João Pereira Coutinho
A EUTANÁSIA está na rua – salvo seja – e Francisco George, exdirector-geral da Saúde, contribui para o debate com um argumento de peso. A morte assistida, diz ele, pode ser uma forma de proteger os doentes dos médicos. Segundo o dr. George, há profissionais do sector que prolongam artificialmente a vida dos moribundos contra toda a racionalidade. Este abuso, garante o próprio, é cometido em hospitais privados, por razões maléficas e óbvias: quanto mais tempo um desgraçado respirar, mais elevada será a conta final para a família. Longe de mim contestar as palavras do dr. George: se ele conhece casos destes, só espero que os denuncie às autoridades. Só estranho que o dr. George, tão conhecedor da maldade humana, não consiga vislumbrar todas as consequências do seu argumento: se a eutanásia é um expediente útil para evitar o abuso médico de prolongar desnecessariamente a vida, como garantir que esse expediente não será exercido em sentido inverso, ou seja, para apressar desnecessariamente a morte? Aliás, podemos até seguir o mesmo tipo de raciocínio que Francisco George aplica aos privados: se estes querem aumentar a factura, podemos questionar se, nos hospitais públicos, não haverá a tentação de a diminuir. Se aceitamos que um médico pode ser um delinquente (uma hipótese perfeitamente razoável), então temos de aceitar que há vários tipos de delinquência. A história, como sempre, é a melhor conselheira. E o famoso caso do dr. Jack Kevorkian, nos Estados Unidos, chega e sobra para nos esclarecer – e horrorizar. No início, o dr. Morte assistia no suicídio dos pacientes, fornecendo-lhes meios para que eles se matassem. Com o tempo, e com a prática, e com a arrogância do poder, o nosso Jack começou a despachar o serviço com as suas próprias mãos. Um exemplo caricatural? Talvez. Como caricatural é o exemplo que Francisco George nos apresenta. Mas em ambos a lição de aviso é a mesma: retirar limites à acção médica pode ser um convite para que os maus médicos não saibam quando parar.
SÓ AGORA VI FOGE, o filme de Jordan Peele que os Óscares ressuscitaram com várias nomeações. Que pena. Gostava de ter gostado. Bastava que Peele tivesse usado o humor e os elementos da história para não moralizar os gentios.
Conto rápido: Chris (fabuloso Daniel Kaluuya, também nomeado para Melhor Actor), um fotógrafo negro, namora com Rose (Allison Williams), uma beldade branca. Rose convida Chris para passarem uns dias na casa da sua família. Chris aceita, mas questiona se a namorada já informou os pais de que ele é negro. Rose sorri e desfaz qualquer inquietação: os pais votaram Obama e votariam outra vez se houvesse um terceiro mandato. Chris vai. A família parece simpática, excessivamente simpática, embora os empregados sejam negros e tenham comportamentos bizarros, robotizados, não humanos. Algo se passa naquela casa. E o que se passa vai atingir Chris com uma violência brutal. Gostei da premissa: já sabemos que uma parte da direita americana é racista até ao tutano. As marchas odiosas que os neonazis locais gostam de promover para reclamar uma América “branca” desfazem qualquer dúvida. Mas que dizer do racismo dos progressistas?
Sim, não é explícito; mas, às vezes, existe na retórica e nos gestos dos “liberais” a mesma consciência venenosa de que “eles” (os negros) são diferentes de “nós” (os brancos). E que a melhor forma de chegar a “eles” passa por uma atitude paternalista, falsamente próxima – e talvez por isso igualmente ofensiva. Jordan Peele é brilhante ao filmar essa empatia de farsa. Fatalmente, a mão foge-lhe rapidamente para a paranóia vitimária, com os negros sujeitos às maiores torpezas pelas mãos dos brancos.
O realizador, em entrevistas várias, explicou-se: o seu objectivo foi representar a condição dos negros na América actual. Um lugar de desconforto permanente, onde nada é o que parece ser; e onde a segurança, física ou psicológica, se encontra sob ameaça.
Com origens na comédia, Jordan Peele podia ter prolongado o humor inicial do filme para também fazer humor com essa mentalidade de cerco, que me parece tão racista como o racismo que ele denuncia: nem todos os brancos querem matar ou esfolar negros.