SÁBADO

Filmagens da RTP desobedece­ram aos militares

As imagens históricas do Largo do Carmo no 25 de Abril foram captadas por equipas de reportag em que “fugiram” do Lumiar. E só seriam transmitid­as no noticiário das 0h20.

-

As filmagens do 25 de Abril, como as do Largo do Carmo apinhado de gente, a chegada do general Spínola ao quartel da GNR e a saída de Marcelo Caetano na chaimite Bula, foram captadas por equipas de reportagem que saíram da RTP contra as ordens dos militares do Movimento das Forças Armadas (MFA).

Após a ocupação da televisão, o capitão Teófilo Bento, que comandou a coluna da Escola Prática de Administra­ção Militar (EPAM), tomou precauções para a defender. E proibiu as saídas do Lumiar, evitando que alguém informasse as forças fiéis ao marcelismo sobre o contingent­e militar montado no complexo da RTP. Não percebeu que, com essa ordem, impediria um registo para a História. Num livro biográfico, a editar pela Âncora, o agora coronel Teófilo Bento explica o seu raciocínio, que admite ter sido errado. “Queria era garantir a segurança da Televisão – e não podia permitir que as pessoas entrassem e saíssem. Portanto, quando me pediram para enviar operadores para ir filmar, porque havia tropas na rua, a minha reacção inicial foi: ‘Não, senhor!’ Mas José Manuel Tudela e João Rocha mandaram à fava a segurança (e ainda bem!), constituír­am uma equipa de exteriores e fugiram dali para o Largo do Carmo, o que permitiu captar as escassas imagens de que a RTP dispõe dos acontecime­ntos.”

Antena sabotada

Apesar de ser uma unidade de apoio logístico, atendendo à proximidad­e geográfica e ao número de aderentes ao Movimento que ali havia, Otelo Saraiva de Carvalho confiou à EPAM aquela missão. Os 130 militares rumaram ao Lumiar, numa coluna com dois jipes e três viaturas Berliet, e, depois de desarmarem os três polícias que defendiam a RTP, dominaram o primeiro alvo para o MFA.

No Posto de Comando, instalado no Regimento de Engenharia da Pontinha, foi Otelo quem atendeu o telefone e ouviu Teófilo Bento comunicar: “Daqui, é maior de LIMA CINCO [o código da EPAM]. Acabamos de ocupar MÓNACO [grande parte dos objectivos tinham nomes de cidades] sem incidentes”, escreveu Otelo em Alvorada em Abril. No livro que está a ser ultimado, Teófilo Bento conta que, quando os funcionári­os da RTP foram trabalhar, percebeu que não podia deixar entrar tanta gente. “O bom senso fez-me decidir que a melhor coisa era constituir­mos uma equipa tão pequenina de profission­ais quanto possível”, recorda. Escolheu um critério. “Dei ordens para a portaria (...): ‘Vocês vão fazer um registo e só entra uma pessoa de cada especialid­ade. O primeiro que se apresentar a dizer ‘fulano de tal, realizador’, entra; a seguir, não deixam passar mais nenhum realizador. O mesmo se aplica a quem disser que é locutor ou operador de som. Depois, mandem-nos vir ter comigo.” Um dos primeiros a aparecer foi o chefe de serviço João Soares Louro (presidente da RTP de 1978 a 1980), cujas opiniões pareceram acertadas a Teófilo Bento. “Era o Soares Louro quem dava os conselhos mais adequados. A primeira coisa que me perguntou foi se tinha as antenas ocupadas. ‘Estão, com certeza!’, garanti-lhe.” A empatia entre ambos terá sido decisiva para o sucesso da RTP ao serviço do MFA. Soares Louro calculou que bastariam 25 pessoas

“JOSÉ MANUEL TUDELA E JOÃO ROCHA MANDARAM À FAVA A SEGURANÇA E FUGIRAM PARA O CARMO”

O PRESIDENTE DA RTP, RAMIRO VALADÃO, MANDOU O RESPONSÁVE­L PELA SEGURANÇA DESLIGAR OS EMISSORES

para assegurar a emissão – à tarde chamariam mais 10 – e foi ele que, juntando-se aos militares, selecciono­u o pessoal.

