Pré-publicação
Passou os últimos meses de vida a escrever o livro – um tributo ao filho – que chega às livrarias dia 14. É lá que recorda a infância, o tempo em que viveu na rua, a carreira e a luta contra o cancro
O livro de memórias do actor João Ricardo
Quando tento voltar atrás, à primeira memória feliz da minha infância, vejo-me com uns 9 anos. Estou no circo, pela primeira vez, com a minha avó Joana.
É curiosa a forma como a memória funciona. Como a minha memória, agora, funciona. Como episódios tão distantes parecem tão mais presentes que outros, mais recentes, que o meu cérebro deixou de conseguir recordar.
Entre o ruído, no circo, há um som que ouço mais alto que qualquer outro: é o meu coração, a bater de encontro ao peito, tão forte que juro que a qualquer momento vai saltar e ficar ali, no chão, à vista de todos. Vejo os trapezistas lançarem-se no ar e é como se tudo à minha volta ficasse um bocadinho mais longe. A magia, o medo, tudo se confunde naqueles segundos em que os artistas ficam suspensos no ar, entre os trapézios. A vida inteira cabe naqueles centímetros. E sobre mim, como se assistisse a um milagre, estes homens voam, derrotam a gravidade e vencem a morte. Ainda sinto o coração demasiado grande no peito quando entram os palhaços, de caras cobertas de tinta, sorrisos enormes desenhados a vermelho, roupas que lhes sobram, tropeçando neles mesmos. A sala irrompe em gargalhadas, as crianças, como eu, têm os olhos brilhantes de rir enquanto puxam pelas mangas dos adultos e eu penso que nunca vi nada tão incrível e sei, com absoluta certeza, que nunca poderei ser outra coisa na vida: vou ser artista. O meu sonho – um plano, a meu ver, à prova de falhanço – não foi propriamente bem recebido em casa. O meu pai, um homem essencialmente prático, com uma enorme fé no trabalho e na disciplina, disse-me imediatamente que me deixasse de disparates e me dedicasse, em vez disso, à escola, para um dia poder ganhar dinheiro. Na altura ainda não podia sabê-lo, mas seria também por isso que nos afastaríamos, anos depois.
Ainda assim, há que dizer que se hoje sou actor é também graças ao meu pai. Apesar do exterior rígido, o meu pai adorava cantar, acho mesmo que tinha um fundo de artista, e
“QUANDO FUI AO CIRCO PERCEBI – NUNCA PODEREI SER OUTRA COISA NA VIDA: VOU SER ARTISTA”
gostava especialmente de canções românticas. Trabalhava na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa, e era ali que se encontrava o seu grupo de amigos. Era um adepto ferrenho do Benfica e ficava ali, também, a sede do clube. Além disso, era muito amigo do dono do Coliseu, o Ricardo Covões, e conhecia por lá toda a gente. Foi ele quem me levou pela primeira vez ao cinema, ao Odeon, na Rua dos Condes [...] E foi lá também que, graças aos contactos do meu pai, me conseguiu introduzir num filme que não era para a minha idade, e assisti, com cerca de 10 anos, a O Destino Marca a Hora, do Henrique Campos. Era um filme com o Tony de Matos, que o meu pai adorava e que a partir daí viria a ser uma figura marcante para mim. Mais uma vez, tal como tinha acontecido no circo, saí da sala lavado em lágrimas. Tinha sido um momento mágico, de emoção pura – ainda hoje, com 53 anos, são esses momentos que me fazem chorar.
Beijos à cinema com a prima
A experiência do cinema mudara a minha vida. Chegados a casa, fechei o meu pai no escritório dele e, com toda a coragem que tinha dentro de mim, ainda inspirado pela emoção, informei-o: “Pai, não tenho outra opção na vida. Quero ser actor.” Infelizmente, o dramatismo do meu gesto não foi suficiente para o fazer mudar de ideias e, mais uma vez, o meu pai colocou rapidamente de lado os meus planos “malucos”. Mas a semente do sonho já lá estava, a germinar, a fincar raízes cada vez mais fundas, e, por essa altura, já não havia nada a fazer.
O facto é que sou actor há 40 anos, mas já o era muito antes de o ser. Quando me perguntam porque foi que escolhi esta profissão, não encontro explicação melhor que esta história, do primeiro filme que vi. Era um filme que abordava a felicidade e a infelicidade das famílias, uma história trágica, de amor e desgosto e de duas crianças que, na escola, descobrem que são filhas do mesmo pai, um cantor famoso que perdeu a mulher, mãe de uma delas, quando ela dava à luz. Agora, que sou adulto e consigo perceber como a família sempre me faltou, penso que talvez tenha sido isso que, aos meus olhos de criança, me fez acreditar que mais nada me poderia fazer feliz a não ser representar. Depressa encontrei forma de levar avante o meu plano. Com o grupo dos escuteiros de São Mamede, onde vivíamos, organizava espectáculos na igreja, para as crianças pobres, nos quais me cabia sempre o papel de palhaço. Sentia-me, finalmente, a fazer tudo o que queria. Queria ser actor, inventava uns filmes. Queria fazer espectáculos, inventava espectáculos. Havia, na altura, uma liberdade diferente na infância, brincava-se na rua e podíamos fazer do mundo inteiro o nosso palco. Foi também nessa fase que aprendi a dar beijos à cinema, ensinado pela minha prima. Inventávamos um filme e a meio, inevitavelmente, lá havia uma cena com beijo à cinema – ou mais valia nem haver filme! A realidade, aquela que ficava fora dos ecrãs e dos palcos, nem sempre era alegre. Tinha 4 anos quando os meus pais se separaram. Em casa, tenho uma foto dos três, eu, um bebé gordo, todos com sorrisos rasgados, a minha mãe e o meu pai fitando a objectiva como se tudo no mundo lhes fosse possível. Depois da separação, passei a viver apenas com o meu pai, e a minha mãe praticamente desapareceu da minha vida. Cresci sem o colo dela, sem os afectos femininos de uma mulher lindíssima, das mais bonitas que conheci. Sentia necessidade de vê-la, uma necessidade básica, quase genética, e a simples ideia de o poder fazer era uma aventura. [...] A verdade é que, até aos meus 20 anos, vi-a apenas umas quatro ou cinco vezes. [...] Lamento não nos termos encontrado mais cedo, faltou-nos tempo. Faltou-nos colo. Ficaram tantas coisas por dizer.
“APRENDI A DAR BEIJOS À CINEMA COM A MINHA PRIMA. INVENTÁVAMOS UM FILME E A MEIO LÁ HAVIA UMA CENA DE BEIJO”