Assistimos à criação do novo álbum dos Black Bombaim
Mais que fazer um novo álbum, o trio de Barcelos queria “expandir as fronteiras da sua sonoridade”. Resolveu fazê-lo chamando “cúmplices” para três residências de criação, que o GPS acompanhou
Colaborar com alguém é a melhor maneira de aprendermos.” Por isso, os Black Bombaim não ofereceram resistência quando chegou o momento de saírem do seu habitat e passarem o processo criativo para mãos alheias. Deixaram o comando a Pedro Augusto (Ghuna X, Live Low), Luís Fernandes (Peixe: Avião, Quest, La La La Ressonance, Harmonies) e Jonathan Saldanha (HHY Macumbas, Fujako), os produtores a quem coube a missão de expandir as fronteiras sonoras do trio barcelense. Entre a contenção, o delírio expressivo e a clivagem formal, houve nas três resi-
dências de antecipação do novo álbum dos Black Bombaim uma “plasticidade cósmica” que nos deixou a levitar. Agora eles vão para estúdio – e nós contamos-lhe o que levam na bagagem, preparada em três actos, sempre no Porto.
Primeiro acto: com Pedro Augusto
É Dezembro e a noite desce fria e repentina sobre o Porto. Às 18h de sexta-feira confunde-se o movimento dos carros, uns apressados a sair do trabalho para aterrarem no conforto de casa, outros a deslizarem até à baixa para a happy hour antes do jantar. Alheio a este pêndulo urbano está “um dos segredos mais bem guardados da cidade”, o sítio que Joaquim Durães (ou Fua, para os amigos), da produtora Lovers & Lollipops, sinalizou para a primeira de três residências de preparação do novo álbum dos Black Bombaim: o Círculo Católico de Operários do Porto. “Existe um diálogo tridimensional entre a banda, o espaço e o produtor”, uma equação que neste edifício centenário encontrou um registo minimalista, uma certa beleza decadente que se misturou nas repetições rítmicas e nos sintetizadores de Pedro Augusto. Na sala a meia-luz, com holofotes no chão a projectar sombras hitchcockianas nas paredes brancas – e havia, de facto, câmaras a deambular por lá, a recolher material para o documentário de Miguel Filgueiras (com argumento de Manuel Neto) que também sairá com o disco –, davam-se os últimos retoques na música. Entre fios, pedais e amplificadores serpenteantes – contornando algumas garrafas de água e de cerveja espalhadas pelo chão e pelos dois tapetes persas pousados na madeira rangedora – Pedro ia pedindo a Paulo “Senra” Gonçalves para pressionar o pedal da sua bateria, repetidas vezes, até o timbre entrar na mesa de mistura do produtor portuense e atingir a afinação pretendida. “O tema que estamos a desenvolver está assente na secção rítmica e na bateria”, começa por explicar Pedro Augusto. “A bateria foi ‘customizada’ para se tornar mais sóbria e compacta, criando um objecto mais homogéneo. Com isto quero dizer que não há uma grande distância nem uma grande dinâmica entre os sons que a compõem, estão todos no mesmo pantone.” A partir deste ponto, juntaram-se a guitarra de Ricardo Miranda e o baixo de Tojó, cada um seguindo isoladamente o seu rumo – entre riffs distorcidos e frases rítmicas contidas – mas compondo um todo sideral que, mesmo depois de se desvanecer, permanece ressonante nos ouvidos. “Eu tenho uma ideia perversa sobre isto”, atira o compositor, que além dos alter egos Ghuna X e Live Low tem uma série de produções para bandas sonoras de dança contemporânea, teatro e cinema. “O tema é um bloco que começa da mesma maneira que
“EXISTE UM DIÁLOGO TRIDIMENSIONAL ENTRE A BANDA, O ESPAÇO E O PRODUTOR”
acaba, mas o meio também é igual. Não há uma estrutura A-B, não há um refrão, não há nada” – e ao ouvir a descrição de Pedro apercebo-me da sensação de hipnose que eu própria senti a assistir, como que retida numa repetição sem fim.
“No fundo, é como se eles já estivessem a tocar há uma hora, e ainda continuassem uma hora depois, mas nós apenas tivéssemos acesso àqueles 15 minutos.” Um reflexo da vida real, conclui: “Quando nos cruzamos com uma pessoa, a nossa vida e a dela continuam por algum lado; ou quando ligamos a televisão ou o rádio (que no fundo estão sempre ligados). Nós só abrimos a luz e o som, eles estão sempre lá.”
Tojó intervém: “Estamos como um peixe fora de água, mas é bastante interessante, gostámos muito deste input.” Não raras vezes, o baixista dos Black Bombaim teve de contrariar o impulso de “dar tudo, de não respirar” para valorizar o silêncio e deixar a música fluir sem grandes sobressaltos. “É estranho, mas…” A intensidade sente-se a cada nota, não como um furacão – “Estamos a tocar muito mais baixo do que usualmente”, admitem –, mas como a energia frenética aprisionada num átomo: “É um exercício de contenção mental enorme! Mas o resultado é transcendente de uma forma que nunca tínhamos encontrado na nossa música.”
Segundo acto: com Luís Fernandes
O ano virou, os votos de paz e prosperidade renovaram-se para 2018 e depois veio o dia 2 – e enfim, estava tudo na mesma. Já com os pozinhos da euforia colectiva do Fim de Ano pousados no chão – e bem repisados – recebo uma chamada. “Afinal a segunda residência vai ser só em Fevereiro”, avisa o Fua. A indefinição do local assim o exigia: “Não está a ser tão fácil como prevíamos.” A solução surgiu já o Carnaval tinha dado lugar à quarta-feira de cinzas: daí por uma semana os Black Bombaim estariam a ocupar o sétimo piso do Palácio dos Correios, com Luís Fernandes ao leme.
Da primeira para a segunda residência, os dias tinham crescido, o sol já se punha perto das 19h30, detalhe que não pode ser esquecido se recuarmos ao momento em que o elevador nos fez subir até ao céu e abriu as portas para aquele open space desabitado e cheio de imperfeições: vidraças empoeiradas do chão até ao tecto, em tijolo bruto, marcado por buracos a expor estruturas feridas; paredes de cimento, brancas aqui, em cru acolá, e, para lá das vidraças, um terraço de varanda ferrugenta a beijar a torre da Câmara Municipal, com os seus 70 metros de altura e o majestoso relógio de carrilhão. Ficámos olhos nos olhos com aquela imponência, o céu laranja a fazer cair o sol sobre nós e Luís Fernandes a construir uma “metamúsica” dos Black Bombaim que encheu por completo aquele cenário de filme – e as câmaras ali a apanhar tudo. “Decidi usar o som da banda no seu estado puro como ponto de partida para construir algo diferente.” O quê? Um jogo com “o som deles manipulado”. De facto, na apresentação do fim da residência (todas elas terminaram de portas abertas ao público, em sessões únicas, em formato de ensaio aberto, de lotação limitada), Ricardo, Tojó e “Senra” estão quietos, sentados cada qual numa das cadeiras dispostas em sucessivos círculos à volta do núcleo central, onde Luís Fernandes trabalha uma peça difundida por seis colunas, colocadas em lados opostos da sala. “Todo o sinal que estamos a ouvir parte do som deles, não há sintetizadores, não há nada.” Ouve-se a banda, mas não a vemos tocar, é uma presença ausente. “Tive receio que fosse um bocado provocatório demais para quem assistisse”, confessa. Mas não servem estas residências precisamente para expandir fronteiras? Aqui “Senra” vê-se obrigado a interceder, talvez para acalmar os receios. “É de facto diferente da nossa forma de compor”, diz o baterista, “mas não foge assim tanto da nossa esfera, até porque a matéria prima foi retirada de gravações anteriores, tocadas por nós”. “Mas o que fiz com todo o material é diferente. Aí, sim, fugiu da esfera dos Black Bombaim”, remata Luís e, para não deixar dúvidas no ar, ambos concordam que foi uma ideia desafiante, “porque não é
muito usual fazer uma peça electroacústica a partir do som de uma banda rock.” Assunto arrumado? Não. O quarteto alinhou-se, com as suas baquetas, palhetas e mesa de mistura, e deu-nos mais música. É o lado B desta residência em que se somam dois temas antagónicos, um à imagem do produtor, outro à imagem da banda. “Este segundo tema parte de um harpejo, muito característico na música electrónica, transposto para o baixo.” O que nos chega aos ouvidos é uma malha à Black Bombaim, a rasgar do início ao fim, com direito a suor e lágrimas: “É um esforço enorme, especialmente para o Tojó, que tem de manter o harpejo constante.” Fim de sessão.
Terceiro acto: com Jonathan Saldanha
“Este é o tipo de sítio de que as pessoas fogem a sete pés quando fazem música, mas a mim agrada-me muito trabalhar nestes lugares alienígenas e desconfortáveis.” O produtor Jonathan Saldanha está a referir-se ao Laboratório de Acústica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, um cubo imperfeito de 200 metros cúbicos de betão, apoiado numa estrutura pneumática, separada da realidade envolvente por duas portas maciças e uma antecâmara, ambas forradas a espuma. Tudo o que se passa lá dentro é inaudível no exterior e foi exactamente nesta cápsula – que parece um bunker de guerra – que, em meados de Abril, os Black Bombaim extravasaram a sua essência, para lá do imaginável. “Surpreendeu-nos completamente”, admite Ricardo, que nunca tinha tocado nestas condições: “Aqui temos de saber jogar com os silêncios.”
É através desses silêncios que se fará ouvir a resposta da sala, que chega com 10 a 15 segundos de reverberação. “O tempo real está sempre a ser prolongado, os espectros são quase tão fortes como o emissor”, completa Jonathan, para quem o mais interessante da experiência é o efeito tirânico do espaço sobre os seus interlocutores. “Sinto que a circunstância vai desenhar uma composição a partir de um paradigma que não lhes é confortável, mas que assenta num diálogo que tem as suas próprias regras, que implica mudar coisas na forma de tocar.” Trancados lá dentro, longe de tudo, Ricardo, Tojó e “Senra” posicionam-se, cada um no seu canto. São como três ilhas separadas pelo mar mas condenados a coexistir entre ondas e correntes imprevisíveis. Suspensos, estão cinco difusores convexos, para homogeneizar o som. “Podemos começar a fazer barulho?”, pergunta Tojó. Jonathan anui e ouve-se um baque de pôr a cara a tremer e os ouvidos a rebentar, mas depois dos minutos de agonia, que parecem uma eternidade, o corpo lá se vai recompondo e abre-se uma espécie de comporta no cérebro, que nem sabíamos que existia, de onde vem um fluxo sensorial delicado, que nos permite apreciar a melodia esculpida dentro daquela câmara. “O espaço dá-lhes tanta informação que eles têm que se editar em tempo real”, atira, entusiasmado, Jonathan. Trocando por miúdos, o que os Black Bombaim fizeram durante praticamente 20 minutos foi tocar apenas partes de um todo. “Eles tocaram-no mentalmente por inteiro”, apressa-se a esclarecer o produtor conhecido pela sua estética desconcertante, pelo seu “cybernic voodoo dub”. Contudo, ao exterior só chegaram pedaços, com buracos negros pelo meio. “Quase como se pensássemos no nome de uma pessoa e disséssemos apenas as vogais, mas respeitando os espaços das consoantes. O exercício só funciona porque continuamos com o vazio das consoantes, que por sua vez é a réplica deste cubo.”
É a reverberação a funcionar na sua plenitude. Finda esta viagem cósmica, resta aguardar pela banda sonora desta trilogia improvável. Com Pedro Augusto, Luís Fernandes e Jonathan Saldanha, os Black Bombaim foram além da teoria da relatividade de Einstein e, a partir deste momento, tudo pode acontecer em estúdio. Lá para o Outono, quando o álbum sair, ouviremos o resultado.
A PROPÓSITO DE REVERBERAÇÃO: “O TEMPO REAL ESTÁ SEMPRE A SER PROLONGADO, OS ESPECTROS SÃO QUASE TÃO FORTES COMO O EMISSOR”