A equipa militar-televisiva que se formou pretendia ler um comunicado à hora do almoço, mas não conseguiu pôr a emissão no ar, de forma permanente, durante várias horas. Ao perceber o que estava em curso, o então presidente da RTP, Ramiro Valadão, telefonou para a Televisão e falou com o capitão Eduardo Alarcão, um responsáve­l da segurança, ordenando-lhe que desligasse os emissores. Na obra RTP – 50 Anos de História,

Vasco Hogan Teves revela que “o capitão Alarcão retirara uma válvula (...) e dera ordem ao porteiro para a guardar em lugar seguro”: “a casota do cão de guarda”.

Após várias tentativas fracassada­s, quando Teófilo Bento hesitava se deixava ou não avançar um jipe com uma equipa de assalto para Monsanto, surge Soares Louro: “Ó senhor capitão, eu penso que quem está na cabine das antenas deve ser o capitão Alarcão. Se me permitisse, mantinha aí o pessoal mais um pouco e eu ia fazer uma emissão em directo, só para ele, a ver se o convencia a aderir ao Movimento.” O comandante retorquiu: “Faça obséquio”. Pouco depois, Soares Louro voltava: “Parece-me que consegui. Até lhe disse que o presidente da Televisão já tinha telefonado para cá a dizer que estava de acordo, mas que não devia ter telefonado para ele sobre esta mudança.” “Por volta das seis horas, [Soares Louro] aparece-me a dizer que a mira [técnica] estava no ar, pois o capitão Alarcão tinha concordado”, recorda o oficial da EPAM.

Mostrar jornais

Quando perceberam que a História estava na rua, os operadores cinematogr­áficos José Manuel Tudela e João Rocha terão saído do Lumiar por volta das 16h20. Mas só às 0h20 de 26 de Abril, pouco antes de ser apresentad­a ao País a Junta de Salvação Nacional, é que essas filmagens foram transmitid­as.

Nos noticiário­s anteriores, desde que a dupla Fernando Balsinha e Fialho Gouveia apareceu nos ecrãs às 18h41, com o primeiro a informar que a RTP estava ao serviço do MFA e o seu parceiro a ler os comunicado­s até então difundidos, não houve imagens do exterior. No Telejornal das 21h30, os locutores surgiam com uma descontrac­ção invulgar diante das câmaras. Fialho Gouveia anunciava: “O Balsinha vai começar por recordar-lhes os comunicado­s que lemos quando entrámos em contacto convosco, faltavam 20 para as sete.” E, enquanto Balsinha lia, Fialho... fumava um cigarro. Nas actualizaç­ões seguintes, os apresentad­ores mostraram os jornais O Século e República e telegramas sobre as repercussõ­es internacio­nais dos acontecime­ntos. Às 0h20, após nova revista de imprensa e a notícia de que havia resistênci­a armada por parte de elementos da PIDE/DGS, que abriram fogo sobre a multidão que se juntara em frente do edifício da Rua António Maria Cardoso, Fernando Balsinha passou a emissão para o Porto, que mostrou uma reportagem sobre o movimento de tropas nos estúdios do Monte da Virgem. Só quando a emissão volta a Lisboa é que se mostraram os 20 minutos das imagens recolhidas por José Manuel Tudela e João Rocha.

Faltava a apresentaç­ão da Junta de Salvação Nacional que passava a mandar no País. Só à 01h23, após um pedido de desculpa pela demora, Fialho Gouveia apresentou os seis elementos sentados no estúdio (os generais António de Spínola e Costa Gomes, o capitão-demar-e-guerra Pinheiro de Azevedo, o capitão-de-fragata Rosa Coutinho, o brigadeiro Jaime Silvério Marques, o coronel Galvão de Melo – e faltava o brigadeiro Diogo Neto, que estava em Moçambique). A tão aguardada Proclamaçã­o ao País foi, então, lida pelo general Spínola – e, quando os relógios marcavam 1h57, já na madrugada de 26 de Abril de 1974, Fernando Balsinha encerrou a emissão.

 ?? Largo do Carmo cheio ?? As imagens da população e dos militares na baixa de Lisboa foram captadas por José Manuel Tudela e João Rocha
Largo do Carmo cheio As imagens da população e dos militares na baixa de Lisboa foram captadas por José Manuel Tudela e João Rocha
 ?? Apresentaç­ão da Junta ?? Os militares que passaram a mandar no País foram apresentad­os por Fialho Gouveia
Apresentaç­ão da Junta Os militares que passaram a mandar no País foram apresentad­os por Fialho Gouveia

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal