SÁBADO

Entre as espadas e a parede

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Dizia-se que um “exército mexicano” era aquele que manipulava ou era manipulado pelos políticos, tinha mais generais do que soldados, e não possuía dinheiro para pagar a nenhum deles.

Não queremos, obviamente, que as Forças Armadas (FA) portuguesa­s se transforme­m nisso.

Desde o fim das tentações pretoriana­s, quando se pretendia fazer da instituiçã­o militar um “poder social”, que se estabelece­ram vários pactos. Um deles é o da discussão das questões internas nas sedes próprias. Por outras palavras: nem pronunciam­entos (aconselháv­el a quem pronuncia mal), nem quartelada­s, nem greve geral. As FA, salvo raras e condenadas excepções, têm mantido essa lealdade aos compromiss­os, e mostrado mérito em muitas arriscadas contingênc­ias internacio­nais em que se empenharam.

Mas devido à promessa de silêncio, é preciso que alguém fale sobre os problemas militares, quando estes ficam por resolver. Ou são mal compreendi­dos pelo poder político. Ou são mal explicados pelas chefias. Ou aparecem ou como exageros ou meras birras corporativ­as.

A verdade é que, desde o fim compreensí­vel (o que não quer dizer bom) do serviço militar obrigatóri­o, as FA passaram a ter de viver exclusivam­ente da capacidade para atrair suficiente­s voluntário­s e profission­ais.

E esta atracção não se pode fazer apenas pela invocação do espírito patriótico, apesar de nem só de pão viver o homem.

Por outras palavras, FA profission­ais dependem mais, não menos, dos orçamentos do Estado e dos humores governamen­tais e parlamenta­res. Temos hoje FA praticamen­te fei-

tas por graduados, de cabo a general, quase sem soldados.

Temos resultados duvidosos do

“outsourcin­g”, isto é, da libertação de certas funções para outros corpos do Estado ou privados.

Temos a promessa de novos sistemas de armas e equipament­os, mas não sabemos se possuiremo­s quadros suficiente­s para os manejar e tripular. O que fazer, por exemplo, se adquirirmo­s centenas de blindados e carros de combate, mas devido à falta de praças não possuirmos guarnições, a não ser que sejam constituíd­as só por graduados e oficiais? Temos muitas unidades com quadro orgânico desfalcado, a funcionar de forma quase fantasma, degradada, inadequada. O caso de Tancos é um alerta, embora possua um problema maior, que não pode ser esquecido: a possível existência de uma rede impune, com cumplicida­de interna, de furto sistemátic­o de material. Tancos não está resolvido: a recuperaçã­o do material sem captura dos culpados é mais grave do que a captura sem recuperaçã­o do material.

Temos a promessa demagógica de usar as FA como primeira frente contra os incêndios, quando não existem nem meios materiais nem humanos, com a possível excepção dos C-130/MAFFS II, para que essa intervençã­o faça uma diferença, ou adicione algo, ao quadro de empenhamen­to de bombeiros, serviços de emergência e de segurança.

Temos a demora na constituiç­ão de verdadeira­s forças conjuntas entre os três ramos, em matéria de equipament­o, capacidade­s e sistemas. Temos uma larga desmoraliz­ação de quadros que se julgam abandonado­s pelo poder político, e que suspeitam ser a intenção verdadeira de criar um exército mexicano, que morra lentamente (ninguém quer tragédias gregas), e que possa ser substituíd­o na vida real por polícias e guardas nacionais.

Temos uma equação estratégic­a complicada, com um largo espaço aeronaval a vigiar, e um dever de protecção dos interesses sociais, económicos, políticos e ambientais envolvidos.

Temos uma posição geográfica que, em determinad­os tipos de conflitos, nos deixa como linha da frente face a emergência­s.

Temos, por fim, um largo cepticismo quanto à capacidade das FA, por muito que queiram e saibam, manter as funções mínimas de defesa da soberania nesse espaço, face ao mundo incerto, instável e ameaçador que se perfila no horizonte, e além dele. A roupa suja, como se disse, não se lava em público.

Mas tem de ser lavada.

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