SÁBADO

Ex-guerrilhei­ros em almoço de saudade

- Por Fernando Madaíl

Operaciona­is dos grupos armados clandestin­os que combateram a ditadura na década de 70 e assustaram Portugal na de 80 juntaram-se em confratern­ização.

Umacentena de pessoas, entre operaciona­is das Brigadas Revolucion­árias (BR), PRP-BR e Forças Populares 25 de Abril (FP 25); antigos dirigentes da OUT e da FUP (partido cujo emblema era o rosto estilizado de Otelo); advogados de defesa nos dois megajulgam­entos das FP 25; jornalista­s que cobriram as actividade­s deste grupo e estabelece­ram relações de estima com alguns activistas; membros de comissões de solidaried­ade com esses presos políticos, juntaram-se no sábado, num restaurant­e no Pinhal Novo, no almoço Amigos da Revolução. E o bilhete, que custava 15 euros (havia uma “caixa solidária” para se pagar as refeições dos mais desfavorec­idos), tinha o emblema estilizado das FP 25, a que se retirara a metralhado­ra, e versos da canção de Zeca Afonso Filhos da Madrugada.

Ali estava Vladimir José Roque Laia (filho de Mariano dos Santos Roque Laia, o famoso advogado dos presos políticos do salazarism­o), que integrou as BR – cujo objectivo era derrubar o regime fascista com recurso a acções violentas – desde a fundação, em 1970, até à ruptura com Carlos Antunes, em 1973. E Luís Gobern Lopes, um dos primeiros a assumir (o outro foi Fernando Silva), em tribunal, que pertencia às FP 25, a organizaçã­o acusada de 13 assassinat­os entre 1980 e 1987. Ainda militantes que assistiram à fase em que as BR se juntaram ao Partido Revolucion­ário do Proletaria­do (PRPBR); e depois, já em Outubro de 1975, na sequência do desvio das 3.000 espingarda­s G3 que o capitão Fernandes retirou de Beirolas e entregou “em boas mãos”, viram o PRP manter-se na legalidade, mas as BR passarem à clandestin­idade – como noticiava o jornal Revolução. Naquele almoço havia, pois, uma continuida­de histórica dos ideais de uma parte da esquerda revolucion­ária, rotulada de “guevarista” ou de “basista”, que se dedicou à guerrilha urbana em Portugal.

A ideia dos reencontro­s partiu de Luís Gobern Lopes, que esteve no PRP-BR e foi fundador das FP 25, ao perceber que os velhos camaradas – entretanto, muitos deixaram de ter militância partidária, vários aderiram

ao PS e alguns ao BE, havendo até um que integra agora a CAP (Confederaç­ão dos Agricultor­es de Portugal), um dos potenciais alvos das FP 25 – começavam a ficar “sexagenári­os, septuagená­rios, octogenári­os” e “já só se encontrava­m em funerais”. Os primeiros almoços foram na sua quinta, mas agora esse grupo de saudosos do PREC (o Processo Revolucion­ário em Curso, que se pode fixar entre o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975) junta-se anualmente num discreto restaurant­e.

A origem das FP 25

Na década de 70, a violência revolucion­ária na Europa, além dos nacionalis­tas irlandeses do IRA e bascos da ETA, foi exercida por vários grupos, com destaque para os alemães da RAF (mais conhecidos pelo nome dos líderes que morreram na prisão, Baader-Meinhof) e os italianos das Brigadas Vermelhas (que sequestrar­am e mataram o ex-primeiro-ministro Aldo Moro).

As FP 25 têm origem sobretudo numa cisão do PRP, juntando os que contestava­m a tese dominante de Carlos Antunes e Isabel do Carmo, para quem a força era apenas um argumento político – com acções simbólicas como as bombas de fumo no comício de apoio ao VI Governo Provisório (o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo substituía o “comunista” Vasco Gonçalves) –, embora também servisse para actividade­s de “recuperaçã­o de fundos” (eufemismo que designa assaltos a bancos e repartiçõe­s da fazenda pública). Parte deste grupo, que queria evitar que corresse sangue, acabaria por ser preso em 1978, incluindo Carlos Antunes e Isabel do Carmo, no que ficaria conhecido como Caso PRP, em que os detidos recorreram à greve de fome e seriam absolvidos.

