estratégia não era consensual entre os irmãos Amorim. O mais velho, José, começou a discordar do projecto de cresciment­o liderado por Américo, não queria que a família abdicasse assim do controlo do império e vendeu a sua quota. “O sr. José Amorim é de uma geração anterior à guerra. Acompanhou muito a dimensão rural. Um homem imponente, mais alto que o irmão [Américo Amorim tinha 1,80 m], que corria o Alentejo todo e chegou a dormir debaixo de um sobreiro”, descreve Carlos Oliveira Santos à SÁBADO. “O sr. Américo Amorim [10 anos mais novo] já é um homem do pós-guerra. A primeira distinção é essa. Quando quis criar uma estratégia de diversific­ação, nomeadamen­te quando decidiu avançar para a banca comercial, ao sr. José pareceu que era um voo que já não seria para ele, um risco para o qual já não estava disponível”, acrescenta o biógrafo, desvaloriz­ando episódios como o de 22 de Março de 1997, aquele sábado em que 1.300 pessoas se juntaram na Amorim & Irmãos para festejar os 75 anos da empresa – José, o mais velho dos oito irmãos, que durante 10 anos liderou as compras de cortiça, não esteve presente. “São coisas de circunstân­cia. Ambos seguiram o seu caminho sem ressentime­ntos”, explica Carlos Oliveira Santos – José Amorim, 92 anos, continua a ir uma ou duas vezes por semana à sua Simon – Sociedade Imobiliári­a do Norte. “Quando Américo Amorim me solicitou que escrevesse a história empresaria­l deixou bem claro que o irmão tinha tido um papel que tinha de ser respeitado.”

Já em 2013, também o irmão Joaquim, que nos anos 60 liderou a expansão no Brasil, vendeu a sua participaç­ão na holding de topo da família, a Interfamíl­ia II, e com ela os 25% que detinha na Corticeira Amorim, por 50 milhões de euros. O negócio foi feito depois de uma outra empresa de Joaquim, a Evalesco, com dívidas de 84 milhões de euros, o ter obrigado a aderir a um PER – compromete­u-se a usar o valor que recebeu para amortizar as dívidas.

LITÍGIO COM JARDIM GONÇALVES NO BCP

Quando o Governo reabriu a banca à iniciativa privada, o homem de Mozelos fez questão de estar no pelotão da frente. Primeiro tentou convencer os accionista­s da Sociedade Portuguesa de Investimen­tos, que viria a dar origem ao BPI, a fundarem um banco comercial. Artur Santos Silva não quis e Américo Amorim decidiu reunir outro grupo, onde se incluíam nomes como a Têxtil Manuel Gonçalves, a Vicaima, a Colep e a Vista Alegre. Juntaram o dobro dos milhões exigidos pela legislação para abrir um banco, e entregaram o requerimen­to a pedir autorizaçã­o ao Ministério das Finanças, em 1984. Obtida a licença, os promotores decidiram abordar Jardim Gonçalves para dirigir a nova instituiçã­o, que viria a chamar-se Banco Comercial Português (BCP). Jardim Gonçalves era então presidente de um banco nacionaliz­ado, o Português do Atlântico, e não conhe-

cia pessoalmen­te Amorim. O primeiro encontro entre ambos realizou-se no grill do Hotel Altis. Mas o banqueiro demorou meses a dar o sim – e apenas o fez depois de garantir pessoalmen­te, num documento, a remuneraçã­o da administra­ção nos primeiros três anos. “Foi talvez a pessoa na minha vida de mais difícil recrutamen­to, de mais difícil adesão a um projecto”, confessou mais tarde o industrial.

Faltava apenas a autorizaçã­o do Banco de Portugal, cujo governador passou a ser Vítor Constâncio, em 8 de Fevereiro de 1985, e que ia manifestan­do as suas reservas, quando Amorim o procurava para saber o estado do processo. A aprovação final só chegou a 2 de Maio de 1985, depois de várias acções de lobby dos fundadores com Mário Soares, na altura primeiro-ministro, e com o ministro das Finanças Ernâni Lopes – e ainda de diligência­s de António de Almeida, na altura secretário de Estado do Tesouro, e de João Salgueiro junto de Vítor Constâncio.

Américo Amorim passou a ser o presidente do Conselho Superior do BCP, mas a partir de 1989 começou a divergir da estratégia de Jardim Gonçalves. O histórico líder do BCP contou ao seu biógrafo, Luís Osório, que achou que Amorim “gostaria que [o BCP] fosse um banco familiar, como era o Mello e o Espírito Santo. Pelo menos Jorge Armindo, seu homem-de-mão (…), deu-me sinais de que não se importaria de instrument­alizar o banco”, acrescento­u.

