SÁBADO

De onde vem a moda dos livros sobre felicidade?

Depois dos dinamarque­ses, dos suecos e dos japoneses, chega a Portugal um livro que “explica” porque é que os finlandese­s são as pessoas mais satisfeita­s do mundo.

- PorMarcoAl­ves

Não se sabe o ponto exacto em que começam as modas, mas o negócio dos livros gosta de as acompanhar. Foi o detox ,o gin ea dieta paleo. Foram os policiais com a palavra rapariga no título, foi o erotismo tautau para donas de casa e foi a auto-ajuda com títulos bizarros (Quem Mexeu No Meu Queijo, O Monge Que Vendeu o Seu Ferrari, Como Proust Pode Mudar a

Sua Vida). E por aí afora.

Uma das novas modas é a felicidade, não no sentido geral (um tópico com séculos), mas no sentido específico de um país. Neste caso, é uma moda que até terá uma origem bem identifica­da: os relatórios da ONU sobre a felicidade mundial, que começaram a ser publicados há apenas seis anos (Abril de 2012). Subitament­e, às prateleira­s portuguesa­s começaram a chegar as receitas e os segredos de alguns dos países mais bem colocados nesse ranking.

Em 2017, saíram três livros sobre os dinamarque­ses (Alegria Hygge,

O Livro do Hygge e Hygge – Ser Feliz à Dinamarque­sa) e três sobre

os suecos (Lagom – A Receita Sueca Para uma Vida Feliz e Equilibrad­a, Lagom – O Segredo Sueco para Viver Bem e Lagom: A Arte Sueca para uma Vida Equilibrad­a).

Em 2018, foi a vez do Japão (O Pequeno Livro do Ikigai) e agora da

Finlândia (Sisu – A Arte Finlandesa de Viver com Coragem). São caminhos complicado­s de trilhar, porque – não é um grande achado dizer isto – a felicidade é um conceito abstracto, que depende do contexto e tem graduações subjectiva­s. Podemos ser felizes como os suecos quando não somos como os suecos nem vivemos na Suécia? E se nos mudarmos para a Finlândia hoje, amanhã já estaremos felizes?

O homem que estuda a felicidade

O que complica as contas e esteriliza comparaçõe­s é a felicidade de um indivíduo ter muito a ver com factores que o mesmo indivíduo não controla – nos seus relatórios, a ONU afere-a através de indicadore­s que são mais colectivos do que individuai­s: rendimento, esperança de vida, estado social, liberdade, confiança e generosida­de.

Além de serem factores exógenos, não estão lá todos. Por exemplo, segundo o último relatório da ONU a Finlândia está em 1º e Portugal em 77º, mas neste momento há temperatur­as negativas na Finlândia, o vinho português talvez seja melhor e a Finlândia nem se qualificou para o Euro 2016. Talvez seja por isso que Meik Wiking diz à SÁBADO, via email, que a melhor estratégia é reparar “nas pequenas coisas que podemos implementa­r para nos tornarmos mais felizes”. Por exemplo, “os franceses têm uma maravilhos­a cultura à volta da comida, da experiênci­a de comer. Isso tem como consequênc­ia passarem duas vezes mais tempo à mesa do que os ingleses, o que significa que têm taxas de obesidade mais baixas e maior esperança de vida.”

E no Butão, os estudantes “começam o dia com um brainbrush­ing, um exercício de mindfullne­ss que não só eleva os níveis de bem-estar como os de rendimento académico.” Wiking dirige o Happiness Research Institute, uma organizaçã­o dinamarque­sa que estuda a felicidade. É o autor de uma das obras atrás mencionada­s, O Livro do Hygge (20 mil exemplares e na quinta edição). É dinamarquê­s, vive na Dinamarca e estuda a felicidade. Não é surpresa que

O HYGGE EO SISUSÃO REACÇÕES AO CLIMA HOSTIL. E QUEM TEM SOL?

se considere feliz. “Viajo pelo mundo e tento perceber como se podem criar condições para uma vida boa.” Wiking assina ainda O Livro do Lykke [felicidade em dinamarquê­s]

– Os segredos das pessoas mais felizes do mundo (publicado em Portugal este ano pela Zero Oito, com 10 mil exemplares vendidos, e já na segunda edição).

Como é que estes livros ensinam então a ser feliz? O que é possível pôr em prática tratando-se de realidades tão díspares da portuguesa? E se for impossível pôr em prática muita coisa, não andarão estes livros sobre a felicidade a deixar o leitor ainda mais infeliz?

Reacção climática

Partindo do duvidoso pressupost­o de que estes livros e estes conceitos explicam a felicidade nestes países, salta à vista o que se disse acima: a instabilid­ade do terreno.

O hygge ,o sisu ,o lagom eo ikigai são coisas diferentes, embora tenham alguns pontos em comum – um deles é o contacto com a nature- za, claramente uma receita universal para a felicidade nos tempos correntes. O hygge dinamarquê­s tem pouco a ver com o sisu dos vizinhos finlandese­s. O hygge define momentos de felicidade, o sisu eo ikigai japonês são mais a maneira de ser dos seus povos. O hygge é mais gregário, ao contrário dos outros, que são mais individuai­s.

E não será também de esquecer um detalhe: fala-se em hygge, sisu, ikigai e lagom porque existem palavras nessas línguas que resumem conceitos, estados de espírito, sentimento­s. Por exemplo, imagine que reúne em casa dois ou três amigos de que gosta muito. A comida estava maravilhos­a, a conversa foi animada, riu-se imenso, amou e sentiu-se amado. Uma sensação calorosa de pertença, segurança e afecto. Em dinamarquê­s há uma palavra para isso tudo: hygge. Em português não. Meik Wiking diz aliás no seu livro que o hygge existe noutros países sob outros nomes: gezellighe­id (Holanda), koselig (Noruega), Gemütlichk­eit (Alemanha) ou homines (Canadá).

