Não é cómodo ser cristão
Já não há guerras religiosas a Ocidente. Ninguém é obrigado a ser cristão. Ou, dentro do cristianismo, a ser católico. O livre arbítrio continua pedra basilar.
Mas escolher tem consequências: não se pode servir a dois senhores. E a escolha cristã não é cómoda. Pode ser até, literalmente, perigosa: que o digam as minorias perseguidas no Médio Oriente e na Ásia.
Por outro lado, as mensagens pastorais para consumo espiritual dos católicos podem ser entendidas por outros (“a Luz de Cristo ilumina a todos”), mas dirigem-se aos primeiros. E as recomendações aos primeiros reconduzem-se, como se disse, ao foro íntimo e à consciência: torna-se obsceno fazer crer que se trata de um prelúdio a uma decapitação na praça pública. Alguns poderiam preferir, claro, uma religião à la carte, uma forma superior de poesia ou uma mera moda.
Mas como se diz na Exortação Apostólica A Alegria do Amor, publicada pelo Papa Francisco há dois anos, não se deve esperar que passe a ser doutrina, ou orientação, uma opinião pessoal contrária à Fé.
O que conscientemente se separa da comunidade cristã não pode, ao mesmo tempo, submetê-la a sermões opinativos. Ou fica com o bolo na mão, ou o come.
A Exortação em causa é produto de uma longa reflexão do sínodo dos bispos de todo mundo. Trata da família e do casamento, e não ignora a “complexidade das questões”, e as “realidades” locais: “Cada princípio geral tem de ser aculturado localmente, para ser verdadeiramente respeitado e aplicado.” Foi preciso discernimento e cora-
gem para reconhecer, durante o sínodo, que é preciso aproximar a doutrina eterna do drama de cada época. Como se disse ali, “a Bíblia está cheia de famílias, nascimentos, histórias de amor e crises familiares”.
Foi preciso abertura para citar, num texto doutrinal, um poema de Jorge Luis Borges: “Cada casa é um lampanário.” Cada situação deve ser entendida, antes de ser julgada.
A Exortação relembra que a escolha cristã, quanto ao casamento, não é cóSe, moda: “Não podemos deixar de advogar o matrimónio para não desagradar a sensibilidades contemporâneas, ou para ser popular, ou simplesmente como impotência face aos falhanços humanos e morais.”
Mas cada casamento, ou falhanço do mesmo, deve ser analisado nas comunidades mais locais e pessoais possíveis, no que podíamos chamar de “Igreja de proximidade”.
No caso do divórcio e da união de facto, por exemplo, o documento mede as palavras e pede para as mesmas serem medidas por todos: diz que, nas situações “irregulares”, a prioridade é a integração dos seus actores na vida cristã. Não deve haver aqui excomunhão, mas acompanhamento. Não maldição eterna, mas compreensão quotidiana.
O divorciado e o recasado não cessam de pertencer à comunidade, se demonstrarem assim o querer. Isto é tanto mais importante, lembra-se, se houver a ter em atenção a educação e a protecção dos filhos.
E há que distinguir sobre novos casamentos: “uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, fidelidade provada, entrega desinteressada, empenhamento Cristão, reconhecimento da irregularidade”, e outra é “uma união derivada de divórcio recente, com o sofrimento e confusão para os filhos, no caso de alguém que sistematicamente desertou das suas obrigações familiares”. O documento é fascinante e fundamental, quando analisa o divórcio dos pobres, o divórcio dos que não voltam a casar, o divórcio dos que não queriam divorciar-se, o divórcio dos perseguidos e humilhados, ou o divórcio imperativo, como último recurso, para salvar um bem maior.
A Exortação reconhece que, neste mundo de pessoas diversas, é preciso “discernir com cuidado”, sabendo que não existem “receitas prontas”. Relembra que a responsabilidade na ruptura pode ser diminuída ou anulada por “ignorância, maus tratos, medo e coacção, inadvertência, hábito, imaturidade afectiva, ansiedade, e outros factores psicológicos e sociais”.W