Os 600 anos da Madeira e os descobrimentos
Quem foi mais decisivo nos Descobrimentos: o infante D. Henrique ou o infante D. Pedro? Esta é uma das perguntas fundamentais, defende o historiador, que aborda outros mistérios. Duarte Pacheco Pereira descobriu o Brasil? O que aconteceu ao ouro vindo de
Estudou muitos documentos, mas a maior emoção aconteceu em 2000, quando presidia à Comissão dos Descobrimentos Portugueses e teve na mão a carta que Pêro Vaz de Caminha escreveu a dar conta do “achamento” do Brasil, em Abril de 1500. “Está em muitíssimo bom estado. Tem uma letra bonita, certinha.” Joaquim Antero Romero Magalhães nasceu no Algarve a 18 de Abril de 1942, 100 anos depois de Antero de Quental, e por isso o pai, professor de Português – e responsável pela publicação dos poemas de António Aleixo (que conheceu no café Calcinha, em Loulé) –, decidiu que tinha de ter Antero no nome.
Foi para Coimbra estudar Direito, mas detestou e optou por História. Terminado o curso, deu aulas no Ensino Secundário, no Porto, e em 1973 mudou-se para a Faculdade de Economia de Coimbra, a convite do historiador Magalhães Godinho. Esteve lá 38 anos, como professor de História Económica e História das Relações Internacionais, até se jubilar, em 2012. Agora que se celebram os 600 anos da descoberta do arquipélago da Madeira, Romero Magalhães fala à SÁ-
BADO sobre vários temas da expansão ultramarina, desde a conquista de África à chegada ao Oriente.
Comemoram-se os 600 anos da descoberta do arquipélago da Madeira (Porto Santo em 1418 e Madeira em 1419). Estas datas são legítimas? É que no século XIV já aparecem referências às ilhas em mapas, como no Atlas Catalão, de 1375.
Uma coisa é avistar, outra é achar, registar. E povoar. É provável que já as tivessem avistado, mas a descoberta, no sentido de localizar a posição geográfica, será desses anos. Mas não há nenhum documento.
Porque é que não há documentos?
Há, a partir de certa altura. No início não, era só mais uma ilha que se descobria. A partir de 1427 foram os Açores, depois Cabo Verde [1460].
Não se valorizou a descoberta?
Só se valorizaram as árvores. Porto Santo não tinha praticamente nada, mas a Madeira tinha árvores. Só quando se começa a plantar trigo é que as coisas mudam, porque, como eram terras virgens, vulcânicas, a produção era fantástica. Mais tarde os cereais foram substituídos pelo açúcar, que acabou por estar na origem da grande fortuna da Madeira.
D. João I dá incentivos aos que “deixarem suas terras e pátrias” e se mudem para a Madeira. Qual foi o intuito do povoamento da Madeira e, mais tarde, dos Açores?
O aproveitamento agrícola. E isso viu-se rapidamente, nos anos 30, 40, do século XV, com a produtividade dos cereais. A Madeira, e depois os Açores, é que davam o pão a Portugal e também às concessões no Norte de África. Portugal sempre teve um défice cerealífero, assinalado desde o século XIII, com D. Dinis. Os cereais vinham do Norte da Europa, de algumas regiões espanholas (Andaluzia), do Mediterrâneo (Sicília) e do Norte de África. Segundo alguns historiadores, uma das razões da ida a Ceuta [1415], e depois a continuação da conquista do Norte de África, prende-se precisamente com os cereais.
Frutuoso, no século XVI, refere-se aos Açores como sendo “para escala e aguada dos cansados mareantes”.
Há duas rotas a considerar. Quando vinham do Atlântico Sul tinham de fazer um percurso inclinado para Oeste, para depois irem em direcção à Península Ibérica, e batiam na Terceira. Ou, se vinham do Golfo do México, os Açores eram uma escala obrigatória. De tal maneira que o Rei mandou organizar todo um sistema, com a família Canto, que se tornou riquíssima. Eles faziam o aprovisionamento dos navios que vinham do lado da Índia ou do Brasil. Aliás, Vasco da Gama, no regresso da primeira viagem, perde o irmão no trajecto e vai enterrá-lo a Angra do Heroísmo. E é preciso não esquecer que há um grande movimento com o Golfo da Guiné, por causa de São Jorge da Mina, com a busca pelo ouro e com o comércio de escravos e do marfim.
No fim do século XV acreditava-se que era possível chegar à Índia pelas ilhas do Ocidente.
Sim. Não suspeitavam da existência de um continente [América] entre o Atlântico e o Pacífico. Os cosmógrafos italianos acreditavam que havia muitas ilhas. Os mapas do século XV fazem referência a 25: São Brandão, toda em ouro, a ilha das Sete Cidades. Havia muita imaginação. Acreditavam que podiam chegar à Índia pelo Ocidente, a saltitar de ilha em ilha.
Os portugueses chegam à Guiné à procura do ouro. Trouxeram quantidades consideráveis de África?
Considerabilíssimas. De tal maneira que a partir de D. Afonso V o nosso cruzado é uma moeda de ouro. E essa moeda de ouro corre por toda a parte com um elevado teor de qualidade e de pureza. Chegámos a ter moedas de ouro de 24 quilates.
O que aconteceu a esse ouro, uma vez que não ficaram grandes obras?
Comeram-no [risos]. O problema é que não se desenvolve aqui uma indústria, a indústria em Portugal é uma coisa praticamente apenas do século XX. Agora, houve pessoas que enriqueceram.
