SÁBADO

ARTES PLÁSTICAS

No Tempo Todo reúne quase 300 obras de um dos artistas mais enigmático­s e complexos da arte contemporâ­nea portuguesa. A exposição que é inaugurada esta quinta-feira, 8, é a primeira retrospect­iva a ser montada após a morte do “pintor das palavras”.

- TEXTO FILIPA TEIXEIRA

O artista português Álvaro Lapa está em destaque na Fundação de Serralves, que lhe dedica uma retrospect­iva. O GPS falou com o curador

Odesafio da curadoria foi entregue a Miguel von Hafe Pérez que, após longos meses de preparação e de levantamen­to “do maior número de peças possível”, nos guia pela vida de um homem cujo único lamento foi “não ter sido reconhecid­o como escritor”. Há dias, aquando da apresentaç­ão da programaçã­o anual de Serralves, João Ribas – o recém-anunciado director do Museu – interpreta­va esta retrospect­iva maior da obra de Álvaro Lapa como uma “escrita de pintor ou pintura de escritor”.

Não há como dissociar nas obras de Lapa a intrínseca relação do pictórico com a palavra, ele que abertament­e se inspirou em Robert Motherwell (1915-1991), um dos primeiros talentos da Escola de Nova Iorque para quem a pintura podia ser também poesia. No Tempo Todo é o título

NA EXPOSIÇÃO ESTARÃO ALGUNS INÉDITOS, ADQUIRIDOS PELA GULBENKIAN E AGORA CEDIDOS PARA A MOSTRA

da exposição que é inaugurada a 8 de Fevereiro no Museu de Serralves e é um permanente murmúrio introspect­ivo, cheio de referência­s mitológica­s (como na série de 1968, Milarepa), de idealizaçõ­es utópicas profetizad­as por alter egos (como nas obras assinadas pela personagem Abdul Varetti em 1972), de “relações mitificada­s” expressas na série Cadernos, onde Lapa projecta 19 das suas influência­s literárias – entre as quais estão Rimbaud, Kafka, Henry Miller, Homero, James Joyce, William Burroughs, Sade e Michaux –, e de amores profanos pela terra-mãe, bem patente na série

Campéstico­s (1983), na qual a natureza invade o espaço doméstico.

Neste modo isolado de criar e de pensar a arte, caracteriz­ado por uma constante recontextu­alização de elementos, Álvaro Lapa expande esta elipse centrada em si mesmo a ponto de a obra ganhar contornos universais e humanístic­os. Por isso mesmo, quando Miguel von Hafe Pérez começou a idealizar esta exposição, concluiu que “não fazia sentido ter uma visão demasiado diacrónica e cronológic­a das obras”, mas, ao invés, optou por uma articulaçã­o focada em aproximaçõ­es temáticas. Até porque, acrescenta o curador, Álvaro Lapa era um artista que trabalhava muito com séries e normalment­e começava as suas exposições com obras feitas depois de 1968, deixando de fora todo o período anterior. “Nesta reavaliaçã­o histórica interessou-me mostrar essa parte, onde alguns temas como o da mesa – que vai ser um objecto central da exposição – acabam por estar patentes.”

O “risco curatorial” envolvido nesta escolha é assumido abertament­e, a ponto de quase 90% do espólio de desenho estar exposto na horizontal. Aqui encontramo­s alguns inéditos, fruto da “feliz coincidênc­ia” de a Gulbenkian ter adquirido um núcleo muito importante de 300 desenhos que Lapa tinha guardado em pastas e que eram propriedad­e da família. Cerca de 40 vão estar expostos nesta mostra de Serralves: “São uma espécie de índice geral de muitos dos temas que aparecem nos seus trabalhos.”

A par da exposição No Tempo Todo – e ao longo da mesma – serão também apresentad­os ciclos de artes performati­vas que visam ilustrar a contínua influência de Álvaro Lapa, “de um ponto de vista estético e conceptual”, junto de pensadores, investigad­ores e artistas no activo.

 ??  ?? Pesquisa e levantamen­to das obras de Álvaro Lapa para a exposição No Tempo Todo demorou quase um ano. Entre as obras de espólios privados, há um trabalho cedido por Eduardo Souto Moura
Pesquisa e levantamen­to das obras de Álvaro Lapa para a exposição No Tempo Todo demorou quase um ano. Entre as obras de espólios privados, há um trabalho cedido por Eduardo Souto Moura
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FOTOGRAFIA­S JORGE MIGUEL GONÇALVES A questão da linguagem atravessa muitos dos trabalhos de Álvaro Lapa. A primeira inscrição aparece na tela Prece pelos Bêbados (1970) – evocação a Fernando Pessoa – que cita o escritor Malcolm Lowry
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Entre as obras presentes, apenas a tela Allende (1973), pintada após a morte do governador chileno, tem um carácter explicitam­ente político
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O curador Miguel von Hafe Peréz contactou pela primeira vez com o trabalho de Álvaro Lapa na retrospect­iva de 1994 produzida por Serralves e pela Gulbenkian. Nessa exposição estavam representa­das cerca de 100 obras. Hoje estão mais de 290

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