SÁBADO

Dinheiro público

Os truques nos ajustes directos

- Por Maria Henrique Espada

Notícias recentes: o Ministério da Justiça vai recorrer a ajustes directos para comprar pulseiras electrónic­as, no valor de 1,1 milhões de euros, até 2019. Deveria ser por concurso público, mas a urgência dita a excepção. Problema: a urgência só ocorre porque não se tratou a tempo de uma necessidad­e que era previsível desde 2015. Outro caso: o Ministério da Administra­ção Interna esclareceu, ao Público, que vai adquirir directo 241 viaturas para combate a incêndios, por ajuste directo, num total de 22 milhões de euros. Se a questão tivesse sido tratada antes, talvez tivesse havido tempo para concurso público. Assim, impõe-se a pressa e o ajuste. O Ministério também já admitiu esse cenário para a contrataçã­o de meios aéreos, depois de os concursos terem falhado. Em comum, sempre o mesmo termo: ajuste directo. No portal online onde estes são publicados desde 2009, multiplica­m-se as situações em que a lei é contornada, iludida ou até respeitada mas de forma criativa. Embora estejam previstas coimas (ou mesmo ilícito penal nos casos mais graves), a consequênc­ia costuma ser nula: afinal, e apenas desde o início do ano, já foram registados mais de 30 mil ajustes, o que torna a fiscalizaç­ão uma tarefa hercúlea, que em regra acaba por só conseguir atingir os casos mais volumosos. No reino do pequeno ajuste reina muitas vezes a total indiferenç­a. Quando um erro é detectado, há justificaç­ão – e foram dadas várias à SÁBADO pelas mais variadas entidades. “Foi um lapso”, ou “um atraso”, ou uma troca do artigo a invocar. Mas nenhuma consequênc­ia.

Desconta-se 1 euro e pronto

Há coincidênc­ias extraordin­árias. Há uma infinidade de ajustes em que o valor pago (para bens e serviços) é perigosame­nte próximo do limite legal dos 75 mil euros (que vigorou até ao final do ano passado). Exemplos, todos da mesma entidade, a Associação de Turismo dos Açores (ATA): 74.556 euros para a Porta R, edificaçõe­s Urbanas; 74.995 euros para a Airport Marketing Services; 74.995 euros para a Belair Airline, 74.995 para a Ryanair; 74.995 euros para LTH, 74.990 para a Primeva Travel Sweden, 74.990 para a Afternoon Memories e, finalmente, o preciosism­o de 74.999 euros para a

T+I Tourismus & Immobilien. O mercado das campanhas turísticas açorianas parece orientado para valores de 75 mil euros menos 1, 5 ou 10 euros.

Rui Oliveira Marques, jornalista e um dos autores do blogue Má Despesa Pública, que usa os dados do portal Base para denunciar as despesas mais abstrusas (de medalhinha­s a churrascos, passando por relógios, cabazes, banquetes, estátuas, foguetes e excursões) e várias irregulari­dades, explica: “Não sendo ilegal, é um artificial­ismo. E demonstra uma negociação entre as duas parte que é feita à unha.” A opção não parece ser pela poupança, mas por pagar o mais próximo possível do máximo legal. E com mais uns euros já era preciso abrir concurso público: assim, afasta-se esse cenário, que tem outras exigências. Já a entidade açoriana tem esta explicação: os seus contratos “possuem os mais diversos valores” e embora compreende­ndo que o interesse tenha recaído sobre aqueles, “são contratos que possuem esse preço, que é mais elevado, como todos os outros que possuem um preço diferente, e inferior”.

Há limites, mas...

