Escutas acidentais a Costa no caso Octapharma
secretário de Estado da Saúde, Manuel Pizarro, esteve sob escu ta telefónica durante 270 dias, entre Fevereiro e Novembro de 2016. Na altura, Público e a Polícia Judiciária achavam que o ex-governante e ra suspeito no milionário negócio da compra de plasm
Ainformação confidencial do Ministério Público (MP) começou com a identificação do “suspeito Manuel Francisco Pizarro de Sampaio e Castro” e seguiu de imediato para a descrição dos números de código atribuídos aos dois telemóveis sob escuta há largos meses. Na realidade, a pequena introdução só tinha o intuito de justifi- car o que sucede- ra acidentalmen- te no processo dos negócios do plasma humano/Octapaharma, um caso que ainda hoje se encontra em investigação e que visa fortes indícios da prática de crimes de corrupção, participação económica em negócio e branqueamento de capitais: “Na intercepção a estes alvos foi interceptada acidentalmente uma comunicação do suspeito com Sua Exª. o Sr. primeiro-ministro, António Costa...”
Com data de 27 de Setembro de 2016, o despacho da procuradora Ana Paula Vitorino – a magistrada do MP cujas palavras-passe foram usadas por piratas informáticos para acederem a documentos confidenciais de investigações como o caso dos emails do Benfica – não adiantou muito mais, limitando-se a garantir que o conteúdo das “sete sessões” gravadas por acaso não tinha qualquer relevância para a investigação.
Por isso, o CD com as gravações das conversas entre António Costa e o antigo secretário de Estado da Saúde, Manuel Pizarro, e o respectivo código de acesso, fez o percurso legal habitual nestes casos: a procuradora informou a superiora hierárquica, Fernanda Pêgo (então
A PJ começou por colocar sob escuta o ex-secretário de Estado da Saúde do PS, Francisco Ramos
coordenadora da 9ª Secção e hoje directora do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, que também já foi alvo de intrusões informáticas no computador de trabalho), o assunto seguiu para a directora do DIAP, Maria José Morgado, e chegou finalmente à procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. Para serem destruídas, as escutas tiveram de ser remetidas ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) pela juíza de instrução do processo, Cláudia Pina, da 1ª Secção de Instrução Criminal de Lisboa (J3).
Mas o caso não ficou encerrado. Poucos dias depois, os inspectores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária (PJ) encarregados da investigação, Jorge Lúcio e Inês Pereira, informaram a directora Saudade Nunes que tinham sido gravadas e detectadas mais 44 conversas entre Pizarro e Costa. Por precaução, os inspectores decidiram que iriam voltar a ouvir as escutas telefónicas que já constavam no processo para confirmarem se existiam outras conversas com a in-
A investigação dos negócios do plasma humano le- vou depois a suspeitas sobre o outro antigo secretário de Estado, Manuel Pizarro. A casa do político no Porto foi vigiada pela Judiciária CONVERSAS COM ANTÓNIO COSTA FORAM GRAVADAS NUM CD, COM UMA PALAVRA-PASSE
tervenção do primeiro-ministro. Os documentos oficiais do processo O Negativo a que a SÁBADO teve acesso não esclarecem se foram ou não encontradas novas conversas de António Costa já gravadas. O que se consegue perceber é que nos meses seguintes, e até Maio de 2017 (já bem depois de as escutas a Pizarro terem terminado), a PJ e o MP identificaram e remeteram ao STJ mais algumas dezenas de conversas de António Costa. Primeiro, seguiu um apanhado de 26 sessões, depois 45, que se juntaram às sete iniciais. No total, a SÁBADO identificou 122 sessões com a intervenção do primeiro-ministro. Todas terão resultado apenas de contactos telefónicos com Manuel Pizarro, uma situação que se compreende porque o também dirigente do PS (depois de eleito líder do PS, Costa escolheu-o para o Secretariado Nacional do partido) foi durante largos meses um dos principais suspeitos de um processo-crime aberto em 2015 na sequência de uma investigação da jornalista Alexandra Borges (TVI) sobre a empresa Octapharma e os concursos do Estado com orçamentos de muitos milhões de euros para a aquisição de plasma humano inactivado. Um produto que pode ser administrado directamente aos doentes ou fraccionado e usado para criar medicamentos. Este dispendioso recurso clínico é essenos
A jornalista-assessora da TVI foi gravada pelos investigadores a violar o segredo de Justiça: avisou Cunha Ribeiro de que a PJ teria pedido vários documentos ao Ministério da Saúde AS SUSPEITAS QUE VISAM O MÉDICO CUNHA RIBEIRO JÁ DATAM DE 1998-2000
cial para hemofílicos, para infectados com o vírus do VIH, bem como para doentes de cancro e para os que sofreram queimaduras graves.
