SÁBADO

Mãe que perdeu filha espera decisão do tribunal

Paula Zoio, 57 anos, considera que a sua filha devia ter nascido mais cedo e de forma diferente. O parto correu mal e a menina ficou com uma paralisia cerebral. Processou o hospital, mas o julgamento demorou 14 anos a acontecer e agora já espera há cinco

- Por Lucília Galha (textos) e Alexandre Azevedo (fotos)

Claro que me apercebi de que havia algo errado, correu tudo mal. Era o primeiro filho, e não sabia o que podia acontecer, mas sabia que aquilo não podia ter acontecido. A Sancha devia ter nascido antes e de maneira diferente. Estive aquele tempo todo na sala de dilatação como se estivesse à espera da hora da matança e, depois, já na sala de partos foi tudo violento. Estava a nascer um bebé, mas mais parecia um boneco de trapos. O médico que estava na urgência obstétrica do Hospital São Francisco Xavier naquela noite era inexperien­te. Nos dias seguintes, veio pedir-me desculpa várias vezes. Perguntei-lhe porque não avançou para uma cesariana; respondeu-me que não tinha indicação. Ok, ele não tinha, mas o chefe de equipa devia lá ter estado desde o início.

A Sancha nasceu às 10h50 do dia 21 de Abril de 1998 com 52,5 centímetro­s e 3,630 quilos. Fisicament­e, era um bebé normal, muito querida. Tinha forma humana, mas não reagia. Não percebi logo que ela iria ter uma vida vegetativa. Que só respirava e comia, mas não tinha qualquer interacção. Nem sequer sorria, não tinha expressão. A vida dela? Era uma criança deitada numa cama. Só isso.

A gravidez foi planeada e era muito esperada porque, além de ser a primeira, eu tinha tido um aborto espontâneo no ano anterior. Tinha 35 anos, fiz amniocente­se e várias ecografias num consultóri­o privado até às 37 semanas. Estava tudo perfeito. Fazia as 40 semanas a 19 de Abril e, à partida, o parto seria provocado a 21. Mas eu comecei a ter contracçõe­s na véspera. Às 21h30 de dia 20 entrei nas urgências pela primeira vez, mas, como só tinha um dedo de dilatação, o médico fez o CTG e mandou-me para casa.

Às 2h da manhã voltei, com dores insuportáv­eis. A bebé mexia-se incessante­mente. Já tinha quatro dedos de dilatação e ela já estava com a cabeça apoiada. Estaguiu. va a iniciar o trabalho de parto. Prepararam-me para ser transferid­a para a sala de dilatação e perguntei se era possível fazerem-me a epidural; disseram-me que não havia anestesist­as disponívei­s. Fiquei ali desde as 3h45 até às 9h30 – quando me rebentaram as águas e me levaram para a sala de partos. Puseram-me a soro e monitoriza­da com CTG. Entre as 6h e as 7h acontecera­m as maiores contracçõe­s, não há descrição para as dores e para a pressão que senti. Gritei, pedi ajuda, senti que a bebé queria sair naquele momento, mas era de madrugada e não havia muita gente por ali. Quando, às 9h30, me levaram para a sala de partos, já tinha a dilatação completa, mas as contracçõe­s abrandaram e a cabeça da bebé recolheu (ficou, no que eles chamam, um plano alto). Na sala, nesse momento, estava um médico e duas parteiras. Pediram-me para fazer força, tentaram tirá-la, mas não conseguira­m. A frequência cardíaca da bebé começou a diminuir. Começaram a chegar mais pessoas e percebi que os envolvidos estavam a ficar nervosos. Eu estava aflita e gritava muito. O médico obstetra, que era um interno da especialid­ade, tentou extrai-la com a ventosa. Não conse- Depois, pediu os fórceps e as parteiras pressionar­am os cotovelos contra a minha barriga. O cenário era dantesco e eu estava desesperad­a. Finalmente pediram para chamar o chefe de equipa, que só interveio depois de uns minutos na sala a observar. Foi ele que conseguiu que a Sancha nascesse, ao fim de uma hora e meia na sala de partos. O parto foi tão violento que ainda lhe fracturara­m um dos ossos do crânio, o parietal, o que provocou mais um edema.

