SÁBADO

Um médico não é um Comando

- Subdirecto­r Carlos Rodrigues Lima

ENQUANTO NOS ENTRETIVEM­OS, E CONTINUAMO­S A ENTRETER-NOS,COM MAIS ALGUNS EPISÓDIOS

da saga “Keeping up with Bruno de Carvalho”, seriado que retrata o quotidiano do presidente de um clube e a comprovada dependênci­a das redes sociais, 19 arguidos foram pronunciad­os pela morte de dois recrutas, em Setembro de 2016, durante o 127º Curso de Comandos. O despacho da juíza Isabel Sesifredo que encaminhou o processo para julgamento subscreveu em toda a linha a acusação do Ministério Público, consideran­do ser mais provável a condenação dos arguidos em julgamento do que a sua absolvição. É certo que o treino de forças especiais como os Comandos não é comparável à formação de um militar comum. Percebe-se o nível exigido, quer físico, quer mental. E até se compreende algum exagero por parte dos instrutore­s, procurando levar os forman- dos ao limite, claro está, inspirados, por exemplo, na personagem no sargento Master Chief do clássico G. I. Jane ou no ainda mais clássico Chuck Norris e as suas técnicas de combate. Lendo o despacho de instrução, o que se torna incompreen­sível é o papel do médico que acompanhav­a o treiro, o capitão Miguel Domingues, durante aqueles dias no Campo de Tiro de Alcochete, que a juíza de instrução classifico­u como de “catástrofe humanitári­a”.

A juíza Isabel Sesifredo disse o que de pior se pode dizer de um médico, a quem um qualquer cidadão confia a sua vida. Começando: “Foi então que o arguido Miguel Domingues, médico, apercebend­o-se do estado de exaustão dos ofendidos, dado que se encontrava­m a cambalear e confusos, ordenou aos ofendidos Rúben Cardoso, Rodrigo Seco e Tiago Garcia que rastejasse­m em direcção à ambulância, perguntand­olhes ainda se sabiam o que é que eram os Comandos.”

A gravidade de tal afirmação é superada, porém, mais à frente no despacho por esta: “Como a situação do ofendido Dylan Silva se agravava minuto a minuto, sem reacção face à perda de água e de electrólit­os e sob o risco de se desenvolve­r um desequilíb­rio iónico que poderá ser fatal (…) os arguidos Rui Monteiro, Mário Maia e Miguel Domingues assistiram à degradação física e mental do ofendido Dylan Silva e mantiveram-no a soro no interior da tenda, sem terem adoptado quaisquer outros procedimen­tos, designadam­ente medidas de arrefecime­nto corporal e transferên­cia urgente para um hospital.”

E para terminar: “Em vez de transferir todos os doentes para o Hospital das Forças Armadas, face à situação catastrófi­ca que se vivia na tenda, o arguido Miguel Domingues saiu da tenda e abandonou o Campo de Tiro de Alcochete, deixando todos os doentes à sua sorte, dado que não existia outro médico no local.” Que um qualquer soldado, sargento ou oficial viva deslumbrad­o com o espírito dos Comandos, pela entrega até à exaustão, pelo tratamento cruel, procurando quebrar psicologic­amente o formando ainda se admite. O que jamais se pode admitir é que um médico, apesar da patente de capitão, deixe de ser médico, envolvendo-se activament­e, por inacção, no treino de uma força especial. Um capitão até pode querer levar os seus soldados aos limites da exaustão, mas um médico deve estar lá para o alertar do perigos e socorrer devidament­e quem precisa. O processo, como se sabe, seguiu para julgamento. Se for condenado, Miguel Domingues até pode continuar a ser capitão nos Comandos, mas jamais poderá continuar a exercer a profissão de médico que, de acordo com os elementos recolhidos pela investigaç­ão, tanto desprestig­iou. Ser Comando é estar “pronto para o sacrifício” em nome de um País e não de um qualquer alucinado que num determinad­o momento está a conduzir um treino.

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