O thriller real de corrupção que levou Lula à prisão
Ao desfazer o novelo da corrupção, o juiz responsável Sérgio Moro esperava um gato e apanhouum “monstro”: o Presidente Lula da Silva
Luís Inácio Lula da Silva abriu a porta de fato-de-treino. Eram apenas 6h, mas não se manifestou particularmente surpreendido com os três delegados, dois escrivães e 10 agentes da polícia Federal que estavam no corredor do apartamento 122, num bloco residencial de São Bernardo do Campo naquela manhã de sexta-feira, 4 de Março de 2016. “Bom dia”, disse aos polícias. Em casa, além do ex-Presidente brasileiro, estavam a mulher, Maria Letícia, e dois polícias do seu corpo pessoal, escreve o jornalista Vladimir Netto em Lava Jato, o livro de não ficção mais vendido no Brasil em 2016 e que agora é publicado em Portugal. O comissário Luciano Flores, que chefiava a equipa, explicou-lhe que tinha um mandado para fazer buscas. E mais: queria interrogá-lo num lugar neutro. “Só saio daqui algemado”, respondeu o antigo chefe de Estado, irritado. A essa mesma hora, outros 44 mandados judiciais estavam a ser cumpridos noutras localidades dos estados de São Paulo, Baía e Rio de Janeiro. Faziam parte da 24ª fase da operação Lava Jato, iniciada dois anos antes e que já levara à prisão de empresários e políticos. Mas que, ao entrar na casa do mais popular dos antigos Presidentes, tocava também pela primeira vez na cúpula do poder brasileiro – e derrubaria a Presidente Dilma Rousseff. Os investigadores procuravam provas de que o apartamento 164-A, um tríplex no Guarujá (São Paulo) teria servido como pagamento a Lula por este ter beneficiado a construtora OAS. Só isso, supunham, justificaria que a empresa tivesse pago obras no valor de 770 mil reais (à época, cerca de 183 mil euros) e que incluíam um elevador privativo num apartamento sem comprador. No total, apartamento e obras trouxeram um rendimento extra a Lula de 2 milhões de reais (cerca de 500 mil euros), concluiu o juiz Sérgio Moro. E foi esse o caso – conjugado com a cedência de um terreno para a construção do Instituto Lula pela outrora maior empreiteira brasileira, a Odebrecht –, que levou à condenação de Lula, que desde dia 7 de Abril cumpre a pena de 12 anos e um mês.
O juiz Gilmar Mendes, que votou a favor do pedido de habeas corpus de Lula, disse à imprensa portuguesa que existem crimes mais graves que o do tríplex. Concorda?
Não tem que se estabelecer uma gradação do que é mais grave ou não. Para mim toda a corrupção é grave. Existem provas mais numerosas noutros processos, como o do sítio [de Atibaia, no estado de São Paulo, que teria sofrido obras feitas pelas construtoras OAS e Odebrecht, como meio de pagamento por terem sido beneficiadas]. Mas acho que é o que a justiça decidiu: olhou o caso e achou que tinha provas.
Não há uma perseguição política, como acusam os advogados e o próprio Lula, referindo um “delírio acusatório”?
Não acredito que haja. Acho que a Lava Jato atinge todos os partidos brasileiros. Há 14 partidos investigados. Há políticos do PT, PMDB, PSDB. Não vejo como uma perseguição. Vejo como uma oportunidade da sociedade brasileira de combater e discutir essa questão da corrupção. A Lava Jato não tem partido, é para todo o mundo. É um processo sério, bem baseado, que está acontecendo e que descobriu um esquema de corrupção que efectivamente existiu. É dos assuntos mais interessantes da Lava Jato. O que me levou a escrever o livro foi tentar descobrir o que é que tinha levado aquela operação específica a ter mais sucesso do que outras no Brasil. Foi uma mistura de trabalho e sorte. Porque se não fosse um dedo de sorte – alguns falam que é de Deus – não teria acontecido. Foi uma sequência de eventos. Esse novelo de que o Sérgio Moro fala começou a ser puxado com um doleiro [cambista ilegal de dólares]. Eram três doleiros sendo investigados e um deles era um velho conhecido da justiça.