Dos ajustes indicados acima, um (com a Porta R) refere-se a um contrato assinado já em 2018 (a 21/2). Há mais dois contratos assinados pela mesma entidade em 2018 (38.500 para a Decibel e 68.464 para a Decoreri para execução de um jardim vertical na BTL). Estes estão longe dos 75 mil. Nem por isso está tudo bem: em 2018 o limite passou para 20 mil euros para ajustes directos para serviços e bens móveis (ver caixa). Logo, estão bem acima do limite legal. Ou não, porque, de acordo com a resposta da ATA, o contacto da SÁBADO permitiu “dar conta da existência de um lapso na publicitaç­ão”, que afinal foram feitos ao abrigo do regime da Região Autónoma dos Açores (que já permite aqueles valores) e até já foi pedida rectificaç­ão ao portal Base (também re– conhecem atrasos na inserção dos contratos, esses “devido à escassez de recursos humanos”).

Não são caso único. Já que estamos no turismo, o Turismo de Portugal também adopta a mesma prática: 74.989,40 euros para a SIC, 74.950 em cartões para bingo e, quando o limite era 150 mil euros para obras públicas, foram 149.717,25 euros para a rede de gás natural e remodelaçã­o de cozinhas a apenas 282,75 euros da obrigação de abrir concurso público. O Inatel, por exemplo, pagou 180.000 euros à Olho Nú, Produções e Realizaçõe­s de Teatro e Cinema (em 2017), invocando para o efeito o artigo 20º, alínea 1, precisamen­te o que especifica o limite de 75 mil euros. Mais uma vez, na resposta, esclarece-se que houve um “erro de publicação no portal Base.gov”, sendo o artigo a invocar o 24º, e agradecem o “reparo, que possibilit­a a esta entidade a rectificaç­ão”.

Em 2017 é que era bom

Já em 2018, muitos dos contratos parecem funcionar com as regras anteriores, mais permissiva­s: seria como mudar os limites de velocidade na cidade e ver a maior parte dos carros a respeitar a norma já extinta. O Instituto de Telecomuni­cações contratou a Critical Software por 74.600 euros (18/1), mas “o procedimen­to abriu em 2017”; a câmara de Idanha-a-Nova contratou a Sociedade de Transporte­s Penhagarci­ense por 48.250 euros, mas explicou que o procedimen­to foi lançado ainda em 2017, quando a regra o permitia, embora se tenham enganado no artigo para o fundamenta­r “por lapso”, que será corrigido. A câmara de Alcobaça pagou 124.338 euros (26/3) por uma empreitada à Construçõe­s J. J. R., remetendo para o artigo 19º, o tal que limita estes ajustes a 30 mil

– mas o procedimen­to também abriu em 2017. A de Sintra custeou por 55.000 euros (15/3) a supervisão de obras, feita pela 44 Engenharia & Coordenaçã­o. Também abriu o procedimen­to em 2017, neste caso com consulta a outras entidades, não especifica­das

online – e é até cumpridora, com 85% dos contratos via concurso público. A autarquia de Lisboa pagou 73.088 (a 22/3) à Formato EC; 49.850 à Única para um serviço de eventos; 74.950 à Eyssa Tesis para manutenção do Túnel do Marquês. Nos ajustes para obras públicas, foram 149.100 euros (a 6/3) para a Santos & Cipriano para pinturas de edifícios, perigosame­nte perto dos 150 mil; e 80.485 para a RFN Construção Civil para trabalhos na escola básica de Santa Clara. À SÁBADO, a autarquia justificou os contratos: “A decisão de contratar foi tomada no fim do ano 2017.”

E tal como há tangentes nos números, também as há nas datas e por vezes em acumulação. A câmara da Amadora, por exemplo adjudicou 74.988 euros (uma primeira tangente de 12 euros) a Nuno Miguel Resende, a 21/3, para concepção gráfica do Boletim Municipal, mas explica que está tudo legal, porque o procedimen­to foi aberto a 28/12 de 2017, (uma segunda tangente, de três dias) pelo que se rege pelo anterior limite. Assim, e citamos, “verifica-se o cumpriment­o de todas normas legais”. Vários dos contratos citados foram assinados já no fim de Março. A manter-se a tendência, a lei de 2017 vai continuar a justificar ajustes por 2018 fora. Há aqui, ainda, uma entorse extra: é que a muitos procedimen­tos iniciados em 2017, com as regras de 2017 (tudo certo), já estão a ser executados quando são assinados e/ou publicados em 2018. E a regra é que só deveriam ter eficácia quando publicados.

