João Pereira Coutinho
FORAM ANOS E ANOS
a fazer sempre a mesma pergunta: “Quando sai o Cunha Rego?” O meu amigo Vasco Rosa, que com a idade foi ganhando uma paciência de santo, respondia coisas vagas: “Vamos ver”, “está quase”, “só falta um prefácio”.
O tempo passou, eu esqueci-me. E eis que o Vasco, num almoço dos nossos, anunciou em tom blasé, como quem comenta o estado do tempo: “Vai sair o Cunha Rego.” E saiu.
O livro intitula-se Na Prática a Teoria ÉOutra, foi organizado pelo Vasco e por André Cunha Rego, publicado heroicamente pela Dom Quixote com apoio decisivo da Randstad – e eu enfiei-me na cama, como sempre faço, a ler as 856 páginas de textos que o autor produziu entre 1957 e 1999, em jornais brasileiros ou portugueses.
É uma experiência esmagadora. Esmagadora pelo estilo, pela inteligência e pela capacidade, raríssima em qualquer intelectual, de dizer sempre algo premonitório e inusitado. Quando lemos um colunista regular, passamos os olhos pela primeira frase e adivinhamos logo a conclusão. Não com Cunha Rego, um flâneurque gostava de chegar ao destino pelo caminho mais improvável. E que destino era esse? Numa palavra, liberdade: é o termo recorrente da prosa e, como Otávio Frias Filho escreve num prefácio brilhante, é o valor que unifica o Cunha Rego da década de 50 – ou de 90. A defesa da liberdade contra o regime de Salazar; contra a ditadura militar brasileira; contra o MFA depois do 25 de Abril; e, já depois da revisão constitucional de 1982, a liberdade do Ocidente contra as ilusões moscovitas, que ele sabia condenadas ao fracasso muito antes de o Muro ruir em 1989. Mas não se pense que Cunha Rego embarcou na ilusão oposta de acreditar no “fim da história” com que muitos se banharam nos anos eufóricos da década de 90.
Nos últimos textos, escritos para o Diário de Notícias, encontramos o melhor Cunha Rego – alguém que discorre sobre os assuntos do dia sub specie aeternitatis, ou seja, procurando o eterno no efémero, exactamente como o seu herói maior, André Malraux. E, para quem escreve “sob o ponto de vista da eternidade”, a história, com o seu cortejo de horrores e de contingências, mas também de promessas e felicidades, nunca acaba. E nunca acaba porque Cunha Rego era um pluralista por excelência. Uso a palavra no seu sentido filosófico mais preciso: como alguém que defende a multiplicidade de valores e fins de vida que existem na experiência humana – e que exige dos próprios seres humanos uma atitude de escolha e, palavra importante para ele, de “coragem” para arriscar. O que Cunha Rego não perdoa nos espíritos medíocres – e Salazar é o supremo representante dessa casta – é a negação da vida, a asfixia da criatividade e do risco. Para entendermos Salazar, escreve o autor na década de 50, devemos olhar para “o funcionário público de 55 ou 60 anos, manga de alpaca desde a juventude, humilde, mal alimentado, de cuecas de nastro, colarinho postiço, solteiro, vivendo em pensão”. Poderia dizer-se que este cavaleiro da triste figura, às vezes, dá bons poetas. Mas Cunha Rego não estava a pensar em Fernando Pessoa; pensava, antes, no prócere e no seu povo, duas faces da mesma moeda, umbilicalmente ligados nessa espécie de torpor penitente. “Quando o povo português descobrir que não é culpado”, dirá Cunha Rego, “muita coisa acontecerá”. E aconteceu, de facto, embora a soberania dos mangas de alpaca continue no Portugal de hoje, e não apenas na política nativa. Se a alma é um vício, como dizia Agustina, continuamos viciados na tacanhez e no ressentimento que habitam a alma lusitana como um tumor inextirpável. Desses males não sofreu Cunha Rego.
E se falo em Agustina é por duas razões: primeiro, porque ela representa o oposto dessas “almas mortas” (o seu texto sobre a escritora é o segundo auto-retrato de Cunha Rego, depois de Malraux); mas também porque Cunha Rego partilhava com ela o gosto pelo aforismo sibilino – uma frase basta para resumir uma biblioteca inteira. E, nessa biblioteca, cabe tudo, mesmo antes de se tornar evidente para nós: a transformação da política em espectáculo de variedades (e de mentira permanente); a importância da Nação como condição de cosmopolitismo (uma verdade que, de tão negada, vai condenar a Europa ao abismo); o absurdo “culto do corpo” que é uma religião instalada; a neurose perante a mortalidade.
Sobre tudo isto escreveu Cunha Rego, sempre com uma atitude céptica, perplexa, elevada.
Foi longa a espera mas é doce o resultado.