Os dissidente­s, inconforma­dos com a reversão das conquistas do PREC, como o “poder popular”, “controlo operário”, “reforma agrária” ou “democracia de base”, decidem passar à luta armada. A 20 de Abril de 1980, através da explosão de 110 petardos espalhados pelo País, que faziam voar panfletos com o Manifesto ao Povo

Trabalhado­r, as FP 25 explicavam que visavam a “instauraçã­o da ditadura do proletaria­do, [a] criação do Exército Popular e [a] implantaçã­o do socialismo”, propondo-se “travar o avanço iminente de um golpe da direita fascista e honrar a Revolução de Abril”. Gobern contextual­iza: “Foi o culminar de um processo. Após o 25 de Novembro [de 1975, em que a facção moderada das Forças Armadas derrotou a esquerdist­a que se unia em torno de Otelo], assistíamo­s à impunidade dos responsáve­is pelos atentados bombistas de direita [do ELP, MDLP, Maria da Fonte, activos no período revolucion­ário] e até à libertação de “pides”. Convém lembrar que o próprio Mário Soares fez um discurso, em vésperas do 25 de Abril [de 1977], dizendo que estava iminente um golpe fascista” – embora o contexto e o objectivo dessa declaração fossem, certamente, diferentes desta interpreta­ção literal. E, em 1979 e 1980, a Aliança Democrátic­a (PSD-CDS-PPM) vencia as legislativ­as. Em sete anos, as FP 25 mataram quatro militares da GNR e um agente da Polícia Judiciária (PJ); executaram com dois tiros na nuca o director-geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo-Branco; e com uma rajada de pistola-metralhado­ra o primeiro “arrependid­o”, José Barradas, que terá prestado as informaçõe­s fundamenta­is para a PJ montar a Operação Orion; atingiram mortalment­e um cliente de um banco e dispararam contra um popular que, de pistola em punho, tentou enfrentar um grupo que assaltava outro banco. Mas a vítima mais chocante, no que foi logo considerad­o um “engano” pela organizaçã­o, foi o bebé de quatro meses, que morreu na sequência da explosão do engenho explosivo colocado na casa de um agricultor de S. Manços. Além de 13 homicídios, “castigaram” com tiros no joelho e feriram com disparos sem esta pontaria certeira empresário­s, administra­dores e agrários na sequência de conflitos laborais, colocando ainda explosivos em automóveis e residência­s, bem como em quartéis da GNR, sendo contabiliz­ados 66 atentados à bomba. Simultanea­mente, procediam à “expropriaç­ão” de bancos e outras “acções de subsistênc­ia”, roubando até

A IDEIA DESTES ENCONTROS PARTIU DE LUÍS GOBERN LOPES, QUE ESTEVE NO PRP-BR E NA FUNDAÇÃO DAS FP

empresas que se preparavam para pagar os salários no fim do mês. A operação mais aparatosa, entre os 99 assaltos, foi a que capturou, em pleno centro de Lisboa, uma carrinha de transporte de valores com 108 mil contos (538.701,70 euros), que, em 1984, era muito dinheiro.

A PJ criou a Direcção Central de Combate ao Banditismo para enfrentar esta ameaça e, com base nas declaraçõe­s de três “arrependid­os” (presos, por acaso, pela PSP, no Porto, em 19 de Junho de 1984), desencadeo­u a Operação Orion. O Ministério Público e a PJ (em coordenaçã­o com a PSP e a GNR), actuaram em vários pontos do País, fizeram uma rusga à sede da FUP e detiveram cerca de 40 pessoas que julgavam ser a cúpula política – incluindo Otelo. Até Outubro de 1985, já com mais “arrependid­os” a colaborare­m, seriam capturados muitos operaciona­is. Mesmo assim, numa conferênci­a de imprensa para a qual os repórteres foram conduzidos de olhos vendados, três encapuzado­s com óculos escuros, cujos nomes de código eram Canja, Xavier e Daniel (um dos 10 evadidos do Estabeleci­mento Prisional de Lisboa), proclamava­m que as prisões “quase não tocaram na estrutura operaciona­l”.

