Bastonária dos Enfermeiros incomoda muita gente
“Há 15 dias esteve cá uma equipa de peritos que disse que os profissionais de Saúde, sobretudo enfermeiros, estavam desmotivados”
Tem 42 anos, uma carreira de 20 e muitas inimizades por dizer o que pensa. Em Janeiro de 2016, assumiu o cargo de bastonária da Ordem dos Enfermeiros e quer arrumar a casa. Não ambiciona chegar a ministra da Saúde – diz que incomoda muita gente.
Da Graça, bairro histórico onde mora, Ana Rita Cavaco segue para a Avenida Gago Coutinho, onde fica a Ordem dos Enfermeiros. A polémica bastonária, cáustica por vezes, bem-humorada outras tantas, recebe a SÁBADO na sede, senta-se numa modesta cadeira e dispara em várias direcções: as carências da classe; as ameaças de que é alvo; os inimigos; os processos disciplinares, etc. Nunca vacila, enquanto o cão labrador (amigo fiel, que a companha para todo o lado) fareja a relva da moradia dos anos 50. O trabalho é para continuar, assegura.
Aproxima-se o V Congresso dos Enfermeiros, que decorrerá em Lisboa, nos próximos dias 27 a 29. Quais são os pontos-chave?
Vamos falar do futuro dos cuidados, em que medida é que a felicidade, a inteligência emocional e a motivação interferem no trabalho. Teremos um painel para abordar as várias dimensões da espiritualidade: questões religiosas, estilos de vida, convicções. E também haverá
workshops sobre como comunicar más notícias, burnout e exaustão. Há 15 dias esteve cá uma equipa de peritos da OMS e do Observatório Europeu das Políticas Públicas de Saúum de que disse que os profissionais de saúde, sobretudo enfermeiros, estavam extremamente desmotivados e que a felicidade interferia nos cuidados que prestavam. Contudo, faltam 30 mil enfermeiros no Sistema Nacional de Saúde (SNS).
A Ordem fez 20 anos precisamente no dia do seu 42º aniversário (sábado, 21 de Abril). O que acha desta coincidência?
O meu pai diz que não existem coincidências, são a forma de Deus se manifestar. Desde que andávamos a estudar, muitos dos enfermeiros da Federação Nacional de Estudantes de Enfermagem diziam-me que iria haver uma Ordem e que eu seria a bastonária.
Outra coincidência: tem 20 anos de carreira. Quais foram as situações mais dramáticas que enfrentou na enfermagem?
Foram muitas [como] a falta de material e de enfermeiros. Porque eu coordenava a equipa de cuidados continuados do Centro de Saúde de Alvalade, deparei-me com situações, enfim… às vezes pensava se aquilo estava realmente a acontecer. Lembro-me de uma senhora idosa, viúva de um jornalista, que teve alta hospitalar com uma ferida, buraco que ia do pescoço ao fim das costas. Cabiam lá os meus dois braços. Tinha a ver com o facto de estar imobilizada sempre no mesmo sítio e abriu uma escara gigante. Quando destapei aquela ferida, a única coisa que pude fazer foi limpá-la: lavá-la com soro e tapá-la com compressas e adesivo. A senhora tinha uma cama articulada, montada na sala. Nunca me esqueci. Liguei para o hospital, não fui nada simpática e disse que faria queixa até em termos judiciais. Ela foi re-internada logo nesse dia. Íamos ao hospital acompanhar a situação, semanalmente, para preparar a alta para quando ela pudesse voltar para casa. Só teve alta quando a ferida ficou em condições para ser cuidada em casa.
Quando escolheu enfermagem tinha noção destas situações?
Não. A minha avó materna não queria que fosse enfermeira, porque ela tinha mais noção das dificuldades do que eu. Do ponto de vista social e cultural era ainda uma profissão muito desvalorizada. Estudei num colégio diocesano, o Externato Frei Luís de Sousa, em Almada, dos 3 aos 18 anos. Nessa altura, a minha avó e a minha professora de Inglês e Português fizeram a minha candidatura
a Oxford, ao curso de Medicina. A minha avó queria muito que eu fosse médica. Entrei efectivamente em Medicina, em Oxford, com quase 19 valores. Até hoje, guardo os papéis da admissão dessa candidatura, a que optei por não dar seguimento. Não queria ir para Inglaterra e deixar o namorado.
Como é que a sua avó, que a criou, reagiu?
Quando lhe disse que não ia estudar para Inglaterra e tinha ingressado na Escola Superior de Enfermagem Calouste Gulbenkian, praticamente deixou de me falar. Durante seis meses dizia-me “bom dia, boa tarde”. Depois ficou orgulhosa de mim. Na fita de fim de curso escreveu que o grande choque entre nós é que ela sabia que eu tinha asas para voar e tinha que me permitir; mas, ao mesmo tempo, para ela eu continuava a ter 5 anos. Fui criada pela minha avó, porque a minha mãe adoeceu quando nasci. Saí de casa depois de terminar o curso, aos 21 anos, para viver sozinha. Depois cuidei dela.
De que forma?
