Isao Takahata (1935-2018)
Um adolescente corre desenfreado, com uma menina, que mais parece uma mochila (e afinal se revelará ser a sua irmã mais nova), às costas. Há clarões por todo o lado, multidões em pânico, a fugir, aos gritos, casas a arder, um barulho ensurdecedor, mas entre fintas, desvios e ressaltos, os dois escapam por um triz às bombas que chovem e lhes matam a mãe, condenando-os à casa de uma tia que os considera um fardo. As imagens – de O Túmulo dos Pirilampos, filme de animação antiguerra, absolutamente pioneiro no género, realizado em 1988 – arrepiam, embora se trate de bonecos e não de gente em carne e osso. Contudo, talvez não fossem tão expressivas se – além de se inspirarem num conto semiautobiográfico que Akiyuki Nosaka escreveu na década de 60 – o seu realizador e argumentista, Isao Takahata, não tivesse vivido algo semelhante: quando, a 29 de Junho de 1945, tinha ele nove anos, um raide aéreo norte-americano atingiu a sua cidade, ele viu-se sozinho com uma irmã, na rua. Correram, esconderam-se, sobreviveram, passaram por pilhas de mortos... e regressaram a casa. Felizmente o resto da família tinha-se refugiado num abrigo subterrâneo, no quintal, mas a experiência marcaria Isao para sempre. Empenhado na causa pacifista, fundou em 2010 uma associação de cineastas japoneses em defesa do Artigo 9 da Constituição – que estipulou, em 1947, em pleno pósguerra e com o país ocupado pelos Aliados, que o povo nipónico renunciaria “para sempre” às armas e ao uso da força como meio de re- solução de disputas internacionais. Ao longo do tempo, os sucessivos governos têm interpretado a lei com a ressalva da “autodefesa” para justificar qualquer investimento militar, mas nos últimos anos, invocando a ameaça coreana e a assertividade chinesa, o primeiro-ministro Shinzo Abe tem-se batido por alterar a lei “para reforçar a segurança nacional”, ideia que Takahata repudiou e contra a qual se manifestou até morrer, na última quinta-feira, aos 82 anos, de um cancro de pulmão.
Sobreviveu à guerra e tornou-se pacifista acérrimo. Isao Takahata, a alma sofisticada por trás dos bonecos japoneses – da Heidi ao Conan e ao Marco –, morreu na quinta-feira, 5 de Abril. Tinha 82 anos ESCAPOU POR UM TRIZ A UM RAIDE AÉREO. A MEMÓRIA ECOA EM O TÚMULODOS PIRILAMPOS, DE 1988
Amor à poesia
Nascido a 29 de Outubro de 1935 em Ujiyamada (hoje, Ise), na região de Kansai, na ilha japonesa de Honshu, e o mais novo de sete irmãos, Isao Takahata mudou-se com a família (em 1943) para Okayama, onde terminou o ensino secundário sob o olhar atento do pai, director da escola, seguindo em 1954 para Universidade de Tóquio, para estudar Literatura Francesa. Foi então que descobriu os versos de Jacques Prévert: em 1955 viu O Rei e o Pássaro, o filme de animação de Paul Grimault, com argumento escrito pelo poeta (cuja obra Isao traduziria, do original, para um volume editado em 2006), e decidiu que, quando terminasse o curso, se dedicaria ao cinema de animação. Dito e feito: em 1959, entrou na Toei Animation, uma produtora com vontade de rivalizar com os filmes da Disney. Aí conheceu Hayao Miyazaki, que se tornou o seu melhor amigo, parceiro criativo e sócio durante mais de 50 anos – e que costumava dizer que Isao era “um grande preguiçoso” quando lhe perguntavam porque é que quase não desenhava. A verdade era que o traço dele era fraco. A sua visão poética e humanista da animação é que interessava – e foi o segredo do sucesso dos estúdios Ghibli (nome de avião italiano, paixão de Miyazaki), que os dois fundaram em 1985, depois de terem deixado a Toei Animation (devido ao falhanço comercial do filme de estreia de Takahata, Horus, o Príncipe do Sol) e trabalhado numa produtora onde, entre falhanços, criaram as séries históricas (com argumentos ocidentais, na mira do sucesso mundial) Ana dos Cabelos Ruivos, Conan, o rapaz do futuro, Marco, dos Apeninos aos Andes e, ainda antes, Heidi, a Menina dos Alpes, que Isao imaginou vivaça porque ele próprio gostaria de o ter sido. “Não sabia mostrar os meus sentimentos. Quando sobrevivi ao raide e voltei a ver a minha mãe, fiquei muito feliz, mas mal consegui sorrir. Gostava de ter sido mais entusiástico”, contou, em entrevista ao The Japan Times .Como passar do tempo – e a fama de Miyazaki
(autor de A Princesa Mononoke ou O Castelo Andante) – Isao foi ficando mais na sombra (embora tenha voltado à realização em 2013, com O Conto da Princesa Kaguya, que lhe valeu uma nomeação para o Óscar). Era, contudo, a alma dos estúdios, porque adorava poesia, histórias dramáticas, grandes emoções – e de tudo isso fazer animação.