SÁBADO

Mandela e Winnie

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Não foi bem uma conversa pessoal, mas quase. Pouco tempo depois de Nelson Mandela ser libertado pude jantar com ele e mais dois membros do ANC, na Cidade do Cabo, antes de uma sessão em que pela primeira vez se encontrou com elementos da comunidade portuguesa na África do Sul. Era um encontro tenso, pela percepção que o ANC tinha, e tinha razões para ter, da relação da comunidade portuguesa com a política do apartheid. Muitos tinham fugido de Moçambique e viam o ANC como uma variante do terrorismo “comunista” que com a Frelimo tinha “conquistad­o” Moçambique. Fui o orador nesse encontro, numa situação privilegia­da de português que tinha combatido o colonialis­mo e podia usar uma linguagem de moderação que “falava” para os dois lados. As coisas correram até bastante bem e Mandela e os portuguese­s que lá estiveram tiveram um primeiro encontro positivo.

Mas não foi disso que me lembrei ao ler a notícia da morte de Winnie Mandela. No jantar, Nelson Mandela manteve uma conversa muito longe de uma conversa de circunstân­cia ou diplomátic­a. Observei o modo como comia e percebia-se o peso dos anos de prisão e isolamento. Um homem que esteve muito tempo confinado e cuja vida era regulada por outros nos mais pequenos pormenores não comia da mesma maneira que um homem livre. Não sei bem como descrever: comia atento aos detalhes da comida, dividindo tudo em pedaços pequenos, bebendo vinho com evidente prazer (gostava muito de vinho do Porto, que lhe enviei vários anos em seguida…) e falava com muita clareza num inglês com um vago sotaque local. Mandela era um nobre da sua tribo, coisa que nos esquecemos muitas vezes, e nas colónias inglesas a nobreza tribal negra, como os príncipes indianos, era tratada de forma diferente, mesmo quando reprimida com violência. E Mandela falou várias vezes de Winnie de uma forma muito afectiva, quase íntima, e isso surpreende­u-me até porque eu tinha uma ideia negativa da senhora, cuja casa visitara no Soweto e cujas peripécias de vida e violências conhecia. E Mandela certamente também.

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