A teia de relações perigosas
Segundo a documentação a que a
SÁBADO teve acesso, Pizarro esteve cerca de oito meses sob escuta telefónica. Ou seja, foi ouvido durante 270 dias. E também chegou a ser seguido e fotografado pela Judiciária. Não por causa de qualquer ligação suspeita a António Costa, mas porque os investigadores julgavam que o ex-secretário de Estado (Adjunto) da Saúde (2008/11) teria algum tipo de responsabilidade nos concursos públicos que foram suspensos ou que não adjudicaram a compra de plasma contribuindo assim para manter o quase monopólio da Octapharma.
Por outro lado, estavam também em causa as ligações muito próximas que Pizarro mantinha com Luís Cunha Ribeiro, médico especialista de imuno-hemoterapia que integrou o grupo de peritos dos concursos de plasma de 1998 e 2000. E que depois ficou num cargo-chave da administração pública: a direcção da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT). Para
investigadores, a suspeita era de que o médico teria sido corrompido por Paulo Lalanda e Castro, o poderoso gerente da Octapharma e depois também patrão de José Sócrates. Com o pagamento de viagens, alojamentos, refeições, o empréstimo de um carro de luxo e dois apartamentos. No início da investigação, o que a PJ queria descobrir era o “tipo de ligações” que havia entre “todos os intervenientes, qual o papel de cada um deles nos negócios celebrados pela Octapharma e que vantagens daí lhes advieram”, conforme ficou escrito no primeiro relatório da Judiciária sobre o caso, de 30 de Novembro de 2015. Foi precisamente nesse documento que foram propostas as escutas telefónicas e a intercepção do correio electrónico de, entre outros, Lalanda e Castro e Cunha Ribeiro, tendo isto depois relançado as suspeitas sobre o alvo Manuel Pizarro.
O primeiro episódio que terá contribuído para isso ocorreu no início de 2016 e já depois de os inspectores da PJ terem ido ao Ministério da Saúde entregar em mão um ofício a solicitar diversa documentação oficial sobre os concursos públicos de plasma. Na altura, os investigadores informaram que o processo estava em segredo de Justiça, mas o aviso foi em vão, conforme os inspectores perceberam quando começaram a ouvir as escutas telefónicas, nomeadamente a conversa de 29 de Janeiro de 2016, ocorrida entre o médico Cunha Ribeiro e Paula Ferreirinha, ex-assessora de imprensa dos ministros da Saúde Ana Jorge (quando Pizarro foi secretário de Estado) e Paulo Macedo. Ferreirinha tinha ainda outro dado recente no currículo: era colega da jornalista Alexandra
e acabara de regressar à TVI (rescindiu o contrato em Maio de 2017) depois de várias comissões de serviço em ministérios de governos socialistas premiadas com louvores publicados em Diário da República.
A PJ anotou no relatório que a jornalista telefonou ao médico a contar que tinha “uma coisa” para lhe dizer, mas que Cunha Ribeiro não podia revelar que fora ela a contar-lhe, porque isso “lixa-a.” O director da ARSLVT sossegou-a com um breve “Ó Paula, já sabe...”, tendo a mulher revelado de imediato que o MP/PJ estava a investigar a “história da Octa” [Octapharma] e que já tinham ido ao Ministério da Saúde “devido ao período do seu amigo do Porto (...), de 2008 a 2011”. Ferreirinha referia-se a Manuel Pizarro, mas Cunha Ribeiro desvalorizou o assunto, tendo aproveitado para dizer que o “gajo” nem sequer estava no Governo. Paula Ferreirinha corrigiu o médico dizendo-lhe que “MP” [Manuel Pizarro] estava realmente no Governo. Mas a jornalista-assessora teve sempre o cuidado de não tratar pelo nome o antigo governante do PS que liderava a segunda distrital mais importante do País.
Estes dados foram decisivos para a PJ sugerir ao MP que Pizarro fosse colocado sob escuta. A procuradora concordou e a rapidez da decisão contribuiu para apanhar o seguinte SMS: “Boa tarde, dr. Pizarro! Precisava de falar csigo. É sb um tema que lhe diz respeito. Convém não ser por telefone. Qd vem a LX? Paula Ferreirinha.” O socialista ligou depois à jornalista e esta repetiu-lhe que a conversa tinha de ser feita pessoalmente, de preferência em Lisboa. O encontro entre os dois ficou pré-agendado para uns dias depois, com a jornalista a enviar depois um novo SMS: “Dr. Pizarro, sp conversamos amanhã? Diga horas e sítio p eu me organizar.”