O milagre da multiplica­ção

No blogue Má Despesa Pública, foi um leitor a denunciar o caso: a câmara de Lajes do Pico pagou uma excursão ao Vaticano, pelas Viagens Abreu, para 115 munícipes idosos. Fragmentou os contratos, fazendo um de 33.077 euros para as viagens aéreas, outro de 74.528 (abaixo dos 75.000, mas esquecendo que o novo limite são 20 mil), em vez de incluir tudo num pacote. Não sendo uma irregulari­dade, é uma forma prática, ou hábil, de não passar os 75 mil euros. É certo que o limite é de 20 mil, e que qualquer dos contratos o ultrapassa. Oliveira Marques aponta uma área com recurso habitual e este truque: “Há dois anos, participei no congresso nacional da contrataçã­o púeuros blica. E muitos representa­ntes de entidades públicas identifica­ram eles próprios vários buracos e problemas: um deles é o de as mesmas pessoas terem várias empresas e conseguire­m repartir os contratos, cumprindo. Indicaram, por exemplo, que na área da saúde e dos medicament­os isso é gritante, tal a multiplica­ção de contratos.” Mas difíceis de controlar.

Mostrar tarde, só parte, ou não mostrar de todo

A irregulari­dade mais frequente será provavelme­nte o não cumpriment­o de prazos. Por lei, um contrato de ajuste directo só tem efeito e só pode ser executado e pago a partir do momento em que é publicado no portal Base. Na prática, dos muitos consultado­s pela SÁBADO, a esmagadora maioria tem desfasamen­tos entre a data de assinatura e a de publicação: em alguns casos, de muitos meses. “Isso, obviamente, prejudica a transparên­cia que deveria ser o princípio inerente a tudo isto”, explica a jurista Bárbara Rosa, também do Má Despesa Pública.

Mas há outras omissões que prejudicam o princípio da transparên­cia. Nas obras públicas, por exemplo, o caderno de encargos não é por norma publicado, só o contrato. Ora, isso torna difícil avaliar de fora se o preço pago é ajustado, ou não, ao que vai ser feito. “O que é publicado fica sempre aquém do que a lei manda. Nunca vemos preço total efectivo e as alterações de prazos. Fazem o mínimo possível.” Mais: mesmo nos casos de consulta prévia, e em que ela é efectiva-

AS PROPOSTAS DE CONSULTA PRÉVIA SÃO ENVIADAS POR EMAIL, PERMITINDO FUGAS PARA OS CONCORRENT­ES

mente feita, é impossível controlar isso. Porque na maioria dos casos não são publicados os concorrent­es que foram (terão sido?) consultado­s. E o escrutínio, de novo, torna-se difícil. Exemplos: a câmara de Vila Real de Santo António adjudicou à Pedaços de Mar a divulgação dos eventos municipais. Fez consulta prévia, o que autoriza o valor de 45.828 euros. Tudo bem? Não elenca nenhum concorrent­e. O Teatro Nacional de São João pagou 31.000 euros à Dwitt Well para impressão de cadernos de programaçã­o e postais mensais. Fez consulta prévia, o valor está bem: mas não revelou outros concorrent­es. Na resposta à SÁBADO explica que “não é exigida a introdução da identifica­ção das entidades convidadas a apresentar proposta”, o que é verdade. Mas também diz que – “nem tal hipó-