Como é que o comércio de especiarias (coisas pequeninas como pimenta, canela e cravinho) é tão importante e traz tanta riqueza?
Devido à necessidade de conservar os alimentos. Não havia frigoríficos, não havia como conservar os produtos, sobretudo peixe e carne, portanto era preciso condimentá-los. Matavam uma vaca, comiam um bife e o que é que faziam ao resto? Ou a salgavam, ou então usavam as especiarias. E os condimentos tinham de ser fortes.
Adam Smith referiu que a cheGaspar
gada dos portugueses à Índia foi um dos mais importantes acontecimentos da história da humanidade – a par da chegada de Colombo à América.
É verdade, isso é um clássico.
Mas os produtos do Oriente não chegavam já à Europa?
Sim, pelos comerciantes italianos e através do tráfego da Ásia Menor.
Então, o que é que mudou com a rota marítima?
A quantidade. Uma coisa é o transporte que um camelo pode fazer, e outra o transporte de uma nau.
E os preços ficaram mais baratos?
Sim. Veneza teve uma quebra violenta. Aliás, todo o comércio da Península Itálica. Assim como o Egipto, que estava dominado pelos turcos.
O Brasil foi descoberto por acaso por Pedro Álvares Cabral?
Antes não havia uma descoberta devidamente reconhecida, mas acredito que havia uma suspeita forte. Jaime Cortesão considera que já antes pode ter havido alguma expedição, saída de S. Tomé, que ao fazer aquele arco para o Ocidente, para chegar aos Açores, tivesse visto terra.
Suspeita-se que Duarte Pacheco Pereira terá chegado ao Brasil em 1498, com base no que ele escreveu no Esmeraldo de Situ Orbis.
Sim, mas o livro terá sido escrito entre 1505 e 1508, ou seja já depois da descoberta do Brasil por Cabral. E nessa altura não me parece que houvesse alguma razão para que não se pudesse assumir: “Isto foi descoberto antes.”
Como interpreta a teimosia de D. João II no Tratado de Tordesilhas, que insiste em assegurar 370 léguas para Ocidente de Cabo Verde?
A questão da terra era secundária. Aliás, quando Cristóvão Colombo vai ter a entrevista com o Rei ele diz-lhe logo: “Isso é meu.” Não está preocupado com as ilhas que possam ser descobertas, quer é ter o oceano garantido para que as naus possam viajar tranquilamente até à Índia. Porque havia a questão da pirataria.
Portugal resistiu sempre ao desmembramento do Brasil. Em 1661, para estabelecer a paz com os holandeses indemnizou-os em 4 milhões de cruzados e cedeulhes as Molucas (Indonésia) e Ceilão (Sri Lanka).
E ainda o sal de Setúbal, decisivo nesse acordo por causa do arenque – fundamental na alimentação dos povos do Norte da Europa.
Havia também o orgulho da coroa de ter esse imenso território, uma vez que os espanhóis tinham uma área muito vasta na América do Sul?
Sim. Aliás, o próprio Marquês de Pombal está pouco interessado nas questões económicas do Brasil, mas não nas militares, e consegue reaver aos espanhóis a ilha de Santa Catarina, mais para sul. Com os holandeses, estabelece-se o tratado diplomático: a derrota deles acontece em 1554, depois há toda a questão da negociação até se chegar a um acordo, e aí o sal de Setúbal é fundamental para os convencer a estabelecer a paz. Eles pagam uma miséria para levar o sal.
Como é que Américo Vespúcio, um “aprendiz de náutica e cosmografia”, que participa na 1ª expedição ao Brasil, em 1501, acaba por dar o nome ao continente americano?
Por causa de um cartógrafo alemão [Martin Waldseemüller], que num mapa-múndi [em 1507] escreveu América nas terras assinaladas pelo Vespúcio como Novo Mundo. Ele escreveu, com base nas viagens que fez às Américas, com espanhóis e portugueses, uma carta, Mundus Novos, que teve uma divulgação enorme e foi traduzida em várias línguas.
Qual é a primeira referência à América: Novo Mundo? Índias Ocidentais?
Novo Mundo. Índias Ocidentais é uma designação que começa com os holandeses. Muitas vezes, o que acontece é que o descobridor não dá o nome à terra, ou então chama-lhe uma coisa e depois passa a ser outra. Como no Brasil. Cabral chama-lhe Terra de Vera Cruz, mas o Rei chama-lhe Terra de Santa Cruz. E ficou Brasil, por causa do pau-brasil.
Mas porque é que o pau-brasil tem esse nome?
Porque é vermelho, da cor da brasa. É uma planta tintureira muito importante usada para colorir os panos.
O que é que gostava de ter descoberto, ou confirmado, na história da expansão portuguesa?
Quando comecei, queria descobrir tudo e mais alguma coisa, mas isso passa. É evidente que iremos bater sempre nisto: afinal, quem foi o mais empreendedor nos Descobrimentos, o mais importante: o infante D. Henrique ou o infante D. Pedro? Esta talvez seja a pergunta inicial.
Poderá haver descobertas capazes de rescrever a história?
Claro. Há muitos documentos, muitas coisas, algumas conhecem-se, outras se calhar ainda estão fechadas nalgum cofre de um arquivista. Há arquivos que não sei até que ponto estão bem esquadrinhados, como é o caso do Vaticano. Ou de Tordesilhas. Ou o arquivo das Índias, em Sevilha. Pode haver surpresas.