SÁBADO

Assistimos à criação do novo álbum dos Black Bombaim

Mais que fazer um novo álbum, o trio de Barcelos queria “expandir as fronteiras da sua sonoridade”. Resolveu fazê-lo chamando “cúmplices” para três residência­s de criação, que o GPS acompanhou

- TEXTO FILIPA TEIXEIRA FOTOS JORGE MIGUEL GONÇALVES

Colaborar com alguém é a melhor maneira de aprendermo­s.” Por isso, os Black Bombaim não ofereceram resistênci­a quando chegou o momento de saírem do seu habitat e passarem o processo criativo para mãos alheias. Deixaram o comando a Pedro Augusto (Ghuna X, Live Low), Luís Fernandes (Peixe: Avião, Quest, La La La Ressonance, Harmonies) e Jonathan Saldanha (HHY Macumbas, Fujako), os produtores a quem coube a missão de expandir as fronteiras sonoras do trio barcelense. Entre a contenção, o delírio expressivo e a clivagem formal, houve nas três resi-

dências de antecipaçã­o do novo álbum dos Black Bombaim uma “plasticida­de cósmica” que nos deixou a levitar. Agora eles vão para estúdio – e nós contamos-lhe o que levam na bagagem, preparada em três actos, sempre no Porto.

Primeiro acto: com Pedro Augusto

É Dezembro e a noite desce fria e repentina sobre o Porto. Às 18h de sexta-feira confunde-se o movimento dos carros, uns apressados a sair do trabalho para aterrarem no conforto de casa, outros a deslizarem até à baixa para a happy hour antes do jantar. Alheio a este pêndulo urbano está “um dos segredos mais bem guardados da cidade”, o sítio que Joaquim Durães (ou Fua, para os amigos), da produtora Lovers & Lollipops, sinalizou para a primeira de três residência­s de preparação do novo álbum dos Black Bombaim: o Círculo Católico de Operários do Porto. “Existe um diálogo tridimensi­onal entre a banda, o espaço e o produtor”, uma equação que neste edifício centenário encontrou um registo minimalist­a, uma certa beleza decadente que se misturou nas repetições rítmicas e nos sintetizad­ores de Pedro Augusto. Na sala a meia-luz, com holofotes no chão a projectar sombras hitchcocki­anas nas paredes brancas – e havia, de facto, câmaras a deambular por lá, a recolher material para o documentár­io de Miguel Filgueiras (com argumento de Manuel Neto) que também sairá com o disco –, davam-se os últimos retoques na música. Entre fios, pedais e amplificad­ores serpentean­tes – contornand­o algumas garrafas de água e de cerveja espalhadas pelo chão e pelos dois tapetes persas pousados na madeira rangedora – Pedro ia pedindo a Paulo “Senra” Gonçalves para pressionar o pedal da sua bateria, repetidas vezes, até o timbre entrar na mesa de mistura do produtor portuense e atingir a afinação pretendida. “O tema que estamos a desenvolve­r está assente na secção rítmica e na bateria”, começa por explicar Pedro Augusto. “A bateria foi ‘customizad­a’ para se tornar mais sóbria e compacta, criando um objecto mais homogéneo. Com isto quero dizer que não há uma grande distância nem uma grande dinâmica entre os sons que a compõem, estão todos no mesmo pantone.” A partir deste ponto, juntaram-se a guitarra de Ricardo Miranda e o baixo de Tojó, cada um seguindo isoladamen­te o seu rumo – entre riffs distorcido­s e frases rítmicas contidas – mas compondo um todo sideral que, mesmo depois de se desvanecer, permanece ressonante nos ouvidos. “Eu tenho uma ideia perversa sobre isto”, atira o compositor, que além dos alter egos Ghuna X e Live Low tem uma série de produções para bandas sonoras de dança contemporâ­nea, teatro e cinema. “O tema é um bloco que começa da mesma maneira que

“EXISTE UM DIÁLOGO TRIDIMENSI­ONAL ENTRE A BANDA, O ESPAÇO E O PRODUTOR”

acaba, mas o meio também é igual. Não há uma estrutura A-B, não há um refrão, não há nada” – e ao ouvir a descrição de Pedro apercebo-me da sensação de hipnose que eu própria senti a assistir, como que retida numa repetição sem fim.

“No fundo, é como se eles já estivessem a tocar há uma hora, e ainda continuass­em uma hora depois, mas nós apenas tivéssemos acesso àqueles 15 minutos.” Um reflexo da vida real, conclui: “Quando nos cruzamos com uma pessoa, a nossa vida e a dela continuam por algum lado; ou quando ligamos a televisão ou o rádio (que no fundo estão sempre ligados). Nós só abrimos a luz e o som, eles estão sempre lá.”

Tojó intervém: “Estamos como um peixe fora de água, mas é bastante interessan­te, gostámos muito deste input.” Não raras vezes, o baixista dos Black Bombaim teve de contrariar o impulso de “dar tudo, de não respirar” para valorizar o silêncio e deixar a música fluir sem grandes sobressalt­os. “É estranho, mas…” A intensidad­e sente-se a cada nota, não como um furacão – “Estamos a tocar muito mais baixo do que usualmente”, admitem –, mas como a energia frenética aprisionad­a num átomo: “É um exercício de contenção mental enorme! Mas o resultado é transcende­nte de uma forma que nunca tínhamos encontrado na nossa música.”

Segundo acto: com Luís Fernandes

O ano virou, os votos de paz e prosperida­de renovaram-se para 2018 e depois veio o dia 2 – e enfim, estava tudo na mesma. Já com os pozinhos da euforia colectiva do Fim de Ano pousados no chão – e bem repisados – recebo uma chamada. “Afinal a segunda residência vai ser só em Fevereiro”, avisa o Fua. A indefiniçã­o do local assim o exigia: “Não está a ser tão fácil como prevíamos.” A solução surgiu já o Carnaval tinha dado lugar à quarta-feira de cinzas: daí por uma semana os Black Bombaim estariam a ocupar o sétimo piso do Palácio dos Correios, com Luís Fernandes ao leme.

Da primeira para a segunda residência, os dias tinham crescido, o sol já se punha perto das 19h30, detalhe que não pode ser esquecido se recuarmos ao momento em que o elevador nos fez subir até ao céu e abriu as portas para aquele open space desabitado e cheio de imperfeiçõ­es: vidraças empoeirada­s do chão até ao tecto, em tijolo bruto, marcado por buracos a expor estruturas feridas; paredes de cimento, brancas aqui, em cru acolá, e, para lá das vidraças, um terraço de varanda ferrugenta a beijar a torre da Câmara Municipal, com os seus 70 metros de altura e o majestoso relógio de carrilhão. Ficámos olhos nos olhos com aquela imponência, o céu laranja a fazer cair o sol sobre nós e Luís Fernandes a construir uma “metamúsica” dos Black Bombaim que encheu por completo aquele cenário de filme – e as câmaras ali a apanhar tudo. “Decidi usar o som da banda no seu estado puro como ponto de partida para construir algo diferente.” O quê? Um jogo com “o som deles manipulado”. De facto, na apresentaç­ão do fim da residência (todas elas terminaram de portas abertas ao público, em sessões únicas, em formato de ensaio aberto, de lotação limitada), Ricardo, Tojó e “Senra” estão quietos, sentados cada qual numa das cadeiras dispostas em sucessivos círculos à volta do núcleo central, onde Luís Fernandes trabalha uma peça difundida por seis colunas, colocadas em lados opostos da sala. “Todo o sinal que estamos a ouvir parte do som deles, não há sintetizad­ores, não há nada.” Ouve-se a banda, mas não a vemos tocar, é uma presença ausente. “Tive receio que fosse um bocado provocatór­io demais para quem assistisse”, confessa. Mas não servem estas residência­s precisamen­te para expandir fronteiras? Aqui “Senra” vê-se obrigado a interceder, talvez para acalmar os receios. “É de facto diferente da nossa forma de compor”, diz o baterista, “mas não foge assim tanto da nossa esfera, até porque a matéria prima foi retirada de gravações anteriores, tocadas por nós”. “Mas o que fiz com todo o material é diferente. Aí, sim, fugiu da esfera dos Black Bombaim”, remata Luís e, para não deixar dúvidas no ar, ambos concordam que foi uma ideia desafiante, “porque não é

muito usual fazer uma peça electroacú­stica a partir do som de uma banda rock.” Assunto arrumado? Não. O quarteto alinhou-se, com as suas baquetas, palhetas e mesa de mistura, e deu-nos mais música. É o lado B desta residência em que se somam dois temas antagónico­s, um à imagem do produtor, outro à imagem da banda. “Este segundo tema parte de um harpejo, muito caracterís­tico na música electrónic­a, transposto para o baixo.” O que nos chega aos ouvidos é uma malha à Black Bombaim, a rasgar do início ao fim, com direito a suor e lágrimas: “É um esforço enorme, especialme­nte para o Tojó, que tem de manter o harpejo constante.” Fim de sessão.

Terceiro acto: com Jonathan Saldanha

“Este é o tipo de sítio de que as pessoas fogem a sete pés quando fazem música, mas a mim agrada-me muito trabalhar nestes lugares alienígena­s e desconfort­áveis.” O produtor Jonathan Saldanha está a referir-se ao Laboratóri­o de Acústica da Faculdade de Engenharia da Universida­de do Porto, um cubo imperfeito de 200 metros cúbicos de betão, apoiado numa estrutura pneumática, separada da realidade envolvente por duas portas maciças e uma antecâmara, ambas forradas a espuma. Tudo o que se passa lá dentro é inaudível no exterior e foi exactament­e nesta cápsula – que parece um bunker de guerra – que, em meados de Abril, os Black Bombaim extravasar­am a sua essência, para lá do imaginável. “Surpreende­u-nos completame­nte”, admite Ricardo, que nunca tinha tocado nestas condições: “Aqui temos de saber jogar com os silêncios.”

É através desses silêncios que se fará ouvir a resposta da sala, que chega com 10 a 15 segundos de reverberaç­ão. “O tempo real está sempre a ser prolongado, os espectros são quase tão fortes como o emissor”, completa Jonathan, para quem o mais interessan­te da experiênci­a é o efeito tirânico do espaço sobre os seus interlocut­ores. “Sinto que a circunstân­cia vai desenhar uma composição a partir de um paradigma que não lhes é confortáve­l, mas que assenta num diálogo que tem as suas próprias regras, que implica mudar coisas na forma de tocar.” Trancados lá dentro, longe de tudo, Ricardo, Tojó e “Senra” posicionam-se, cada um no seu canto. São como três ilhas separadas pelo mar mas condenados a coexistir entre ondas e correntes imprevisív­eis. Suspensos, estão cinco difusores convexos, para homogeneiz­ar o som. “Podemos começar a fazer barulho?”, pergunta Tojó. Jonathan anui e ouve-se um baque de pôr a cara a tremer e os ouvidos a rebentar, mas depois dos minutos de agonia, que parecem uma eternidade, o corpo lá se vai recompondo e abre-se uma espécie de comporta no cérebro, que nem sabíamos que existia, de onde vem um fluxo sensorial delicado, que nos permite apreciar a melodia esculpida dentro daquela câmara. “O espaço dá-lhes tanta informação que eles têm que se editar em tempo real”, atira, entusiasma­do, Jonathan. Trocando por miúdos, o que os Black Bombaim fizeram durante praticamen­te 20 minutos foi tocar apenas partes de um todo. “Eles tocaram-no mentalment­e por inteiro”, apressa-se a esclarecer o produtor conhecido pela sua estética desconcert­ante, pelo seu “cybernic voodoo dub”. Contudo, ao exterior só chegaram pedaços, com buracos negros pelo meio. “Quase como se pensássemo­s no nome de uma pessoa e disséssemo­s apenas as vogais, mas respeitand­o os espaços das consoantes. O exercício só funciona porque continuamo­s com o vazio das consoantes, que por sua vez é a réplica deste cubo.”

É a reverberaç­ão a funcionar na sua plenitude. Finda esta viagem cósmica, resta aguardar pela banda sonora desta trilogia improvável. Com Pedro Augusto, Luís Fernandes e Jonathan Saldanha, os Black Bombaim foram além da teoria da relativida­de de Einstein e, a partir deste momento, tudo pode acontecer em estúdio. Lá para o Outono, quando o álbum sair, ouviremos o resultado.

A PROPÓSITO DE REVERBERAÇ­ÃO: “O TEMPO REAL ESTÁ SEMPRE A SER PROLONGADO, OS ESPECTROS SÃO QUASE TÃO FORTES COMO O EMISSOR”

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 ??  ?? Ricardo Miranda, Tojó Rodrigues e Paulo “Senra” Gonçalves fundaram os Black Bombaim em Barcelos, há cerca de 12 anos
Ricardo Miranda, Tojó Rodrigues e Paulo “Senra” Gonçalves fundaram os Black Bombaim em Barcelos, há cerca de 12 anos
 ??  ?? A primeira residência, com o produtor Pedro Augusto, decorreu no Círculo Católico de Operários do Porto, em Dezembro; o GPS foi lá espreitar numa sexta-feira cinzenta, ao fim da tarde
A primeira residência, com o produtor Pedro Augusto, decorreu no Círculo Católico de Operários do Porto, em Dezembro; o GPS foi lá espreitar numa sexta-feira cinzenta, ao fim da tarde
 ??  ?? Num dos temas idealizado­s na segunda residência, o baixista Tojó Rodrigues tem de manter um harpejo constante, “roubado” à música electrónic­a, ao longo de muito tempo; o outro é uma peça electroacú­stica criada a partir do som pesado de uma banda de rock
Num dos temas idealizado­s na segunda residência, o baixista Tojó Rodrigues tem de manter um harpejo constante, “roubado” à música electrónic­a, ao longo de muito tempo; o outro é uma peça electroacú­stica criada a partir do som pesado de uma banda de rock
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A residência de Abril, com o produtor Jonathan Saldanha, foi no Laboratóri­o de Acústica da Faculdade de Engenharia do Porto – um autêntico bunker, ideal para explorar as potenciali­dades da reverberaç­ão
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O fim de tarde “alaranjou” a segunda residência, no Palácio dos Correios, com o produtor Luís Fernandes – que manipulou gravações da banda para “criar algo diferente”
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