SÁBADO

U-SE UMA ESPÉCIE

À mágoa de ter sido preso e abandonado pelos amigos no pós 25-de Abril.

- PorMariaHe­nriqueEspa­da

de alma lavada.” Edmundo Pedro era o último dos tarrafalis­tas, o derradeiro ex-prisioneir­o a poder ainda contar assim, na primeira pessoa, as memórias da mais violenta prisão política do Estado Novo, o campo do Tarrafal. Não voltará a fazê-lo. Morreu no sábado, dia 27, aos 99 anos, de uma pneumonia. No princípio do ano, ainda foi almoçar ao D. Feijão, um restaurant­e perto de casa, na zona de Alvalade, com Elísio Summaviell­e e o jornalista Luís Osório. Polvo cozido, era um dos seus pratos preferidos. Já saía menos de casa e só com boleia de amigos – conduziu até aos 90 anos, mas depois parou, sentia ter menos reflexos. Mas estava bem, já a combinar novos encontros, e a pensar até na festa que faria quando fizesse 100 anos.

Armas, prisão e mágoa

Elísio Summaviell­e conhecia Edmundo do Bairro das Estacas, em Lisboa, na zona de Alvalade. Moraram na mesma rua e Edmundo Pedro manteve-se na mesma casa, na R. Antero de Figueiredo, até ao fim da vida. O bairro era uma morada adequada a quem de pequeno foi da oposição, já que ali também moraram muitos velhos republican­os, Alves Redol e o embaixador José Fernandes Fafe (falecido o ano passado) e muitos outros opositores do regime. Edmundo nasceu no Samouco (Alcochete), em 1918. O pai, Gabriel Pedro, era já um militante antifascis­ta muito activo, tal como a mãe, Margarida, ambos ligados ao anarco-sindicalis­mo. Dado o perigo deste modo de vida para o bebé, foi entregue a uma tia conservado­ra. Aos 13 anos fugiu de casa e do sossego e aderiu à Federação das Juventudes Comunistas Portuguesa­s. Foi preso aos 15 anos, por conspirar contra o regime. E essa foi apenas a primeira vez. Que tenha persistido uma e outra vez é uma prova de resistênci­a, porque os 10 anos no Tarrafal foram um teste desumano. Tentou a fuga, com o pai e mais três prisioneir­os. Dois foram imediatame­nte apanhados. Ele, o pai, e um companheir­o ainda levaram um barco de pescadores, que foram “convencido­s” com uma pistola falsa feita nas oficinas. Mas os pescadores avisaram os guardas. Foram apanhados. De volta ao campo, o castigo foram 70 dias na frigideira, uma cela solitária sem janelas onde a temperatur­a atingia 50 graus e os prisioneir­os “fritavam”. Esteve dias sem beber – lambiam a humidade que se condensava nas paredes à noite – e quando saiu e pôde fazêlo não conseguiu, a língua tinha inchado demasiado. O pai tentou suicidar-se, cortou os pulsos. Edmundo tentou fugir quatro vezes – de resto, de todas as vezes que foi preso, tentou sempre. Uma delas não foi previament­e combinada com o PCP, que não aceitou essa liberdade e suspendeu-o da militância. Quando saiu, o preso libertou-se também do PCP. Nunca pediu a readmissão.

Mas sabe perdoar. Já depois do 25 de Abril, um ex-PIDE desconheci­do telefonou-lhe para casa. Fernando Colaço ficara marcado ao ver, em Janeiro de 1963, um preso a ser torturado pela PIDE, após mais uma tentativa de fuga da prisão. Ao jornal Público, contou, em Julho do ano passado, o que viu a partir da porta: um homem “algemado atrás das costas, encostado à parede, no momento em que o colega lhe estava a colocar um adesivo branco na boca”, para calar os gemidos, e a ser sucessivam­ente socado até cair no chão. Esse homem era Edmundo Pedro. “Foi um valentão o Edmundo, o que ele aguentou. Com os socos que levou, podia ter morri-

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