Percursos pelo Alentejo gastronómico
Alegrem-se, estômagos. E, já agora, alarguem-se. Da Costa ao Interior, do Alto ao Baixo Alentejo, o banquete que se segue é da inteira responsabilidade dos intervenientes: 46 restaurantes. Por estas paragens, o que é difícil, mesmo quase impossível, é com
– Porque é que está a encher tão devagar? – É da bomba. Tem pressa? – Alguma, tenho de estar em Avis daqui a 15 minutos. E depois vou para Mora. – O que anda a fazer? – Uma reportagem sobre restaurantes no Alentejo. – Em todo o Alentejo? – Em todo o Alentejo. – Que empreitada, amigo. O Alentejo é um mundo.
OAlentejo é um mundo.” A afirmação não saiu da boca de um empresário local, nem da de um profissional de turismo, muito menos da de um
marketeer regionalista. Não. Foi de um funcionário de um posto de combustível no Cano, pequena aldeia dos arredores de Sousel, pequena vila dos arredores de Estremoz — são 20 quilómetros, o que no Alentejo, sabemos, equivale a um “sempre em frente, é já ali”. A frase não soou a hipérbole de índole nacional-alentejanista ou de descarada promoção local. Pelo contrário, soou ao simples constatar de um facto, como se todos os globos e mapas-múndi fossem, de facto, representações do Alentejo, de todo o Alentejo, e nada mais que o Alentejo, so
help me God. Tivessem caído a seguir umas pingas de chuva e o homem teria, indubitavelmente, terminado com um “e vá devagar que já chove”. Fá-lo-ia, decerto, com a mesmíssima naturalidade e savoir-dire, enquanto atestava, gota a gota, o depósito de uma viatura que, até essa altura, acumulava pouco mais de um milhar de quilómetros na região, de restaurante em restaurante, de Melides a Odemira, de Beja a Portalegre. Mas não choveu. E a frase ressoou. “O Alentejo é um mundo.”
O mundo, diz-se, tem quatro cantos e cinco continentes. O Alentejo tem cante, tem encanto, mas também pode ter quatro cantos, assim se queira: Alcácer do Sal, São Teotónio, Mértola e Castelo de Vide, mais vila menos aldeia. Continentes tem vários, mas um indivíduo abastece-se bem melhor no comércio local. Por exemplo, na salsicharia Canense, da Dona Octávia, ao virar do posto. A Dona Octávia que ainda vai colher as ervas com que tempera as carnes; que ainda lava as tripas à mão e lhes tira o cheiro com laranjas e limões do seu quintal; que começou a trabalhar criança e que hoje, quase aos 80, mantém uma vivacidade tão invejável como a qualidade dos seus enchidos. Dona Octávia só há uma, mas, felizmente, o Alentejo tem algumas como ela.
O Alentejo é um mundo, garante-nos o sábio gasolineiro. A vista concorda: a Costa não tem nada a ver com o Interior, nem o Alto a ver com o Baixo. Há praia, serra, planície, vales, barragens, há de tudo – até petróleo, querem fazer-nos crer. Também há restaurantes. E talvez sejam os restaurantes alentejanos a relembrar-nos que, por diferente que seja a paisagem, estamos no Alentejo. Porque em todo o lado o difícil é comer mal — basta rasgar uma fatia de pão alentejano com os dentes para reganhar esperança na humanidade, mesmo nos dias mais sombrios. Mas melhor do que a impossibilidade de comer mal, é a elevada probabilidade de comer mesmo bem. Sobretudo num destes restaurantes.