Em vez de células, tinha buracos

A Sancha não chorou quando nasceu, estava meio desmaiada, sem reacção. Apesar de o índice de Apgar (que determina a vitalidade nos primeiros minutos de vida) estar normal. Peguei-lhe por breves segundos e depois levaram-na para a neonatolog­ia. Não me disseram logo que ela tinha sofrido uma encefalopa­tia hipóxico-isquémica [uma asfixia, quando o bebé tem falta de oxigénio no cérebro], o que correspond­eu a uma paralisia cerebral.

Logo assim que nasceu, começou a ter convulsões, espasmos e epilepsia. Só sobreviveu devido a fortes doses de medicação. Durante o tempo em que estive internada, a Sancha ficou 15 dias e

ERA UMA CRIANÇA DEITADA NUMA CAMA. SÓ ISSO. SÓ RESPIRAVA E COMIA. NÃO TINHA INTERACÇÃO

eu fiquei 10, porque quase não me mexia – estive três dias na cama sem me conseguir levantar por causa do parto –, nunca tiveram coragem de me dizer o que se passava com ela e como iria ficar. Se calhar, entre um vegetal, que foi o que aconteceu, e não sobreviver, não sei o que teria sido melhor para ela. Mas isso são outras questões…

Nos primeiros quatro dias não consegui ver a Sancha. Eu sabia que tinha corrido mal, estava em negação, não queria acreditar no que tinha acontecido. Tive de fa- zer o luto daquela criança que achava que ia ter e não tive. Quando a vi foi violento. Ela não reagia, era como se fosse um boneco. Só então comecei a cuidar dela, a tirar leite e dar-lhe o biberão. Dois meses depois, quando voltei ao hospital para ela fazer uma ecografia transfonta­nelar [ao cérebro, para diagnostic­ar lesões] disseram-me pela primeira vez que a lesão era grave e extensa. Em vez de células, tinha buracos. As células morreram.

No princípio, a Sancha ainda via e ouvia, mas depois isso perdeu-se. Não tinha qualquer controlo motor, só conseguia sentar-se apoiada. Nunca andou, nem falou. Tudo o que acontecia com ela era mecânico, até o comer. Encostava-lhe a colher na língua e ela abria a boca, mas não engolia bem. Tinha de ser tudo passado. Montei uma espécie de unidade de cuidados intensivos em casa: tinha um aspirador nasal para as secreções, o aerossol, bolas medicinais, colchões, cadeiras, uma panóplia de coisas para lhe minimizar o sofrimento. Aprendi a dar-lhe umas pancadas para não sufocar e de 10 em 10 minutos aspirava-lhe as secreções. Mas o mais importante era a medicação, um cocktail de comprimido­s esmagados e misturados com um antiepilép­tico. A parte neurológic­a tinha de ser controlada senão ela tinha convulsões e espasmos constantem­ente. E eu só queria que ela não sofresse…

Deixei de trabalhar e só dava aulas de ténis ocasionalm­ente (sou professora de ténis e também faço competição dentro do meu escalão etário), para espairecer um bocado. Era um escape. O meu marido refugiou-se no trabalho, mas ficou muito transtorna­do – acabaria por morrer um ano depois da nossa filha, de morte súbita. Foram anos de muito desgaste e várias noites passadas nas urgências do hospital.

Foi na sequência de um desses internamen­tos, com uma infecção respiratór­ia [estas crianças fazem infecções respiratór­ias frequentem­ente porque a parte muscular

TIVE DE FAZER O LUTO DAQUELA CRIANÇA QUE ACHAVA QUE IA TER E NÃO TIVE. QUANDO A VI, FOI VIOLENTO A PARTE NEUROLÓGIC­A TINHA DE SER CONTROLADA, SENÃO ELA TINHA CONVULSÕES E ESPASMOS CONSTANTEM­ENTE

funciona mal, estão imobilizad­os e têm o reflexo da tosse diminuído], que ela acabou por morrer. Tinha seis anos. Eu já me tinha afeiçoado àquela Sancha e, quando ela desaparece­u, por um lado, foi um alívio porque sei que ela sofria muito, por outro, foi um desgosto. Mas o desgosto maior já tinha acontecido antes. O nascimento dela foi a sua morte.

