SÁBADO

Soldado Milhões, o herói da Primeira Guerra agora em filme

- TEXTO MARKUS ALMEIDA

Soldado Milhões, sobre um herói que se destacou entre os milhares de portuguese­s enviados para combater na Primeira Guerra Mundial, chega aos cinemas esta quinta, 12. Falámos com argumentis­ta e realizador­es

Ahistória é de antologia, entre o mito e o acontecime­nto histórico – mas muitos pormenores são ainda desconheci­dos. “Sabemos pouco sobre o acto heróico do soldado Milhais que deu origem ao nome Milhões”, conta ao GPS Mário Botequilha, o argumentis­ta do filme Soldado Milhões, com estreia nos cinemas no dia 12. “Sabemos que ficou sozinho a defender a trincheira, enquanto o regimento dele recuava, mas depois como é que isso aconteceu ao certo e o que se passou a seguir, se ficou três dias sozinho ou seis, isso não sabemos, mas o trabalho do argumentis­ta é preencher o que não se sabe – o antes e o depois do que se passou ali, tendo em conta que se trata de uma obra de ficção e não de um documentár­io.”

O que consta nos livros de História é que em Abril de 1918, na Batalha de La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial e perante a retirada do contingent­e português, um transmonta­no de Murça ficou para trás, nas trincheira­s do vale da ribeira de La Lys, na Flandres, a rechaçar as investidas dos alemães com uma metralhado­ra carinhosam­ente apelidada de Luisinha. Era um soldado raso, com 1,55 m de altura e bigode farfalhudo chamado Aníbal Augusto Milhais. Seria rebaptizad­o Milhões quando, depois de vaguear com a sua metralhado­ra por trincheira­s e descampado­s durante alguns dias, conseguiu reencontra­r-se com o Corpo

Expedicion­ário Português (CEP). Recebido como um herói, o seu comandante tê-lo-á saudado de uma forma que ficou na história: “Tu és Milhais, mas vales milhões”, terá dito.

“Quem me contou a história, quem me apresentou o Milhões, foi o [jornalista e escritor] José Jorge Letria”, diz ao GPS Jorge Paixão da Costa, realizador que nos últimos 15 anos encontrou a sua “zona de conforto” em ficções passadas entre o fim do século XIX e o princípio do XX.

“Não me canso de contar isto”, continua o realizador. “A maneira como o José Jorge descreve estas coisas... Quando acabei de falar com ele, estava convencido de que meio filme estava feito. Bastava escrever o que ele me contou e pedir financiame­nto.” Acabou por não ser assim tão fácil. Nunca é. O filme avançou em diferentes direcções, recuou e ficou em banho-maria até há dois anos, quando Gonçalo Galvão Teles se juntou ao projecto, a convite da produtora Pandora da Cunha Telles, da Ukbar Filmes. “Vem de um namoro antigo”, explica Gonçalo, “porque o primeiro filme que realizei, há 18 anos, o

Teorema de Pitágoras, foi produzido pelo pai dela [António da Cunha Telles]. Ela gostou do filme e disse que um dia gostaria de trabalhar comigo”. De início, a ideia era que fosse Gonçalo a realizar, rendendo Jorge Paixão da Costa, que entretanto tinha virado a sua atenção para outros projectos. Mas Jorge acabaria por regressar a pedido de Gonçalo – por causa da sua “experiênci­a em filmes de época” e porque “duas pessoas trabalham melhor que uma”. A realização é assinada por ambos, no que Gonçalo resume como “um filme a quatro mãos – aliás, a duas cabeças. Até diria mais: a uma cabeça”. A sinergia explica-se pela amizade que une os realizador­es, ambos professore­s na Universida­de Lusófona. Também os créditos da escrita do argumento são partilhado­s, neste caso entre Jorge Paixão da Costa e Mário Botequilha, argumentis­ta de televisão (Os Donos Disto Tudo, Os Boys) e de cinema

(Axilas, de José Fonseca da Costa) e que escreve regularmen­te no jornal satírico Inimigo Público.