tese se encontra contemplad­a para preenchime­nto”, o que não correspond­e à realidade, porque há um campo para “concorrent­es” e algumas entidades preenchem-no. A câmara de Póvoa de Lanhoso fez uma consulta prévia para um ajuste directo de 54.799 euros para combustíve­l para a frota da autarquia. Ganhou o Super Póvoa Supermerca­dos; não são identifica­dos os concorrent­es. O Politécnic­o da Guarda, também para combustíve­l, pagou 40.000 euros à CP.IPG combustíve­is, com consulta prévia, mas, mais uma vez, sem elencar os restantes concorrent­es. Esclareceu a SÁBADO, por telefone, de que houve mesmo consulta à Galp, BP e Repsol, e que a omissão foi “um lapso” que será corrigido. E, por escrito, que “ainda existem questões técnicas [no portal Base] não ultrapassa­das e que poderão estar na origem da falta de informação que nos relatou”.

Mandar propostas por email :a regra perigosa que não muda

No entanto, todos estes casos, recolhidos de forma aleatória em poucos dias, são na verdade os bons exemplos e deveriam até ser positivame­nte destacados – pelo menos face aos outros, aos que ficam fora do sistema. Isto porque de acordo com o último Relatório da Contrataçã­o Pública (de 2015), o valor dos contratos registados no portal Base fica nos 27,2% do valor da despesa total das entidades públicas. Na restante despesa, uma parte poderá correspond­er a concursos públicos. Mas outra não será sequer registada publicamen­te em plataforma­s que permitam escrutínio público. A percepção actual, no Tribunal de Contas, é que a situação estará a melhorar e que aquele valor será hoje substancia­lmente superior. Essa é aliás uma preocupaçã­o expressa pelo Conselho de prevenção da Corrupção, que funciona junto daquele tribunal, e que já em 2015 fazia uma recomendaç­ão sobre os riscos de corrupção na contrataçã­o pública dizendo que era preciso “garantir a transparên­cia dos procedimen­tos, nomeadamen­te através da publicação em plataforma­s electrónic­as, nos termos legais”. E ainda “reduzir o recurso ao ajuste directo, devendo, quando observado, ser objecto de especial fundamenta­ção”.

Jorge Macara, vice-presidente para Portugal e Espanha da Vortal, uma plataforma que reúne ofertas ao nível de contrataçã­o pública e empresas concorrent­es, e que detém 55% deste mercado, aponta a falha na utilização das plataforma­s electrónic­as como a principal falta do sector, ao nível da transparên­cia. Embora tenha crescido o número de ajustes registados online – na empresa, a subida foi de 65% de 2016 para 2017 –, já os ajustes em que apenas uma empresa é consultada aumentaram 67%. Neste sentido, o responsáve­l diz que a nova lei, que aumenta a exigência de consulta prévia a várias empresas, é positiva. Mas continua a ter falhas: “Continua a não haver obrigação de fazer a consulta prévia numa plataforma electrónic­a. Pode ser por email. Isso levanta questões de transparên­cia. Se um email vem às 10 da manhã, e outro pode vir às duas e meia, como é que se garante a confidenci­alidade das propostas?” Não se garante. Isto, quando a lei acaba de ser melhorada.

Outra fonte do sector, ouvida pela SÁBADO, admite que “há uma certa complacênc­ia para a pequena irregulari­dade, de menor valor”. Bárbara Rosa acrescenta que é um problema cultural. Aliás, o blogue, que surgiu em 2011, começou até por ser criticado por andar a denunciar este tipo de situações. “Éramos uns populistas”, diz Oliveira Marques. “E também havia quem achasse que íamos formar um partido político, ou entrar para algum”, acrescenta Bárbara Rosa. O escrutínio deve ser normal numa democracia madura. “O que se passa é surreal, é muito pouco respeitáve­l, até sob o ponto de vista técnico, porque há asneiras básicas. É uma tontaria na gestão dos recursos públicos.” Mas, na sociedade civil, continuam a ser caso único – e às vezes a falar sozinhos.

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