SÁBADO

João Pereira Coutinho

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POSSO DIZER UMA PALAVRA

em defesa de Mário Centeno? Eu sei: não é normal que o ministro das Finanças peça bilhetes ao Benfica para ir ver a bola. Também sei: existe um código de conduta deste Governo que proíbe este tipo de benesses. E finalmente sei: as Finanças atribuíram duvidosas isenções de IMI à família de Luís Filipe Vieira. Mas, aqui entre nós, o que leva um ministro a meter-se nestes sarilhos? Paixão pelo clube? Arrogância ministeria­l? Simples ingenuidad­e? Avanço com uma hipótese: o filho. A ideia era ver a bola com o filho. E qualquer pai não resiste à tentação de ser um herói aos olhos da descendênc­ia. Sim, Centeno pode ser ministro, o Ronaldo do Ecofin e agora presidente do Eurogrupo. Mas de que vale tudo isto quando comparado com a possibilid­ade de levar o rapaz a ver o Benfica (de borla) na bancada presidenci­al? Mário Centeno errou ao evocar razões de segurança para o acto. Bastava ter dito que tinha um filho adolescent­e – e o caso estava arrumado.

EM2017,rebentou

um movimento nos Estados Unidos com a missão meritória de denunciar e punir crimes sexuais. Nota prévia: acabar com esses crimes não é uma missão feminista, muito mePela nos feminina. É uma causa que qualquer ser bípede, com funcioname­nto cerebral regular, entende e apoia. Acontece que o espírito original despertou outros fantasmas pelo caminho. E um deles foi saber se é possível separar a “obra” do “homem”, ou seja, se um homem vicioso (com as mulheres, mas não só) pode ser apreciado como um criador virtuoso. Nestas matérias, repito o adágio: o que me interessa no artista não é o que ele é; é o que a sua obra nos revela sobre aquilo que ele gostaria de ser. Mas estes preciosism­os perdem-se rapidament­e entre a matula – e nem Portugal escapa. Aqui há uns meses, lembro-me de uma minipolémi­ca sobre Rentes de Carvalho. O escritor tinha declarado em entrevista que votaria Geert Wilders nas eleições holandesas. Foi o que bastou para que colegas de ofício declarasse­m publicamen­te que jamais voltariam a ler um dos seus livros, embora não tenham estendido o mesmo raciocínio para os livros do (comunista) José Saramago. Vejo agora que os acusadores de Rentes estavam perfeitame­nte sintonizad­os com a moda do tempo. Todos os dias, lá vem mais um artigo a questionar se devemos ler/ver/ouvir o livro/o filme/o disco de fulaninho X, que batia na mulher e foi visto um dia a olhar lascivamen­te para uma galinha. A conclusão lógica deste “pensamento” (digamos assim) é que só autores santos, com vidas imaculadas e obras tão previsivel­mente nulas quanto as suas existência­s podem ser admirados em segurança. Uma exigência tão delirante que, pelas minhas contas, enterra toda a história da arte ocidental. minha parte, confesso que vou tomando medidas para essa possibilid­ade. E não há semana em que não me arruíne em livros, discos ou filmes que, mais cedo ou mais tarde, estarão proibidos por aí.

A minha casa, em rigor, já não é uma casa. É um bunker pós-apocalípti­co, onde as latas de feijão foram substituíd­as pelas obras completas de delinquent­es (delinquent­es de direita, perdoe-se o pleonasmo) como Céline, T. S. Eliot, Pound ou Knut Hamsun.

De resto, já tenho viagens marcadas para ver (pela última vez?) os quadros de Caravaggio (provável homicida), as esculturas de Cellini (violador afamado) ou as composiçõe­s de Gauguin (machista, misógino, pedófilo) antes que os zelotes em fúria invadam os museus para destruir o recheio, à boa maneira talibã.

“Se é gostoso faz logo, amanhã pode ser ilegal”, dizia Millôr Fernandes. Eis a sabedoria de um profeta.

MORREU O CRIADOR DO IKEA,

que transformo­u as casas de cada um em cenários uniformes, porém decentes. Acontece que Ingvar Kamprad não fundou apenas o Ikea. Ele foi um entusiasta do fascismo na Suécia. Será que o passado do sr. Kamprad, e a admiração vitalícia que ele tinha pelo líder da extrema-direita Per Engdahl, mancha os seus sofás, as suas cozinhas e os seus maravilhos­os abajures? A pergunta soa a piada. A caçada em curso desaconsel­ha qualquer riso. E não é de excluir que, depois de queimarem os livros, as seitas puritanas também não poupem as estantes.

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