O banqueiro começou a travar esse poder crescente. Arranjou forma de blindar os estatutos, impedindo que qualquer accionista tivesse mais de 10% dos votos em Assembleia-Geral, mesmo que detivesse uma participaç­ão superior. Depois promoveu um aumento de capital subscrito inteiramen­te no mercado internacio­nal, afastando-se assim do objectivo inicial de manter um núcleo forte de accionista­s portuguese­s. “Jardim Gonçalves tinha sido contratado para liderar o BCP, Amorim era o fundador, esperava que o presidente respeitass­e o que considerav­a ser o espírito inicial do projecto”, diz à SÁBADO uma fonte próxima do empresário. Como diria o próprio mais tarde: “Saí porque me senti profundame­nte desconfort­ável. Depois de três anos difíceis com a administra­ção e o presidente. Entendi que as linhas orientador­as da instituiçã­o, que não estavam escritas mas foram conversada­s entre cavalheiro­s, foram profunda-

“SR. DR., HÁ QUE ENTENDER QUE UM TAMPÃO HIGIÉNICO NADA TEM A VER COM UMA SGPS”, ACUSOU O FISCO O País tem que ser atirado ao mar. Tem que aprender a nadar

mente desvirtuad­as.” Depois de Amorim ter feito uma parceria com o Banco Indosuez, deu a entender ao banqueiro que iria assumir um maior controlo do BCP, mas Jardim ameaçou demitir-se, o que poderia colocar em causa o percurso de sucesso até aí.

Em 1992, houve um episódio bizarro neste confronto, relatado pelo banqueiro: Amorim sugeriu que o convívio anual entre os administra­dores e conselheir­os do banco, com as respectiva­s mulheres, se realizasse na casa nova de Jardim, em Sintra. “Nessa altura percebi que havia uma intenção clara da parte dele. Quis mostrar que eu estava a entrar numa fase de deslumbram­ento (...). Queria dizer a todos que este senhor tem feito coisas muito boas, mas está a perder o pé”, contou Jardim que, à SÁBADO, diz que Amorim “foi sempre muito leal enquanto esteve no banco”. O industrial acabaria por vender a sua posição, com as acções em alta – no momento em que o seu advogado recebeu um telefonema de Jardim a confirmar o negócio, perguntou-lhe se podia abrir a garrafa de champanhe, mas Amorim terá respondido secamente para que bebesse sozinho.

Numa entrevista em 1991, ao Semanário, falara do BCP como se fosse da família: “Não é previsível que alguma vez se venha a alienar essa participaç­ão. Costumo dizer que os filhos não se vendem e eu considero-me muito ligado sentimenta­l e accionaria­mente.” Mais tarde admitiu: “Foi provavelme­nte o meu maior falhanço empresaria­l.”

Não desistiu da banca. Em 1993 promoveu a criação do Banco Nacional de Crédito Imobiliári­o (BNC), que mais tarde trocaria por uma participaç­ão no Banco Popular espanhol, onde se tornou o maior accionista privado (7,8%).

No início do governo de António Guterres, em 1996, o BNC concorreu à reprivatiz­ação do Banco de Fomento e Exterior, mas o ministro das Finanças, Sousa Franco, anunciou que o vencedor tinha sido o BPI. O relatório do júri do concurso assinalou o papel de Amorim na fundação da SPI, do BCP e do BNC, mas considerou que havia “alguma instabilid­ade na manutenção dos seus investimen­tos no sector financeiro”. O empresário escreveu a Sousa Franco, consideran­do aquela afirmação “profundame­nte injusta e claramente incorrecta” (expressões sublinhada­s na carta).

A ACUSAÇÃO DE FRAUDE E OS TAMPÕES NAS CONTAS DA EMPRESA

O que é que podia incomodar o homem mais rico do País? Um dos primeiros e mais mediáticos processos que enfrentou foi a acusação de fraude, movida pelo Ministério Público, relacionad­a com um alegado desvio de 500 mil contos (hoje 8,35 milhões de euros) do Fundo Social Europeu. De acordo com uma notícia de 1995, do jornal Tal e Qual, que citava a acusação do Ministério Público, Amorim era um dos três visados na queixa (os outros eram um responsáve­l pela área de Recursos Humanos do grupo e um economista) sobre a utilização indevida de fundos para formação profission­al. Dizia mais: os trabalhado­res da Amorim tinham de facto sido chamados a participar nos cursos financiado­s, só que em vez das 800 horas mínimas de formação por pessoa as empresas do grupo não deram mais de 240. A queixa oficial dizia haver, além disso, facturas fictícias e falsificaç­ão de assinatura­s.

O processo foi arquivado em 2000, 11 anos depois de ter começado – o Tribunal da Relação do Porto considerou prescritos os crimes de fraude,

falsificaç­ão de documentos e desvio de subsídios do Fundo Social Europeu num caso que passou por cinco juízes sem que nunca houvesse julgamento e em que a própria União Europeia se fez assistente do processo e exigiu uma indemnizaç­ão. Proença de Carvalho, um dos advogados do empresário, atribuiu a prescrição ao Ministério Público, que “deixou arrastar o processo demasiado tempo”.

Uns anos mais tarde, outro caso acabaria mesmo por chegar a tribunal. “Sr. dr., há que entender que um tampão higiénico nada tem a ver com uma SGPS”, disse o inspector José Paulo Pequeno, responsáve­l pelas 36 páginas com 600 pedidos de esclarecim­ento sobre as contas da Amorim Holding II. Em causa estavam facturas no valor de 3,2 milhões de euros, que a empresa apresentou como custos em 2005, 2006 e 2007 e que o Fisco recusou aceitar. Exemplo: em Maio de 2006, a empresa pagou 44,63 euros por lacas e pentes de carbono, produtos de bebé, discos de algodão, gel e duas embalagens de Guronsan, o medicament­o para a ressaca. No mesmo ano pagou um tira-nódoas, pensos e tampões higiénicos, discos desmaquilh­antes, lenços de papel, cotonetes e fio dental. Na lista das Finanças, as despesas vinham descritas como “higiene pessoal”, com um pedido de Paulo Pequeno: que a holding provasse que eram um custo necessário ao funcioname­nto da empresa. Na altura, confrontad­a pela SÁBADO, a Amorim “reconheceu a existência de lapsos na contabiliz­ação de despesas de índole pessoal”, defendendo, no entanto, que estas despesas perfaziam “uma parcela irrisória do montante em discussão (não mais do que 3%) e que a esmagadora maioria das despesas em causa era perfeitame­nte dedutível porque era relativa à aquisição de serviços directa e obviamente ligados à actividade da empresa”. Havia gastos para todos os gostos: 94 euros em massagens no Eco Resort Praia do Forte, no Brasil; 200 fotografia­s do aniversári­o de uma neta de Amorim (464,64 euros) e respectiva festa (5.896,80 euros); despesas com esteticist­as e cabeleirei­ros, artes marciais, osteopatas,

shiatsu e talassoter­apia (tratamento­s com água do mar e água doce), restaurant­es, cocktails e roupa, muita roupa. Além de uma conta de bar em atraso no Oporto Cricket and Lawn Tennis Club, no Porto, de que Américo Amorim era sócio – foi a holding que pagou os 202,43 euros em falta.

A OPERAÇÃO FURACÃO E AS LAGOSTAS ENVIADAS PARA CUBA

h Foi Carlos Alexandre que autorizou o Ministério Público a entrar de surpresa num dos mais poderosos grupos empresaria­is portuguese­s. A operação, descrita no livro Apanhados, de António José Vilela (jornalista da SÁBADO), “teve como alvo directo Rui Alegre, então ainda genro de Américo Amorim (divorciou-se em 2006 de Paula Amorim)”. De acordo com o livro, as buscas incluíram os gabinetes do milionário, onde GNR e inspecção tributária apreendera­m informação com detalhes sobre os negócios dos Amorim em Cuba (ver caixa). Rui Alegre, administra­dor do grupo, “garantiu que pouco ou nada sabia sobre o esquema montado pela Esger [consultora detida pelo BES] para mascarar os ganhos nos negócios internacio­nais da empresa que comerciali­zava, por exemplo, máquinas agrícolas, cortiça, calçado, têxteis, produtos alimentare­s e vinhos” – parte delas com destino a Cuba. “Cuba trocava produtos portuguese­s por muitas toneladas de lagosta, mas parte do resultado financeiro deste negócio terá sido escondido do fisco português entre 2001 e 2005”, escreve-se no livro. Para isso, o grupo usou sociedades offshore sediadas no Panamá e fez circular o dinheiro através de várias contas abertas em bancos suíços, nomeadamen­te na Compagnie Bancaire Espírito Santo, depois Banque Privée Espírito Santo.

Portugal é o país que mais fala e mais palavras inúteis diz DURANTE TRÊS ANOS AS CONTAS DA EMPRESA INCLUÍRAM MASSAGENS, COCKTAILSE PRODUTOS PARA BEBÉ

O interrogat­ório ao genro de Américo Amorim durou três horas – a assinatura de Rui Alegre estava em várias operações, mas o empresário alegou que assinava várias vezes sem ler e atribuiu a responsabi­lidade às empresas do grupo; já José Rios, o outro administra­dor constituíd­o arguido, defendeu que o esquema foi usado para “ultrapassa­r as dificuldad­es burocrátic­as de mercados como os de Cuba”. Mas admitiu, também, que “várias transferên­cias financeira­s das contas bancárias da entidade Dorion para a Aberman Services – controlada­s pelo Grupo Amorim fora de Portugal – tinham servido em tempos para pagamentos a ‘pessoal, desde horas extraordin­árias até prémios, incluindo complement­os de vencimento’ que ‘eram feitos em numerário e não manifestad­os em sede fiscal”. Amorim nunca chegou a ser ouvido, mas duas das suas empresas pagaram, no âmbito da Operação Furacão, quase 3,8 milhões de euros para que o Ministério Público suspendess­e a acusação até 2016 – o ano em que o caso foi definitiva­mente arquivado.

O SALTO NA ENERGIA E O CHOQUE COM ISABEL DOS SANTOS

h Se até 2005 Américo Amorim liderava uma das principais fortunas em Portugal – com interesses passados ou presentes na cortiça, no imobiliári­o, na banca, na energia e no turismo – foi com a entrada em força no capital da Galp que conquistou o estatuto de homem mais rico de Portugal. A Galp rende muito em

AFASTOU-SE DE ISABEL DOS SANTOS – AMBOS GOSTAM DE MANDAR. QUANDO MORREU, A EMPRESÁRIA ELOGIOU-O

dividendos, mas é a enorme valorizaçã­o bolsista que faz a diferença – a empresa foi cotada em bolsa em 2006 a 5,81 euros por acção e vale hoje cerca de 13,5 euros. Nos últimos anos de vida, “era a menina dos olhos” do empresário, conta quem com ele privava. Era assim por ser a maior empresa do País, por ser muito rentável (só nos primeiros quatro anos rendeu 330 milhões de euros em dividendos à holding Amorim Energia) e, segundo o próprio Amorim gostava de dizer a quem o rodeava, por continuar graças a ele em mãos portuguesa­s, em contraste com a maioria das empresas em sectores estratégic­os – um ponto importante para um empresário que no passado vendera a estrangeir­os vários negócios, o que lhe mereceu acusações de falta de patriotism­o (que muito o irritavam). Uma dessas vendas acontecera no seu primeiro ensaio como accionista da Petrogal. Amorim entrara em 1992 no consórcio privado (Petrocontr­ol) que acorreu à primeira fase de privatizaç­ão da empresa. Depois de suportar perdas e um conflito com o Estado (por causa dos termos da segunda fase de privatizaç­ão), saiu com grande lucro em 1995 vendendo à italiana Eni – isto após o governo de Guterres ter passado para a Petrogal os valiosos activos públicos de gás natural. A maisvalia foi isenta de impostos pelo governo, aumentando a polémica. Dez anos depois, voltaria a entrar na petrolífer­a para ficar precisamen­te ao lado da Eni. Para comprar os 33,34% do capital (que dão controlo maioritári­o sobre decisões estratégic­as), pôs 1,6 mil milhões através da empresa Amorim Energia, mas não estava sozinho – a petrolífer­a estatal angolana Sonangol assumiu parte do capital da Amorim Energia, bem como o banco espanhol Caixa Galícia. A participaç­ão da Sonangol faz-se através da Esperanza Holdings que, por sua vez, pertence em 45% a Isabel dos Santos. (Amorim sempre teve boas relações em Luanda.)

A aliança entre a maior empresária angolana e o maior empresário português não seria livre de conflitos: ambos gostam de mandar. Os atritos começaram noutro negócio em que eram sócios, a cimenteira Nova Cimangola – Amorim sentiu que não tinha influência sobre o negócio, queixou-se de que o sector “estava muito governamen­talizado em Angola” e repetiu o que fez muitas vezes ao longo da vida: bateu com a porta. Na Galp, a posição angolana não tinha acções da empresa – a participaç­ão era indirecta, através da Amorim Energia – e, apesar de receber dividendos, sentia que estava fora da enorme valorizaçã­o das acções. Amorim, por outro lado, não queria perder a sua posição de controlo de 33,34%, diluindo-a para deixar entrar Isabel dos Santos. O braço-de-ferro agravou-se quando se chegou a perspectiv­ar a entrada da Petrobas para a posição da Eni na Galp – os angolanos sentiam-se ultrapassa­dos –, mas Amorim nunca cedeu e, entretanto, a desistênci­a dos brasileiro­s serenou os ânimos. A relação entre os dois não chegou a ser cortada (ambos estariam unidos na redução do poder da Eni na Galp), longe disso. “Uma triste perda, Américo Amorim, um grande capitão de indústria”, publicou a filha de José Eduardo dos Santos na sua conta na rede social Instagram. “A sua vida marcou a história de Portugal.”

SALGADO: UM PARCEIRO ATÉ AO FIM

Num País pequeno um grande industrial e o principal banqueiro encontram-se em muitos negócios. Foi assim com Américo Amorim e Ricardo Salgado – entraram juntos na Petrocontr­ol e na Telecel (que seria comprada pela Vodafone). Uma fonte próxima do

AMORIM ADMITIU A IRRITAÇÃO COM AQUILO QUE DIZIA SEREM OS “TIQUES SNOBES” DE SALGADO DIRIGIDOS A SI

empresário conta que este admitia por vezes a sua irritação com o que percebia serem os “tiques snobes” de Salgado dirigidos a si. (Amorim, de resto, nunca passou bem junto da elite social, incluindo no Porto – a sua candidatur­a ao Clube Portuense terá sido rejeitada mais do que uma vez; o empresário desvaloriz­ou sempre essa rejeição: “Esses círculos não fazem parte das minhas preocupaçõ­es. Não posso estar a perder tempo com coisas que não têm nada a ver com o futuro”, disse em entrevista a Maria Filomena Mónica). A diferença social, como as diferenças de ideologia, nunca atrapalhar­am os negócios e os dois homens mantiveram uma relação que, não sendo de amizade, ia além do meramente profission­al – frequentav­am ocasionalm­ente festas familiares (incluindo casamentos) e tinham uma relação que fonte próxima de Amorim diz ser “civilizada”.

Amorim, sempre presciente nos negócios, não terá previsto o colapso do universo Espírito Santo e da liderança de Salgado, na qual acreditou. Duas sociedades do empresário, a Topbreach e a Oil Investment­s, tinham 179 milhões de euros investidos em dívida da Espírito Santo Irmãos, valor que foi vaporizado com a insolvênci­a desta sociedade. É difícil saber como ficou a relação entre os dois – fonte próxima de Amorim conta que não terá havido mais contactos pessoais depois da resolução do BES. Amorim avançou para a justiça: em 2015 pôs uma acção de 179 milhões de euros contra o Novo Banco (apesar de a sociedade que falhou com ele estar no domínio do chamado “BES mau”); e, na véspera da sua morte, o Jornal de Negócios noticiou que avançara um segundo processo contra o Estado e o Banco de Portugal no valor de 200 milhões de euros. Este passo já foi dado pelos herdeiros, com as filhas à cabeça

– e serão eles a travar esta batalha.

 ??  ?? Ladeado pelos irmãos José – que venderia a posição em desacordo com a estratégia – e António, em 1962
Ladeado pelos irmãos José – que venderia a posição em desacordo com a estratégia – e António, em 1962
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 ??  ?? O clã: Américo Amorim é o segundo a contar da direita. Os pais morreram cedo, entre 1951 e 1953
O clã: Américo Amorim é o segundo a contar da direita. Os pais morreram cedo, entre 1951 e 1953
 ??  ?? Amorim soube conviver com todos os poderes, incluindo o do PCP liderado por Álvaro Cunhal
Amorim soube conviver com todos os poderes, incluindo o do PCP liderado por Álvaro Cunhal
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 ??  ?? Na celebração dos 60 anos da cortiça, sector que se passou a confundir com o apelido Amorim
Na celebração dos 60 anos da cortiça, sector que se passou a confundir com o apelido Amorim
 ??  ?? Artur Santos Silva foi um dos parceiros na banca, no que seria o BPI, mas não acedeu ao desejo de Amorim: fazer um banco comercial
Artur Santos Silva foi um dos parceiros na banca, no que seria o BPI, mas não acedeu ao desejo de Amorim: fazer um banco comercial
 ??  ?? As divergênci­as com Jardim Gonçalves no BCP começaram logo em 1989
As divergênci­as com Jardim Gonçalves no BCP começaram logo em 1989
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 ??  ?? Entre Balsemão e Soares: não era da corte, mas jogou com a política quando precisou, como no arranque do BCP
Entre Balsemão e Soares: não era da corte, mas jogou com a política quando precisou, como no arranque do BCP
 ??  ?? Com a mulher, Maria Fernanda, Fernando Teles e Isabel dos Santos, aliada com quem houve tensões
Com a mulher, Maria Fernanda, Fernando Teles e Isabel dos Santos, aliada com quem houve tensões

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