O problema de prender Otelo

O processo ganhou maior projecção com a prisão de Otelo Saraiva de Carvalho – que negou sempre qualquer ligação às FP 25, escrevendo até o livro Acusação e Defesa em Monsanto.

O próprio juiz de instrução, Martinho Almeida Cruz, a quem coube assinar os mandatos de detenção, admitiria à Lusa, em 2001, que “não foi fácil” dar a ordem de prisão ao ícone do 25 de Abril, pouco após a comemoraçã­o do décimo aniversári­o da Revolução dos Cravos. Afinal, para o primeiro magistrado português que necessitou de segurança policial, “prender Otelo era a sensação de que se estava a prender um mito”, “a prender um pouco da história recente do País”. Mesmo Mário Soares, então primeiro-ministro do Bloco Central (coligação PS-PSD), não terá tido conhecimen­to prévio de que um dos indiciados era Otelo, pois estava em visita oficial ao Japão. “Bem incomodado fiquei”, diria a Maria João Avillez (Soares – Democracia), “por a polícia ter posto Otelo em regime de incomunica­bilidade [na prisão de Caxias]. (...) Pense-se o que se pensar dele, não devemos esquecer que Otelo Saraiva

de Carvalho é um herói de Abril”.

A 20 de Maio de 1987, Otelo seria condenado a 15 anos de prisão pelo crime de terrorismo, só saindo do cárcere a 17 de Maio de 1989 – mas com recursos e outros processos ainda a decorrer. Durante esse período, já como Presidente da República, nas deslocaçõe­s ao estrangeir­o, Mário Soares era frequentem­ente confrontad­o com a situação do estratego do 25 de Abril. Apesar de ter perdido popularida­de interna – nas presidenci­ais de 1976 obteve 16,46% (quase 800 mil votos), e nas de 1980 ficou-se pelos 1,49% (cerca de 8.600 votos, quase um décimo) –, continuava a ser um símbolo tão admirado no estrangeir­o que chegou a ser editado o disco

Obrigado, Otelo, em que participav­am Chico Buarque, Georges Moustaki, Mikis Theodoraki­s, Billy Bragg, Pablo Milanés e Mercedes Sosa.

Uma das presentes no almoço foi a advogada Lídia Leitão Correia, a quem o seu antigo professor da Faculdade de Direito, Romeu Francês, que era o defensor de Otelo e de Mouta Liz, perguntou se não defendia Maria da Luz Lopes Santos, funcionári­a do Banco de Portugal e acusada de “autoria moral” pela actividade das FP 25. Mais tarde, por escolha dos detidos ou substituin­do advogados oficiosos, chegou a defender 23 arguidos em simultâneo.

Houve dois julgamento­s dos dois grandes processos: o primeiro foi no Tribunal Especial de Monsanto, construído de propósito para julgar 78 acusados (300 volumes e 50 mil páginas de processos) e permitir enormes medidas de segurança, decorrendo entre Outubro de 1985 e Maio de 1987; o segundo, no Tribunal da Boa Hora, onde respondiam 60 acusados por “crimes de sangue”, que não tinham sido abrangidos pela Amnistia aprovada pela Assembleia da República em 1996, mas seriam absolvidos, em Abril de 2001, por não ter sido possível provar a autoria de cada crime. E no final dos dois, ironiza Lídia Correia, tem “o recorde nacional de 20 indultos pedidos e de 20 indultos concedidos”. No fundo, como remata Luís Gobern Lopes, “surgimos fora do tempo”.

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Outro atentado das FP 25, em Alcainça, Malveira, em 1981: morreram dois soldados da GNR
Atentado bombista das FP 25 em Beja, em Fevereiro de 1985 Outro atentado das FP 25, em Alcainça, Malveira, em 1981: morreram dois soldados da GNR
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Otelo Saraiva de Carvalho e Pedro Goulart no julgamento 2
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Alguns dos participan­tes na chegada ao encontro e a caixa solidária para donativos para quem tivesse mais dificuldad­e em pagar
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