SÁBADO

Os heterossex­uais discretos

- Ângela Marques

A camisola de alças, a cara de quem

trazia umas verdades para dizer e o canto de boca de quem escondia a melhor mão da mesa – aquilo nem era xadrez, mas ele preparava-se para fazer um xeque-mate e ganhar o jogo ao mundo via Instagram. Com o sotaque do Carnaval do Rio, ele sambou em directo. Assim: “Heteros? Respeito. Até tenho amigos que são. Só acho que eles podiam ser um pouco mais discretos.” Do lado de cá do ecrã, ri-me alto, num estrondo, metade vilã de filme de animação metade “nunca fui a uma parada gay, devia era ter vergonha de me rir com isto”.

O directo acabou e daquele miúdo negro e gay (quem sabe pobre) guardei só o jeito livre e o discurso de presidente dos Estados Unidos dos LGBT (também gostei da luva que ele escolheu para servir aquela bofetada de luva branca, mas aí é uma questão de gosto e vi que o nosso é bom). A piada – que era mais piada e menos manifesto, mesmo tendo “recado” escrito na fronte – tinha saído toda certa. Se toda a vida lhe têm pedido que seja discreto, ele pede de volta (que pedir não ofende, ofende?).

Uns dias depois, noutro directo (este frente-a-frente, com direito a café e reciprocid­ade), ouvi uma mulher alegadamen­te heterossex­ual dizer que sempre que puder dizer que é bi dirá. Sorri, quis saber mais. Contou-me que a primeira vez que o fez foi num daqueles programas de televisão das 10h da manhã que receitam choro, medo e Calcitrin na mesma dosagem. Naquela tarde o filho mais velho ter-lhe-á perguntado: “Mamãe, porquê?” Com toda a calma do mundo – e sem o peso dele –, ela ter-lhe-á respondido: “Porque eu posso, filho. Eu não tenho de ser discreta. Ninguém tem.”

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