No fim de 2013 a minha avó ficou mais dependente; eu e o meu tio optámos por deixá-la em casa e ter uma pessoa a tratar dela. Tudo o que precisasse de enfermagem era eu que ajudava. Nesta fase de dependência ela tinha uma ferida na zona da anca, do lado direito, porque só queria dormir para aquele lado. Já lhe tinha explicado que tinha de se virar, mas não podia virá-la à força. Era muito teimosa. Faleceu em 2014. A minha família diz que herdei o feitio dela.
Com que idade descobriu a vocação para enfermeira?
Esta coisa do cuidar era natural em mim. Tenho memória de que aos 7 anos punha os bonecos todos organizados e discursava sobre o que me ocorria. A minha avó perguntava se estava a treinar para fazer discursos para primeira-ministra.
Tenciona ser ministra da Saúde?
Acho difícil. Porque caso exercesse
“A minha avó queria que fosse médica. Entrei em Oxford mas não dei seguimento [à candidatura]” “Estaria lá uma semana. Demitiam-me, havia aí um tumulto [se fosse ministra da Saúde]”
o cargo da tutela da forma como exerço o de bastonária provavelmente estaria lá uma semana. Demitiam-me, havia aí um tumulto. Há coisas que eu não consigo não dizer, não denunciar. Para ser politicamente correcta é preciso dourar as coisas e “dizer não é bem assim”. Não tenho feitio para isso. Sou muito assertiva.
Desde que assumiu o cargo de bastonária, em Janeiro de 2016, sente muitas pressões?
Ligam-me amigos que estão na política e no jornalismo e contam-me coisas que lhes dizem: que eu devia estar calada porque vão arranjar forma de retaliar, por exemplo denegrindo-me na imprensa. Costumo dizer que quando me levanto de manhã ponho os dois pés no chão, o direito na quinta de alguém e o esquerdo também. É terrível. Há imensos interesses, sobretudo na Saúde. É muito difícil fazer aquilo que estamos a fazer na Ordem sem incomodar pessoas. Incomodamos muita gente.
Recebe ameaças?
Recebo por email, por Messenger: “Olha bruxa, vai-te acontecer não sei o quê”; “és uma esta, és uma aquela”; “tem cuidado”. Hão-de ser perfis falsos, ninguém dá a cara. Temos duas opções: ou escolhemos fazer as nossas acções de acordo com o medo, ou fazemos a nossa vida tranquilamente porque a maioria dessas coisas tem como objectivo tentar coagir e intimidar.
Como é a relação com a tutela?
Não gosto nem desgosto. Se concordo com as decisões que estão a ser tomadas, digo. E já o disse várias vezes. Se não concordo também tenho de dizer. No início, o Sr. ministro Adalberto Campos Fernandes ficava aborrecido porque fazíamos denúncias. Pedia que lhe disséssemos primeiro. E fazíamos isso, o problema é que depois nada acontecia. Tínhamos audiências, falávamos por telefone, emails. Muitas vezes sentia que reportava coisas e não havia capacidade para as resolver. Presumo que não fosse falta de vontade. Isso obrigava-nos a denunciar a situação publicamente. A pressão pública e política ajuda a resolver a questão, veja-se o caso da Pediatria de São João.
Sabia das péssimas condições daquele serviço?
Sabíamos. Tanto que tínhamos feito um relatório das visitas – onde estava incluída a Pediatria de São João – e entregámo-lo ao ministro e ao Conselho de Administração do São João. Está escrito. Foi um ofício que saiu daqui no ano passado, antes do Verão. Mas as pessoas deviam ter tido a coragem de dizer o que se estava a passar.
Depois da greve nacional a 22 e 23 de Março, quais são os maiores problemas da classe?
Ontem [18 de Abril] recebi aqui o dr. Rui Rio. Disse-lhe que trabalhava há quase 21 anos; que era especialista; que o meu ordenado-base são 1.256 euros ilíquidos (cerca de 1.000 euros líquidos); que um enfermeiro recém-licenciado recebia 1.201 euros de base; que estava congelada nas progressões desde 2005 e que desde 2009 tinham acabado com a carreira. Ele não queria acreditar. É uma profissão de risco, de desgaste rápido, com uma componente cívica e emocional muito forte. Não há progressões, não há categorias. Acho que as pessoas não têm noção disto. Os enfermeiros são os que estão pior. Porque é que há profissionais de saúde que ganham como base 1.600 euros ilíquidos e são tão licenciados como nós (farmacêuticos, por exemplo)? Tem a ver com a questão sociológica de que falávamos há pouco. Por causa daquilo que fazemos todos os dias, fomos sempre os que menos nos queixámos. Só que já não dá.
Já sofreu burnout, como tantos outros enfermeiros?
Não. Os momentos mais difíceis foram nos processos disciplinares que tive, por querer fazer as coisas correctamente. Tive três: dois porque denunciei o mau funcionamento da empresa gestora da Saúde 24, onde era supervisora; o terceiro foi da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, com o ex-presidente Luís Cunha Ribeiro. Denunciei no conselho nacional do PSD que ele vivia numa casa paga pela Octapharma, sendo presidente da ARS, o que no meu entender era incompatível. Logo a seguir recebi um processo disciplinar sobre as semanas em que estive a fazer um estudo sobre vacinação, para o qual estava autorizada pela directora. Defendi-me, apresentei as provas e o resultado foi o mesmo: suspensão de 30 dias. Mas não fez diferença. Acredito que se temos razão ela aparece sempre.