A PJ anotou tudo em vários relatórios referindo que aqueles contactos indiciavam “fortemente que
O médico Cunha Ribeiro fez a doação de um apartamento aos filhos. A Judiciária escutou todas as conversas e o Ministério Público concluiu que estava a dissimular património A VIGILÂNCIA DA PJ A MANUEL PIZARRO OCORREU NO PORTO. O POLÍTICO FOI FOTOGRAFADO Foi através de escutas telefónicas que a Polícia Judiciária concluiu que Paulo Lalanda e Castro evitava vir a Portugal alegadamente com medo de ser preso
O gestor da Octapharma foi detido na Alemanha, mas depois foi solto. Viajou para Lisboa num avião privado Lalanda insistiu sempre que queria colaborar com o MP
Paula Ferreirinha tem acesso (directo ou indirecto) a informação de dentro do gabinete do ministro da Saúde ou do gabinete das duas Secretarias de Estado desse ministério, facto que irremediavelmente perturba a presente investigação”. Meses depois, a jornalista voltaria a avisar Cunha Ribeiro de que a TVI iria transmitir uma notícia que associava Paulo Lalanda e Castro a duas entidades com sede em offshores descobertos no âmbito do caso dos Panama Papers. Com a sequência de escutas telefónicas, que incluiu vários telefone- mas entre Cunha Ribeiro e Pizarro, com vista à mar- cação de um en- contro à mesa no Porto, os investigadores da PJ partiram para o terreno. “Em função do agendamento do alBorges moço acima referido e por se ter apurado igualmente que, antes desse encontro, Manuel Pizarro estaria presente no II Congresso Fundação para a Saúde – SNS, a decorrer no Teatro Rivoli, foi montado um dispositivo de vigilância junto deste edifício, tendo-se avistado o referido suspeito a sair daí e a deslocar-se depois, apeado, para a Câmara Municipal do Porto [Pizarro era, e ainda é, vereador na autarquia]”, escreveram os inspectores a 29 de Março de 2016. O antigo governante foi fotografado pelos investigadores, que depois perceberam que o almoço não se
iria realizar e decidiram fazer um “reconhecimento” aos locais do Porto onde ficam as residências de Pizarro e de Cunha Ribeiro.
Os negócios do assessor
A leitura das mais de oito mil páginas que compõem o expediente principal do processo permite perceber que, poucas semanas depois de a PJ gravar as conversas telefónicas com António Costa, Manuel Pizarro deixou de ser um dos alvos privilegiados da investigação e nem sequer foi constituído arguido. E que isso se terá devido à inexistência de indícios comprometedores, conforme depois foi confirmado nas análises documentais feitas pela PJ aos concursos públicos para compra de plasma. As escutas a Pizarro foram assim interrompidas a 1 de Novembro de 2016 e o MP e a PJ passaram a centrar-se em definitivo no gestor da Octapharma, Lalanda de Castro, e no médico Cunha Ribeiro.
Muito antes de avançarem para a detenção para interrogatório dos dois homens no final de 2016, os investigadores concentraram-se na tentativa de identificar actos que pudessem consubstanciar sobretudo o crime de corrupção (mais tarde, a PJ identificou verbas de mais de um milhão de euros, alegadamente para pagar viagens e alojamentos a outros médicos e júris de concursos, conforme a SÁBADO noticiou a 23 de Novembro de 2017). Além disso, a Judiciária tinha nesta altura a convicção de que estariam a ser fabricadas justificações legais para dissimular pagamentos feitos a Cunha Ribeiro. Por exemplo, a questão do suposto arrendamento do apartamento de luxo de Lalanda e Castro, que o médico usara durante vários anos para morar em Lisboa. Assim, quando os inspectores ouviram os telefonemas
O ASSESSOR DO INEM, PEDRO COELHO DOS SANTOS, NEGOCIOU PAGAMENTOS COM LALANDA E CASTRO Já não há escutas activas porque os arguidos já acederam ao processo
sobre este assunto ocorridos entre Paulo Farinha Alves (advogado da PLMJ que trabalhava para a Octapharma/Lalanda) e Cunha Ribeiro passaram a seguir e a fotografar os encontros entre os dois homens. Mais tarde, o advogado seria constituído arguido quando a Judiciária lhe fez buscas ao escritório.
As vigilâncias da PJ incluíram ainda outro alvo nesta teia de relações: mais um antigo jornalista, maçon da loja O Futuro (GOL) e depois quadro do INEM e candidato autárquico pelo PS, Pedro Coelho dos Santos. Em 2016, Coelho dos Santos chegou a estar oficialmente em comissão de serviço no grupo parlamentar do PS, mas exerceu na prática as funções de chefe de gabinete da secretária-geral adjunta dos socialistas, Ana Catarina Mendes. Apanhado em várias escutas telefónicas com Cunha Ribeiro (e depois em emails apreendidos numa busca da PJ), o assessor chegou a trabalhar em simultâneo para o Estado, para o médico, para Lalanda e Castro e a Octapharma. Isso começou logo em 2015, com as primeiras investigações jornalísticas sobre o caso: Coelho dos Santos enviou a um amigo e sócio as perguntas da jornalista Alexandra Borges dirigidas a Cunha Ribeiro e, noutro caso, também se gabou a Lalanda de ser “a única pessoa” que conseguia “manipular Cerejo”, referindo-se ao jornalista José António Cerejo, do Público. Mais tarde, propôs a Lalanda a contratação de um especialista em gestão de crises mediáticas (da HK Strategies) e vendeu directamente os seus próprios serviços através da empresa da qual era um dos dois sócios, a Alterego. Os contratos de seis meses previam a assessoria da Octapharma (850 euros/mês) e do próprio Lalanda e Castro (1.500 euros/mês). A investigação do processo O Negativo ainda não está encerrada.