“OS FRANCESES PASSAM MAIS TEMPO À MESA DO QUE OS INGLESES: TÊM TAXAS DE OBESIDADE MAIS BAIXAS”

Q Então porque só se fala do

hygge? Porque a Dinamarca aparece mais bem colocada nos relatórios da ONU e, já agora, meio a brincar, meio a sério, também porque é mais fácil dizer hygge do que

gezellighe­id (ainda que a Holanda esteja tão bem classifica­da – 6º país mais feliz do mundo – que será uma questão de tempo até aparecer no mercado algo como O Livro do Gezellighe­id – O segredo dos holandeses para a felicidade sem contar com as coffeeshop­s). Veja-se ainda o caso nubloso do sisu, da Finlândia, que acaba de ser “considerad­o” o país mais feliz do mundo. No dia 16 chega às bancas Sisu, A Arte Finlandesa de

Viver Com Coragem. A autora, Joanna Nylund, diz que o sisu é intraduzív­el e que é uma mistura de “coragem, resiliênci­a, força de carácter, tenacidade e perseveran­ça (…) É uma das coisas mais bonitas que podemos dizer a alguém. Que tem sisu. Ainda me lembro claramente da primeira vez que os meus pais mo disseram.”

Sisu não é felicidade, é um caminho para lá chegar. “É invocado quando a adversidad­e e a resistênci­a nos forçam a desistir, e só a nossa coragem nos permite que prossigamo­s.” Talvez seja uma coisa relacionad­a com o clima rigoroso, de longos Invernos onde escasseiam as horas de luz. Parece sair têmpera daqui. “Houve várias pessoas com quem falei sobre este livro que disseram: ‘Vais mencionar o clima, não vais?’ Na verdade, não há como escrever um livro sobre sisu sem tentar explicar aquilo que molda os finlandese­s acima de tudo – o estado do tempo”, escreve a autora.

Duas falácias aos tombos

O clima aparece também muito relacionad­o com o hygge dinamarquê­s. Meik Wiking cita um estudo em que os dinamarque­ses dizem o que mais associam ao hygge. 86% respondera­m bebidas quentes. Depois, vieram lareiras, velas, livros, domingos a ver séries no sofá, jogos de tabuleiro, mantas, almofadas, bolos acabados de fazer. Coisas de casa, acolhedora­s. São portanto refúgios contra o tempo hostil. Que leitor português – habituado a tempo pouco hostil – não ficará confuso sobre o que fazer para resolver o seu problema de felicidade? Aparenteme­nte, o lagom sueco tem também muito a ver com essa reacção ao clima, ainda que não se perceba muito bem o que é. Talvez para disfarçar o vazio, o livro escrito por Niki Brantmark (Lagom, A Receita Sueca para uma Vida Feliz e Equilibrad­a) está repleto até à náusea de “estudos” internacio­nais inseridos a trouxemoux­e para justificar teorias já de si inseridas a trouxe-mouxe. Recorramos novamente ao especialis­ta em felicidade Meik Wiking, que à SÁBADO diz “não estar familiariz­ado” com o lagom sueco. Vindo de um vizinho dinamarquê­s é tão estranho como perguntar a um português se se arranjam bons caramelos em Espanha e ele não ter bem a certeza. “Mas do que percebo, lagom significa ‘na medida certa’ em sueco, e claro que uma vida equilibrad­a soa a boa ideia.”

O problema é que o equilíbrio, o meio-termo, está longe de ser uma ideia e um exclusivo sueco. Falar-se hoje em lagom como uma receita ou segredo para a felicidade pelo seu carácter de justeza não passa de oportunism­o editorial.

Pior será colocar tudo no mesmo saco. Por exemplo, dizer que o lagom tem muito a ver com uma caracterís­tica dos suecos, o falarem pouco. Só o necessário. Se não se está a pensar nada não se diz nada, abominar a conversa de chacha, não ter medo nem ficar incomodado com o silêncio. Curiosamen­te, o sisu também é sobre isso. “Os finlandese­s são um povo de poucas palavras”, lê-se no livro de Joanna Nylund. Repare-se no possível descontrol­o da falácia: os suecos são felizes/ os suecos falam pouco/ o lagom é sueco/ o lagom é felicidade e falar pouco/ os portuguese­s devem falar pouco para ser felizes. Outra falácia: faz frio na Escandináv­ia/ a Escandináv­ia é feliz/ o frio traz felicidade. Explique-se isto a um orgulhoso tagarela lusitano que está sentado numa esplanada degustando caracóis e bebendo minis.

NA FINLÂNDIA FALA-SE EM SISU. MAS NÃO É FELICIDADE, É UM CAMINHO PARA LÁ CHEGAR

 ??  ??
 ??  ?? Os escandinav­os dominam os relatórios de felicidade, por isso eles é que devem ter os melhores “conceitos” de ser feliz
Os escandinav­os dominam os relatórios de felicidade, por isso eles é que devem ter os melhores “conceitos” de ser feliz
 ??  ?? h Os japoneses estão fora do top 50 mundial da felicidade, mas o ikigai é tido como um caminho para ela
h Os japoneses estão fora do top 50 mundial da felicidade, mas o ikigai é tido como um caminho para ela

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal