SÁBADO

Bruno Faria Lopes

- Bruno Faria Lopes

NA TORRENTE DE ARTIGOS sobre o minicrash da passada segunda-feira, um analista da agência Bloomberg recorreu ao filme O Padrinho e à personagem Peter Clemenza para tentar explicar o fenómeno bolsista. Clemenza, um dos caporegime de Don Vito Corleone, justifica assim ao jovem Michael Corleone o estalar de uma guerra entre famílias rivais: “Es- tas coisas têm de acontecer a cada cinco anos ou algo assim, 10 anos. Ajuda a limpar o mau sangue. Passaram 10 anos desde a última.” Entre todo o tipo de narrativa mais ou menos técnica com que nestas alturas se tenta dar sentido aos sobressalt­os nos mercados é difícil não invocar a sabedoria de Clemenza. Se nos Estados Unidos já lá vão quase 10 anos consecutiv­os de valorizaçõ­es bolsistas, em todo o mundo esta era de taxas de juro em mínimos históricos que dura há anos distorceu a percepção de risco no mercado até um ponto em que, como noticiava há dias o The Wall Street Journal, “uma barragem hidroeléct­rica no Tajiquistã­o, o Governo de Portugal e um operador de cruzeiros emitiram todos dívida no Outono passado a taxas de juro invulgarme­nte baixas”. Depois de anos a recuperar das mazelas profundas da crise financeira global e da crise na Zona Euro, com uma política monetária expansioni­sta nunca antes vista no planeta (de injecção de dinheiro no sistema) as coisas começam inexoravel­mente a voltar ao normal. O cresciment­o da economia e a expectativ­a (talvez optimista) de impacto do choque fiscal de Trump estão a alimentar a expectativ­a de que o novo presidente da Reserva Federal vai subir o preço do dinheiro. Na Europa ainda não vamos aí, mas Mario Draghi está há meses a compensar com retórica suave um recuo evidente do Banco Central Europeu no programa de estímulos. A dúvida é saber quando é que a inflação na Alemanha vai subir a um ponto em que o BCE terá que começar a aumentar as taxas.

Se quisermos ser optimistas, correcções violentas como as de segunda-feira são uma reacção exagerada a estes desenvolvi­mentos, ampliada pelos algoritmos que já transaccio­nam como se fossem pessoas. Nesta versão, o que se passou na Bolsa é uma correcção pontual. Talvez seja. Mas é difícil não encarar com um certo receio o recuo de políticas que nunca antes tinham sido postas em prática. Por definição, esse recuo é também algo nunca antes testado e, por isso, sujeito a uma boa dose de imprevisto. Se quisermos recorrer a uma analogia que Vítor Gaspar usava, os mercados são como os ursos – passam metade do tempo a dormir. Estão agora a acordar de uma longa anestesia induzida pelos bancos centrais e está por saber como se vão portar.

No cenário benigno, este despertar vai levar ao aumento gradual das Euribor para as famílias, dos juros para as empresas e para os Governos, sobretudo para os devedores vistos como mais frágeis pelos ursos. No espaço entre o optimismo e o imprevisto cabe, contudo, uma reacção mais violenta de recomposiç­ão global do risco e do destino do dinheiro – nessa altura, a passada segunda-feira será encaixada na narrativa como um primeiro sinal de algo que vinha aí. Para os devedores, famílias com créditos ou Estados com dívida alta, resta abrir margem para a subida dos juros – e esperar que a tese de Clemenza, desta vez, não aconteça.

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