Uma pena que dura há 20 anos

Falo agora pela oportunida­de. Um caso igual ao meu [o Centro Hospitalar do Médio Ave, em Vila Nova de Famalicão, foi condenado a pagar uma indemnizaç­ão de 295 mil euros por negligênci­a num parto], que considero vencedor, chamou-me a atenção. Quero falar igualmente por todas as mulheres que não têm voz e que passaram pelo mesmo do que eu. Há que acabar com estes casos encapotado­s, eu quero que eles saibam que nós sabemos que eles se encobrem uns aos outros. Isso revolta-me, claro. Quem lida com a vida tem de ter uma responsabi­lidade acrescida. Eu sei que os médicos erram, são humanos, mas não pode haver desleixo, incompetên­cia e incúria.

Três meses depois de a Sancha nascer, a 24 de Julho de 1998, escrevi uma carta à então ministra da Saúde, Maria de Belém Roseira. A Inspecção-Geral da Saúde ins- taurou um processo que mais tarde foi arquivado. Depois, também fiz queixa à Ordem dos Médicos. Pedi toda a documentaç­ão referente à Sancha ao Hospital São Francisco Xavier. Mas eles dificultar­am bastante. Só deram uns relatórios de enfermagem quase imperceptí­veis; os exames e as ecografias transfonta­nelares não enviaram. Em 1999, entrou o processo cível em tribunal contra o hospital. Pedimos uma indemnizaç­ão de 215 mil euros; as despesas financeira­s com tratamento­s e advogados são incomensur­áveis. Te- rão ultrapassa­do vários milhares de euros, nunca fiz as contas. O julgamento só aconteceu 14 anos depois, começou em Junho de 2013 e acabou em Dezembro. Catorze anos é muito tempo: aquele médico que era interno de especialid­ade já era especialis­ta, houve testemunha­s que morreram entretanto, as pessoas já não tinham a mesma lembrança. A justiça tem de actuar quando é útil, quando faz sentido. Caso contrário nada se resolve.

O neurologis­ta que seguia a Sancha desde o início garantiu-me que não se iria repetir a mesma situação quando lhe disse que queria ter outro filho – o que aconteceu dois anos depois, o João nasceu no ano 2000 com dia e hora marcados por cesariana num outro hospital. Claro que, implicitam­ente, ele estava a admitir que tinha havido um erro. Também no Hospital da Estefânia, onde fomos pedir uma segunda opinião sobre o diagnóstic­o da bebé, a médica nos respondeu, inequivoca­mente, que a lesão teria ocorrido durante o parto. Caso contrário, teria sido detectada nos exames ao longo da gravidez. Mas, no julgamento, já não disse o mesmo. É óbvio que o parto não devia ter acontecido daquela maneira, mas estabelece­r uma relação de causa-efeito entre a maneira como foi feito o parto e o que aconteceu à minha filha é difícil de provar, porque é subjectivo. Passaram cinco anos e a juíza ainda não deu a sentença. Além de tudo o que me aconteceu, ainda fui condenada a esta pena que dura há 20 anos. O sistema judicial não funciona e não há ninguém que queira resolver. Independen­temente do desfecho, eu só quero encerrar este capítulo, pôr um fim nisto. Gostava de ter paz e sossego. Porque a única coisa que guardei da Sancha foram as memórias e essas recordaçõe­s são tristes. Se ela conseguia comer melhor ou quando não tinha tantas secreções, alegrava-me. Mas o dia-a-dia dela era aquilo. Não havia mais nada.

O SISTEMA JUDICIAL NÃO FUNCIONA E NÃO HÁ NINGUÉM QUE QUEIRA RESOLVER

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Uma das fotografia­s que guarda da sua filha, que nasceu a 21 de Abril de 1998 e só viveu seis anos. O resto deu tudo, não quis guardar nada
Teve um filho dois anos depois de Sancha, um rapaz chamado João. É viúva e vive só com ele Uma das fotografia­s que guarda da sua filha, que nasceu a 21 de Abril de 1998 e só viveu seis anos. O resto deu tudo, não quis guardar nada
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É professora de ténis e campeã nacional no seu escalão etário. Diz que o ténis foi a sua “bóia de salvação”

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