50 anos de arquitectura portuguesa na Casa da Arquitectura, em Matosinhos
A Gulbenkian comemorou meio século em Paris com OsUniversalistas–50anosde Arquitectura Portuguesa. A exposição da Cité de l’ Architecture chega agora a Matosinhos
Abrindo a primeira página do livro que acompanha a exposição – e onde estão registadas, além das fotografias das 50 obras exibidas, por Alfredo Cunha, as palavras do filósofo Eduardo Lourenço, as caricaturas de João Abel Manta, o filme Revolução, de Ana Hatherly e depoimentos de críticos convidados –, deparamo-nos de imediato com a definição de “universalistas” e “universalismo”, conceitos que o arquitecto Nuno Grande, comissário da exposição, usou para unir os diferentes períodos arquitectónicos – mas também políticos, económicos e sociais – descritos nesta retrospectiva histórica. “Não se trata de defender uma imposição da cultura portuguesa no mundo”, apressa-se a esclarecer: “É exac- tamente o contrário. É por isso que eu escrevo universalistas com ‘u’ pequeno e não com ‘U’ maiúsculo. Porque o universalismo português não tem nada a ver com o Universalismo centro-europeu, criado pelo Iluminismo francês, que passava por impor ao mundo uma visão europeia.” Esclarecida esta questão – que já causou sururu nas redes sociais e algumas críticas de tendenciosidade –, Nuno Grande leva-nos por cinco épocas distintas da História de Portugal, que “têm na heteronomia (ser eu e o outro) e heterodoxia (ser daqui e do mundo) os principais elos comuns”.
“Há uma maneira portuguesa de fazer arquitectura”, que advém não só de questões técnicas – uma certa parcimónia no uso dos materiais e uma certa contenção espacial (a arquitectura chã, próxima daquilo que é a sua essência) – mas também do facto de os portugueses serem um povo dialéctico, que, na opinião do curador, sempre adaptou a sua forma de intervir às circunstâncias autóctones de qualquer território. Isso foi notório na ditadura salazarista, quando o conceito imposto de “portugalidade” levou os próprios arquitectos a questionarem “o que é isto de ser português” e a responderem com propostas que misturavam tradição e modernidade – vejam-se as obras de Nuno Teotónio Pereira, Manuel Vicente, Fernando Távora ou Raul Hestnes Ferreira, por exemplo.
PARA NUNO GRANDE, SIZA É UM ARQUITECTO ESPECIAL, QUE PERCORREU TODOS OS UNIVERSALISMOS DESTE MEIO SÉCULO: “AOS 25 ANOS JÁ FAZIA OBRAS NOTÁVEIS”
Já num contexto colonial, Nuno Grande interessa-se por trazer à tona algumas questões “cinzentas”, diluídas entre o anticolonialismo primário e o luso-tropicalismo romantizado: “Nem tudo pode ser visto a preto e branco.” Com isto, e partindo de obras de nomes com projecção internacional, como Pancho Guedes – que em Moçambique trabalhou com o artista Malangatana –, o curador fala de uma oposição contra a ditadura e o colonialismo, enraizada dentro do próprio sistema do Estado Novo: “Muitos arquitectos eram pessoas de esquerda e do partido comunista, que tiveram de imigrar para África porque não conseguiam ter trabalho em Portugal. E lá conseguiram fazer alguma coisa pelas cidades e pelas populações locais.” Como? Criando edifícios e infraestruturas sui generis, internacionalistas mas com elementos das culturas locais – os mesmos edifícios que Nuno Grande se lembra de admirar em Angola, onde nasceu e viveu até aos 8 anos. Com o 25 de Abril, surgiu “uma nova hipótese de universalismo” através do programa SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), que permitiu aos arquitectos trabalharem a habitação social no centro das cidades e numa relação directa com a população – “a chamada arquitectura de participação”, que vai buscar influências aos modelos socialistas e à social-democracia madura do Centro e Norte da Europa. Os dois últimos períodos da exposição coincidem com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia e com a globalização dos anos 2000, mas também – ou, melhor, também por isso – com o definitivo despoletar da arquitectura portuguesa nas esferas internacionais. Recordemo-nos que, em cada um destes momentos históricos, Portugal foi distinguido com dois prémios Pritker (os Óscares da Arquitectura): Álvaro Siza Vieira (1992) e Eduardo Souto Moura (2011).
O primeiro é, aliás, dos poucos arquitectos a percorrer praticamente todos os universalismos descritos nesta viagem de meio século. “Aos 25 anos, já fazia obras notáveis”, diz Nuno Grande, referindo-o como excepção numa disciplina em que “ser-se jovem e maduro ao mesmo tempo acontece uma vez em cada década. Foi por isso que escolhi arquitectos com maturidade, que já construíram três ou quatro obras notáveis, publicaram em Portugal e no estrangeiro e ganharam prémios”. Os “mais novos” têm 50 ou pouco mais anos, como Paulo David, Nuno e José Mateus, do estúdio ARX Portugal, ou Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes, do ateliê Menos é Mais.
Nesta “maneira portuguesa de fazer arquitectura”, que sempre se caracterizou por uma relação de continuidade, de passagem do ofício do mestre para o discípulo – “Vemos isso no Siza em relação a Távora, no Souto de Moura em relação a Siza, no Gonçalo Byrne em relação a Nuno Teotónio Pereira, na Manuela Aires Mateus em relação a Gonçalo Byrne, no Manuel Graça Dias em relação a Manuel Vicente...” –, a questão que Nuno Grande levanta é se esta exposição será o capítulo final de uma História que poderá estar “fatalmente” a mudar: “Hoje, as pessoas saem dos cursos e não têm oportunidade de trabalhar com ninguém, têm de se juntar em colectivos para começar a fazer arquitectura colectivamente. Esta nova forma de trabalho, que ainda não está completamente identificada e que não passa pela transmissão de conhecimento em ateliê, irá provavelmente mudar... e dar uma belíssima exposição daqui a 20 anos.”
Teremos de esperar para ver se o tempo lhe dará ou não razão. Por enquanto, e paralelamente à exposição, será promovido o ciclo de debates Herdeiros ou Heréticos? – a durar dois meses, nos quais se abordará esta dicotomia de continuidade ou ruptura –, haverá uma sessão sobre a relação entre o Maio de 68 e o Abril de 74, com a presença de Alberto Martins (figura relevante da luta estudantil de Coimbra, em 1969), e discussões sobre o modo como a arquitectura portuguesa é vista fora da Europa, com a presença dos quatro críticos e especialistas franceses que contribuíram com os seus ensaios para o catálogo da exposição: Jean-Louis Cohen, Dominique Machabert, Jacques Lucan e Francis Rambert. Os Universalistas – 50 anos de Arquitectura Portuguesa estará na Casa da Arquitectura, em Matosinhos, até 19 de Agosto.