Ele tinha um amigo, o Paulo Roberto Costa, ex-director da Petrobras. Por acaso a polícia acha no email do Youssef uma nota fiscal de um carro que está no nome do tal Roberto Costa. Eu costumo dizer que se não fosse a ganância do Paulo Roberto, a vontade de ganhar um presente, um carro de luxo, não teria Lava Jato, porque não se teria chegado ao director da Petrobras, que foi a porta de entrada na caixa de Pandora.
Com a delação premiada. Ele contou o que sabia. Este instrumento divide os responsáveis da justiça em Portugal. Aí no Brasil foi útil?
A delação premiada é um instrumento muito interessante. Foi um grande instrumento durante o processo da Lava Jato. A polícia chama o Paulo Roberto Costa só para prestar o depoimento. Mas ele cometeu um erro: pediu para os filhos (e isso está retratado na série O Mecanismo) irem ao escritório para pegar provas, esconder documentos, dinheiro. E a cena é cinematográfica, como está na série: por pouco eles não encontram a polícia. A polícia não tinha a chave, não arrombou a porta. Foi um erro. Sai do local, os filhos pegam o espólio, a polícia chega em seguida e vê nas câmaras de segurança. É inesperado. Ninguém esperava que comprassem o carro, que essa nota estivesse no Youssef, que os filhos fossem recolher provas. É uma série de acontecimentos que leva ao surgimento da Lava Jato. A questão da delação premiada também é uma certa coincidência. A lei que deu umas orientações sobre esse instrumento foi aprovada em 2013. Com esse instrumento avançou-se muito. Ele não é a única prova. Tem de ter provas de corroboração. Não pode ficar só na boca do delator.
Quantos delatores houve?
Mais de 140. Só da Odebrecht são 68.
A pena que recebem é diferente em função dos crimes relatados?
Eles conseguem uma pena menor. Os acordos são diferentes. O Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht, fez a delação premiada mas ficou com uma pena de 10 anos: dois anos e meio fechado, dois anos em casa e depois o regime vai mudando. Outros delatores tiveram penas ainda menores. É preciso fazer uma reflexão se funcionou ou não o instrumento da delação premiada. Se não tiver funcionado é legítimo mudar o acordo se a colaboração não foi tão efectiva. É uma questão de amadurecimento no uso desse instrumento, que ainda é muito recente no Brasil.
No livro cita o juiz Sérgio Moro, que numa conferência disse que pensava estar a desenrolar um novelo de lã em que na ponta iria aparecer um gato e o que surgiu foi um monstro. Ou seja, não imaginava as proporções que tomou. O Alberto Youssef. O que me levou a escrever o livro foi descobrir o que tinha levado a operação a ter sucesso. Foi uma mistura de trabalho e sorte Tem de ser apurado.
Exactamente. É claro que pode ter um erro aqui ou outro. Mas é natural de um processo de amadurecimento. As pessoas não podem fazer uma análise tão apaixonada das coisas.
Mas essa paixão é muito brasileira. Ou se ama ou se odeia o Lula.
Eu acho que a vida não é assim. A gente pode fazer o caminho moderado. O Brasil passa hoje por um processo de amadurecimento da democracia e tem de enfrentar essa questão da corrupção. A questão da desigualdade já foi reduzida no governo Lula. A questão da estabilidade económica, do combate à inflação, também. A da democracia, também. São ondas, como se fosse um consenso que vai crescendo na sociedade brasileira.
Surpreende-o que Lula, que se envolveu em todas essas fases, que combateu a ditadura, se deixe levar pela cor do dinheiro?
É lamentável que um Presidente brasileiro chegue a uma situação como esta. Mas o sistema político tinha muitas falhas, e não está tudo resolvido. Não só o Lula, mas toda a classe política estava envolvida.
Alberto Youssef disse aos advogados, depois de ser preso, que este processo abalaria a República.
O Youssef é um cara muito inteligente e sabia onde as malas tinham entrado, até onde o esquema ia. Tinha uma visão mais ampla. Como operador ele sabia dos partidos, das empresas, como funcionava. Ele sabia o que ia acontecer. Ele poderia ter feito isso logo quando foi preso e fez o acordo da delação. Mas não entregou todo o mundo. Os investigadores acharam que ele tinha ficado sem o negócio de doleiro porque entregou colegas. Mas não, ele só entregou os adversários e ficou sozinho no mercado. Nada mais profético do que as palavras dele. Depois que fechei o livro, aquela frase ficou repercutindo porque ele falou “vai cair” ou “vai
abalar” a República. Ele estava certo. Exacto. Ele é uma personagem fascinante nesta história.
Eu brinco com o Zé Padilha que na turma de O Mecanismo eu sou o cara da verdade. A realidade é melhor do que a ficção. É impressionante como isso aconteceu na vida real e conseguiu chegar onde chegou. O jornalista faz um primeiro rascunho da história e depois outros investigadores aprofundarão. É um
thriller policial que aconteceu na vida real. Se um autor de ficção se sentasse para escrever ele não ia pensar com tanto detalhe. Mais importante é que todo o mundo saiba da história, é como o Mãos Limpas na Itália. Histórias como essas ajudam no combate à corrupção. Sou procurado por países da Ásia, embaixadores, e da Europa também, para contar como aconteceu.
No Brasil, a promoção do livro deu grande destaque ao juiz Sérgio Moro. Ele tem sido acusado – até pela Presidente Dilma Rousseff – de ter motivações políticas. Tem?
Não concordo. Acho que ele não tem essa ligação política. Vejo o Sérgio Moro como um servidor público que resolveu fazer o melhor. Ele é um cara que treinou e estudou para combater a corrupção. Ele julga casos de corrupção complexos. Acusá-lo de ter uma ligação a um lado ou ao outro é tentar escapar dos factos através da retórica. No processo foi cuidadoso, houve gente que absolveu, que condenou.
No livro define como “posição de transparência” a permissão de divulgação da escuta em que a Dilma fala sobre o termo de posse que vai enviar ao Lula. Este tipo de divulgações é comum?
Ele achou que aquela conversa não tinha como ficar sob sigilo. Era de interesse público. Esse caso ficou famoso mas é igual a todos os outros. Ele sempre deu transparência ao processo: tem de ficar sob sigilo quando é importante para a colecta de provas. Se pode vir a público sem atrapalhar as decisões... O Supremo Tribunal Federal criticou o juiz Sérgio Moro pela divulgação. Houve uma repercussão muito grande da divulgação, mas faz parte do calor dos acontecimentos. Ele tomou a decisão que achou que era melhor no momento. A Lava Jato é um processo de amadurecimento. Se tem erros, vamos discutir, corrigir.
Sabe-se quanto dinheiro foi ilegalmente movimentado?
A Petrobras colocou no seu balanço oficial 6 bilhões [isto é, 1,4 mil milhões de euros] de reais de prejuízo. Mas acredito que todo o esquema moveu muito mais, porque ultrapassou a fronteira da Petrobras, na Caixa Económica, Banco do Brasil, obras públicas noutras áreas, não só na energia da Petrobras. Por enquanto é o valor oficial. Já é imenso.
O actual Presidente Michel Temer também terá problemas judiciais quando deixar o Planalto?
Acho que sim. Ele foi denunciado duas vezes. Essas denúncias foram barradas pela Câmara [dos deputados], o que significa que não podem ser investigadas enquanto ele for Presidente. A partir de Janeiro de 2019, se ele sair da Presidência – ainda está pensando se vai se candidatar, não sei como será essa eleição, está tudo muito confuso –, ele será alvo de investigações que nesse momento estão suspensas. Acredito que no futuro ele vai ter de responder a esses processos. É inexorável. Não tem como escapar, não.
É um homem que começou a vender croquetes num mercado e conseguiu influenciar as mais altas esferas nacionais. Esta realidade do Lava Jato é melhor do que a ficção. A partir de Janeiro de 2019, se sair da Presidência, Michel Temer será alvo de investigações que estão suspensas É lamentável que um Presidente brasileiro chegue a uma situação como esta. Mas o sistema tinha muitas falhas Mas mostrava um esquema: caso houvesse incómodo para o Lula no processo, ele tornar-se-ia ministro. Mostra que a política e a justiça se misturaram.