O processo de trabalho entre Jorge e Mário não mudou muito desde o filme O Mistério da Estrada

de Sintra (2007), escrito por um e realizado pelo outro. “O Mário vem para minha casa, bebemos uns cafés, comemos umas bolachas, depois vamos almoçar, discutimos, ele escreve e no dia seguinte manda-me e eu leio”, conta Jorge.

Foi assim durante quatro anos. “Houve alturas em que parámos porque, quer ele, quer eu, tínhamos outros projectos. Depois voltámos e houve uma altura em que a Pandora nos disse ‘eh pá, tu e o Mário têm de acabar o guião, isto não pode continuar. E nós obedecemos, somos bem mandados [risos].” Mário corrobora, de forma mais resumida, o processo de escrita: “Vamos debatendo

até chegarmos a um argumento escrito por mim, mas que é discutido em todos os momentos.” Há, na verdade, dois Milhões no filme: o que vai à guerra, interpreta­do por João Arrais, e o representa­do por Miguel Borges, que 20 anos depois é homenagead­o – contra a sua vontade – com a mudança de nome da sua aldeia, de Valongo para Valongo de Milhais. A Gonçalo não interessav­a fazer um filme de acção sem que houvesse uma reflexão sobre “essa própria acção” e sobre “o que significa estar na guerra”, explica. Por isso, Milhais lida mal com essa homenagem – porque “se a fazem a ele, também deveriam homenagear todos os rapazes do Porto e de Vila Real que foram à guerra”.

A verdade, contudo, é que Milhais foi “o único soldado raso condecorad­o com uma medalha que só se dava a oficiais. Não há memória de algo assim”,

“ELE É O ÚNICO SOLDADO RASO CONDECORAD­O COM UMA MEDALHA QUE SÓ SE DAVA A OFICIAIS”, DIZ O REALIZADOR JORGE PAIXÃO DA COSTA

conta Jorge, antes de rematar, em tom de gracejo: “Na verdade nunca fomos grande coisa a lutar em guerras, somos muito melhores a comer frango.” No panorama do cinema português, é objecto raro um filme como este, com acção traduzida em explosões, tiros, mortos e efeitos especiais bastante razoáveis. Por isso, demorou anos a concretiza­r e “esteve até para ser uma série”, como lembra Mário Botequilha.

Vêem-se mortos nas trincheira­s, corpos amontados e um dos primeiros planos do filme é de um soldado português a levar a um tiro na cabeça. Contudo, do grupo de actores que acompanha João Arrais na guerra, não se registam, na película muitas baixas. Jorge Paixão da Costa explica: “Só matámos um porque só tínhamos dinheiro para aquele!” Não deixa de ser cinema português.

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O actor Miguel Borges no papel de Aníbal Augusto Milhais, à caça de um lobo que ameaça a sua aldeia, na serra da Garraia
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A metralhado­ra ligeira Lewis rapidament­e ganhou a alcunha Luisinha entre o contingent­e português que participou na Primeira Guerra
 ??  ?? Da esquerda para a direita: Raimundo Cosme, Tiago Teotónio Pereira, João Arrais e Isac Graça
Da esquerda para a direita: Raimundo Cosme, Tiago Teotónio Pereira, João Arrais e Isac Graça
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 ??  ?? Os feitos do Soldado Milhões (João Arrais) não se limitaram ao campo de batalha. Enquanto procurava o seu batalhão, o português salvou um oficial escocês de se afogar
Os feitos do Soldado Milhões (João Arrais) não se limitaram ao campo de batalha. Enquanto procurava o seu batalhão, o português salvou um oficial escocês de se afogar
 ??  ?? Os autores de Soldado Milhões leram Das Trincheira­s com Saudade, de Isabel Pestana Marques, e O Herói da Primeira Guerra Mundial ,de Francisco Galope
Os autores de Soldado Milhões leram Das Trincheira­s com Saudade, de Isabel Pestana Marques, e O Herói da Primeira Guerra Mundial ,de Francisco Galope

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