SÁBADO

O AVIADOR SEM MEDO

A primeira vez que um civil voou de Moçambique a Lisboa foi em 1933. Armando Torre do Valle fez 12 mil quilómetro­s com depósitos que só aguentavam oito horas.

- Por Vanda Marques

Oseu primeiro avião durou menos de 24 horas. Foi um presente de Natal que Armando Torre do Valle deu a si mesmo, em 1929. Tinha 46 anos, nenhuma experiênci­a em aviação, facto que compensava com conhecimen­tos automóveis e uma dose extrema de ousadia. Foi no segundo voo desse dia de Natal que o acidente aconteceu: “À tarde, tornei a subir nele, com o piloto instrutor do club e ao aterrar necessitei de abrir o gás ao motor, mas julgo que o fiz depressa demais, o motor não respondeu e o resultado foi um

crash! O aparelho ficou com a fuselagem partida ao meio, uma asa bastante avariada e a outra pouco, nós nada sofremos.” Já o avião foi enviado para Joanesburg­o em caixas. “Não foi positivame­nte uma entrada auspiciosa, mas enfim, podia ter sido pior”, escreveu o pioneiro da aviação em Moçambique, ao seu irmão Eugénio.

O aventureir­o, que nasceu no Porto, via as coisas nessa perspectiv­a: podia ter sido pior, logo não desistia. Ainda assim, acreditou que precisava de ter mais conhecimen­tos, recorda à SÁBADO o seu neto Vasco d’Avillez. “Ele foi a Joanesburg­o e teve uma semana de formação, com veteranos locais que lhe passaram uma carta – o brevet da altura – que atestava que podia pilotar. Só lhe fizeram uma advertênci­a: ter cuidado com as nuvens nos dias de chuva. Pois, foi a primeira coisa que ele fez no regresso a Moçambique: entrar nas nuvens.” Armando descreveu a aventura em carta: “Foi o diabo, apanhei um narrável susto e esperava a todo o momento ir estampar-me de encontro à montanha. Eu calculo que isto tudo durou 30 segundos, mas pareceram-me séculos.”

Estes seriam os primeiros voos de preparação para a sua maior proeza: fazer 12 mil quilómetro­s, entre Moçambique (Xai-Xai) e Lisboa em 1933. Sem apoios nem patrocínio­s. Apenas com a ajuda de um aluno, Amadeu Araújo, que nunca pilotou. Armando Torre do Valle preparou tudo: mapas, mantimento­s, até teve de juntar mais dois bidões de gasolina extra – um de cada lado do avião, correndo o risco de verterem, causando uma explosão – para conseguir fazer mais tempo de voo seguido. O máximo que conseguiu foram oito horas, mas foi tudo estudado ao detalhe. Quem o revela é Vasco d’Avillez, que investiga a história do avô desde 1991 e entrevisto­u pessoas que o conheceram, leu cartas e consultou dezenas de jornais da época. “Ele fez mapas para a viagem toda e até mandou instalar um ponto de combustíve­l, o bidon

cinq (bidão cinco), para ter assistênci­a entre o Cairo e Rabat. Era previdente e nunca teve medo”, conclui. Durante a viagem teve avarias, mas só numa ocasião correu maior perigo. “Apanhou muitos ventos no deserto do Saara e teve problemas de equilíbrio. Se subisse muito, para fugir da areia, caso houvesse uma avaria a queda seria fatal. Mas se fosse baixo, levava com muito vento e areia. Teve de ir no meio a controlar tudo.”

A travessia, que começou a 28 de Março de 1933 e terminou com a aterragem em Alverca – ainda não existia aeroporto em Lisboa – no dia 14 de Maio, fez-se sem publicidad­e. Quando aterrou em Portugal, o oficial de dia que o recebeu na base fa-

“FOI O DIABO, APANHEI UM NARRÁVEL SUSTO E ESPERAVA A TODO O MOMENTO IR ESTAMPAR-ME”

lou com ele em francês. Não acreditava­m que fosse português. “Ele fazia isto para se ultrapassa­r a si próprio. Como, por exemplo, fez voo à vela, que consistia num planador puxado por um automóvel. Porque o fazia? Porque era perigoso.” Armando Torre do Valle também tinha em mente outra ideia: criar uma companhia aérea que ligasse África e Portugal. Anos mais tarde, juntou-se a Manuel Maria Rocha que fundou a primeira companhia aérea comercial de Moçambique, a Aero-Colonial.

Archotes para indicar o caminho

Vasco d’Avillez, filho de Maria Torre do Valle, não sabia nada do avô materno, herói da aviação portuguesa e moçambican­a, que tinha morrido em África 11 anos antes de ter nascido. Foi por acaso que começou a estudá-lo. “Em 1991, a RTP decidiu fa- zer um programa sobre a viagem de 1933 e pediram à minha mãe que falasse. Ela não se sentia à vontade, e pediu-me. Mas eu disse-lhe: ‘Mãe, não sei nada do avô’”, recorda à SÁBADO. Desde que a avó Emma, mulher de Armando, tinha deixado Moçambique com os três filhos em 1932 – “ela não aguentava todas aquelas aventuras” – que não se falava muito de Armando Torre do Valle. “Quando comecei a pesquisar, descobri tantas coisas escritas em jornais que fiquei apaixonado por este avô. Sempre que a minha mãe fazia anos, eu contava mais uma história da vida dele. Ficou a saber imensas coisas sobre o pai. Mais tarde, ela pediu-me para não deixar esquecer o pai dela, por isso escrevi o livro Armando Torre do Valle – Herói do ar em Moçambique.”

A biografia foi editada em Novembro de 2017 e Vasco d’Avillez escreveu-a com o filho, o jornalista Filipe d’Avillez. Fez ainda duas viagens a Moçambique para conseguir retratar melhor a personalid­ade destemida

“ELE NÃO QUERIA PUBLICIDAD­E. FAZIA ISTO PARA SE ULTRAPASSA­R A SI PRÓPRIO”

do avô que não via a aviação apenas como um hobby de luxo. “Descobri nos arquivos da WNLA [Witwatersr­and Native Labour Associatio­n, empresa onde trabalhava e que recrutava trabalhado­res para as minas] que ele ajudava pessoas. Uma vez trouxe uma grávida do Xai-Xai para Lourenço Marques [cerca de 216 km], porque o parto complicou-se. Levou-a à noite, o que em 1930, era complicado. Teve de pedir aos 200 candidatos a mineiros que se pusessem com archotes à espera do avião, para conseguir aterrar.”

210 elefantes caçados

Armando Torre do Valle era uma referência na comunidade, foi presidente do Sporting Clube de Gaza, e juntamente com Carlos Calçada Bastos fundou o Aero Clube de Moçambique. No livro, Vasco d’Avillez recorda um recorte do Notícias de Lourenço Marques, de 16 de Novembro de 1960, sobre uma homenagem a Armando Torre do Valle e durante a qual Carlos Calçada Bastos, também piloto, discursou: “Eu não posso dizer mais nada sobre Armando Torre do Valle – aos velhos nada adianto, porque o conheceram –, aos novos só digo que Torre do Valle era um gentleman , um sportsman, falava diversas línguas, tanto convivendo com as classes altas como com as baixas, inspirando-nos respeito, consideraç­ão e admiração.”

O piloto nasceu em 1883 no Porto, nessa altura o pai estava em Mofera çambique a trabalhar na expansão dos caminhos-de-ferro. Terá sido aos 12 anos que Armando – refere a biografia – foi viver para África, seguindo o exemplo dos irmãos. Só vinha à metrópole em passeios e numa dessas vezes assistiu a um concerto, no qual se apaixonou por uma pianista, 10 anos mais nova. Armando casou com Emma, em 1915, por procuração, já que ele estava em Moçambique. As aventuras não podiam esperar. Quando chega a Moçambique, o marido avisa a recém-casada que passa muitas temporadas fora, por isso tinha-lhe arranjado um veículo para ela se deslocar: uma mota com

sidecar. “Ele era uma pessoa fantástica, de poucas palavras, gostava de arriscar tudo, sem hesitar um segundo”, diz Vasco d’Avillez.

Em África, não se interessav­a apenas pela aviação, a caça grossa – usava uma espingarda com uma es- de marfim na ponta da culatra – era outro dos seus passatempo­s. “Tinha uma grande preparação física e era um grande caçador. Matou cerca de 210 elefantes”, conta o neto que nunca esqueceu a frase de um dos amigos do avô que entrevisto­u – “O Torre do Valle teve uma morte gloriosa. Morreu a matar um elefante, isso é que é uma morte gloriosa, não é morrer numa cama.”

Foi a 16 de Setembro, de 1937, que Armando Torre do Valle, com 54 anos, foi em mais uma caçada de elefantes. Uma manada de oito tinha matado um homem, por isso tinham de agir. “Foi no Chibuto que tudo aconteceu. Ele costumava disparar sempre para o olho, porque atravessav­a o cerebelo e imobilizav­a o animal. Desta vez, o tiro bateu na caixa craniana, o elefante não perdeu o movimento logo e correu em direcção a ele. Caiu morto e o meu avô também.”

Uma morte trágica, longe da família – os três filhos, com quem trocava várias cartas, por exemplo, combinava com Maria dar “um spin de avião”, estavam a milhares de quilómetro­s. Pelo menos era o que se pensava até Vasco d’Avillez descobrir que afinal a família era maior. “A minha mãe tinha de renovar a carta de condução e fui ao tribunal de Cascais pedir uma certidão. Quem me atendeu foi uma rapariga de Moçambique que me pediu o nome de solteira da minha mãe, e o dos pais dela. Em resposta disse-me: ‘Esse é o meu avô.’” Armando Torre do Valle teve uma filha antes de se casar, e perfilhou-a. Depois do 25 de Abril, Maria do Carmo veio para Portugal e vivia a 10 minutos da família Avillez. A história Torre do Valle ganhou um outro capítulo inesperado. A mãe de Vasco d’Avillez ficou surpreendi­da quando soube da notícia e no início não queria acreditar. Mas a curiosidad­e levou-a a encontrar-se com a irmã. O autor do livro recorda que as duas deram as mãos e conversara­m muito. A sua mãe perguntou à irmã: “Como foi possível isto?” A irmã respondeu: “Não se lembra do nosso pai? Alto, loiro, mãos de artista, aventureir­o. Era irresistív­el.”

“O TORRE DO VALLE TEVE UMA MORTE GLORIOSA”, DISSE UM DOS SEUS AMIGOS

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Armando Torre do Valle, em Moçambique, ao lado do seu primeiro avião Gaza. Foi o primeiro piloto civil de Moçambique
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Armando Torre do Valle falava várias línguas e dialectos locais, era louro e “irresistív­el”
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