Filme conta a vinda de Eusébio para Portugal
A iminência da Guerra Colonial foi ofuscada pela batalha por Eusébio entre Sporting e Benfica. O jogador viajou de Moçambique para Portugal com um nome falso – e de mulher. O realizador António Pinhão Botelho pegou no guião escrito pela mãe, Leonor Pinhão
Se não tivesse sido jogador de futebol era a dançar na Broadway que se via. O miúdo de Mafalala, bairro de Lourenço Marques (actual Maputo), chegou a Portugal com o ritmo do jazz no corpo. Disputado pelo Benfica e pelo Sporting, Eusébio viu-se no meio de interesses políticos. A partir de 1961 (ano em que começou a Guerra Colonial), já com a camisola do Benfica vestida, ganhou 11 campeonatos, cinco Taças de Portugal e uma Taça dos Campeões Europeus e uma Bola de Ouro em 1965, um ano antes de alcançar o terceiro lugar no Campeonato do Mundo disputado em Inglaterra. Por duas vezes foi o melhor marcador da Europa, numa carreira de 22 anos que começou no Sporting de Lourenço Marques (onde era pago com sanduíches e copos de leite). Apelidaram-no de Rei e de Pantera Negra, mas foi como Ruth Massolo que chegou a Lisboa, escondido dos dirigentes leoninos. É este episódio que conta Ruth, filme que se estreia a 3 de Maio, com realização de António Pinhão Botelho e guião de quem o conhece melhor, a mãe, a jornalista Leonor Pinhão.
Como surgiu a ideia para o filme?
Na realidade é um filme de guionista, pedido pelo Paulo Branco a uma guionista, que neste caso (e com sorte) é a minha mãe – que, além de ser uma jornalista desportista, fez um grande trabalho de investigação. Falou imensas vezes com o Eusébio, conhece o Hilário...
Como foi trabalhar com a mãe?
Entrei no projecto já com um primeiro guião de 240 páginas que teve, mais tarde, de ser reduzido para 120. É um trabalho inacreditável de época e de personagens que tivemos de aglomerar num ano e meio da vida do Eusébio. Trabalhar com a minha mãe é muito fácil, é como se estivéssemos a ter uma conversa na noite de Natal. Gostava que o filme fosse menos faccioso [ri], e acho que o é, apesar de tudo, então muito do meu trabalho foi dizer “ó mãe, vou tirar esta boca ao Sporting daqui. O Benfica ganha no fim, por isso escusamos de estar a bater no ceguinho”. Tive de deixar. Tal como “um feliz Natal, senhor doutor”. São bocas, mas são bocas de uma família benfiquista um bocado facciosa. [ri]
Em casa sempre falaram muito sobre o Eusébio?
O Eusébio foi um símbolo, uma pessoa que ultrapassou o Benfica e que ultrapassou o País. É muito bonito ver pessoas do Sporting, do Porto e de outros clubes a terem uma grande admiração e paixão por ele.
Fazer um filme sobre o Eusébio foi uma grande pressão?
Tive um ataque de pânico. Estou a “brincar” com um ídolo, com uma pessoa que muita gente adora, e fiquei um bocado nervoso porque, por muito bom que o filme seja, vai sempre ficar aquém da figura, do homem, da lenda, do símbolo, do deus.
Chegou a conhecê-lo?
A minha mãe apresentou-mo tinha eu uns oito anos, numa gala de A Bola. Ele apertou-me a mão e disse: “O teu avô [Carlos Pinhão, jornalista d’A Bola] era um grande homem.” Um deus estar a dizer que o meu avô era um bom homem...
Voltaram a estar juntos?
Muitas vezes. Fui a Amesterdão ver o Portugal-Turquia para o Euro 2000 e estava lá. E havia uma associação no Benfica, nos anos 90, de ex-jogadores de futsal e o meu pai [o realizador João Botelho] foi convidado uma vez ou outra. Eu e o meu irmão íamos vê-lo e o Eusébio estava lá.
Em criança, Eusébio fazia bolas com meias enroladas em papel de jornal. Era do Benfica como o pai, Laurindo da Silva Ferreira, um ferroviário do Lubango que morreu novo. Cresceu com a mãe, Elisa Anissabeni, e com os três irmãos e começou a jogar n’Os Brasileiros, treinado por Xico Maneta, um adepto do Belenenses. Assinou pelo Sporting de Lourenço Marques a troco de uma caneta de tinta permanente e lanche diário. Quando o Ferroviário de Araraquara foi jogar a Moçambique, o técnico da equipa brasileira, Bauer, avisou Béla Guttmann de que havia um miúdo que tinha de contratar. Foi assim, sem vídeos de YouTube a mostrar os melhores momentos do jogador, que Eusébio atraiu os rivais de Lisboa.
E encontrar o Eusébio perfeito?
Foi muito difícil. O filme tem 80 actores e o único para o qual fizemos
casting foi o Eusébio, os restantes foram por convite. O Igor Regalla é carismático e parece mesmo um Eusébio sonhador. É muito difícil tocar no homem, na figura, então fizemos um filme tentando pôr o Eusébio, que é a personagem principal, como secundário. Tudo o que acontece é por causa de outras personagens, ele está só a ser guiado. Ele era um miúdo e só queria jogar à bola: foi enganado pelo Benfica, foi enganado pelo Sporting... O Hilário falou do episódio da mala do dinheiro e de tê-lo levado lá a casa, embora depois nós tenhamos lá um vizinho muito ficcionado na cena. Não faço a mínima ideia de como é que o Eusébio se safou, sei que foi o Gastão Silva buscá-lo.
Sim, o guião é muito bom. Qualquer pessoa pega naquele guião e faz um filme, está perfeito.
Mas não tem asneiras, o que é estranho pensando no universo futebolístico. E referem-se ao Eusébio como “o pretinho”. Foi para suavizar a realidade?
Não queríamos ofender. O filme não é sobre o Benfica nem sobre o Sporting, é um filme sobre a época. Tinha um bocado de medo de pôr asneiras, insultos... mas sei que o racismo está lá. Podia estar mais acentuado, mas tinha medo de parecer tendencioso. Há muitas cenas que caíram na montagem e não queria pôr uns a serem bons e outros maus. O guião também parte muito da maneira como os jornalistas escreviam na época, tudo embelezado, tudo bonitinho, mesmo as coisas negativas pareciam romances do Eça. Todo o filme está polido, todas as personagens, sejam parvas, sejam inteligentes, falam de uma maneira muito aprumada.
“Nós somos a elite”, dito pelo presidente do Sporting, ficou... Por muito bom que o filme seja, vai sempre ficar aquém da figura, do homem, da lenda, do símbolo, do deus O Hilário chegou a levá-lo para sua casa onde estava Jaime Duarte, dirigente do Sporting, com uma mala com 500 contos... Parece um filme de espionagem...
Foi propositado então...
Sim. O Eusébio é o principal, mas o que se está a passar no País é que deveria ser. Naquela altura, havia um regime fascista que fechava as pessoas, cortava o conhecimento... nesta altura, estamos numa fase de liberdade e de acesso ao conhecimento e continuamos numa sociedade muito pequena e fechada que só quer falar de futebol. Acho absurdo 17 programas de comentário futebolístico. Está a fomentar-se muito o ódio e isto vai rebentar. O filme tem esse lado de crítica aos dias de hoje, porque era algo que também se passava na altura: as pessoas centram-se num objecto da realidade absurda – Benfica e Sporting – quando se está a passar o início da guerra, o assalto ao paquete Santa Maria. Aquilo foi o ano terrível de Salazar. A guerra vai começar e as pessoas estão preocupadas com quem vai ganhar o jogo no domingo? É o que se passa hoje.
Ruth demorou mais de 30 horas a chegar a Lisboa. Entre os dias 14 e 15 de Dezembro de 1960 fez várias escalas, mas só se recorda de uma, em Dacar, no Senegal. À chegada, Eusébio encontrou um dirigente do Benfica e dois jornalistas d’A Bola. Seguiu para o Lar do Jogador, onde viria a dividir quarto com Torres e Cruz. Passou o primeiro Natal fora de casa e teve de sair de Lisboa por causa da pressão leonina. Esteve escondido no Algarve com Domingos Claudino e só depois do impasse, dos processos, das queixas e dos recursos entre Sporting, Benfica e Federação, é que seria apresentado de águia ao peito. Foi em Maio de 1961.
Sente pressão acrescida por ser filho de quem é?
Não, tenho tanto a ganhar como a perder. Ser filho da minha mãe é mais fácil porque o Benfica e o futebol são um desbloqueador de conversa incrível. Do meu pai é diferente. É ser o filho do Botelho, mais um, e nós somos três, e o meu irmão e a minha irmã também realizam – isto é uma vergonha, parece que está tudo à mama. Mas eu não tenho aspirações a ser cineasta, no sentido de que prefiro ser cinéfilo. Não me im- porto de trabalhar. Acabei de fazer este filme e já fiz um como assistente de realização e hei-de fazer muitos outros como assistente de realização. Sinceramente, acho que o cinema não pertence só aos artistas, também pertence aos cinéfilos.
A presença da PIDE é subtil. Sabemos que o orfeão do Benfica estava impedido de cantar algumas músicas e a senhora do café que está sempre com medo...
E há o inspector. O Benfica é conotado como o clube do regime, mas isso é uma falácia. Estiveram próximos porque o Salazar vetou a ida do Eusébio para o Inter de Milão, mas foi a mando, não foi por opção. O Sporting tem uma ligação mais notória através dos presidentes [que acabavam por ser membros do Governo].
Se fosse sportinguista, o filme seria muito diferente?
Não sei em que aspecto, mas talvez sim. Se fosse o mesmo guião, teria discussões e lutas com a guionista. Ia ser mais polido, talvez. O Sporting eram os viscondes, o clube da elite, e os benfiquistas são o povo. Acho que iria sempre atenuar a parte do Benfica... mas também me irrita a snobeira benfiquista, que existe ainda hoje, de achar que somos o grande clube português.
Quando foi a Moçambique, falou com algum dos talhantes?
Já não está lá ninguém. Falámos com a pessoa que tinha o talho ao lado e que se lembrava deles. Conversámos com pessoas que conheciam o Eusébio, o Hilário, o Coluna... Chegaram a confirmar a história dos telegramas enviados: um falso para o Sporting e um verdadeiro para o Benfica. Parece mesmo um filme de espiões com
Se fosse do Sporting, talvez o filme fosse diferente
aquela coisa castiça do ser-se português.
Não foi o primeiro guião escrito pela sua mãe...
Não, não é de todo. Normalmente escrevia em conjunto com o meu pai, mas acho que ela tem imenso jeito e que deveria escreve romances ou guiões. Espero poder realizar mais 10 filmes escritos pela minha mãe porque roçam os filmes clássicos do Hawks [Howard, realizador] – em que tens de estar muito atenta e muito atento para perceber as piadas porque eles falam todos uns por cima dos outros.
Quais são as suas referências?
Há um filme que gosto muito do Hawks, o His Girl Friday [O Grande Escândalo], que é sobre uns jornalistas que estão a escrever acerca de um condenado que está prestes a ser enforcado. É uma comédia com o Cary Grant e a Rosalind Russell, e o filme é muito rápido, daqueles clássicos, sem grandes movimentos ou grandes planos. Outras inspirações mais modernas... há um filme que gosto muito sobre um desporto que é insuportável, o Moneyball, sobre basebol. Tem uma coisa incrível: é um filme sobre pessoas que estão sentadas no seu gabinete a tratar de transferências, mas as minhas costas nem se encostavam à cadeira. Quis fazer isso neste filme, não haver um momento em que o ritmo abrande ou que se possa respirar.
Tirando o Eusébio, as duas primeiras personagens a aparecer são músicos: Paulo Furtado (Lengendary Tigerman) e JP Simões...
O JP Simões já foi actor e já o tinha visto num filme. É uma figura muito cinematográfica e pouco aproveitada. Convidei o Tigerman em primeiro lugar para fazer de pai do Eusébio porque sei que ele é muito benfiquista. Também acho piada a esta coisa do cinema e das
rock stars. Correu bem com o JP e o Tigerman, têm uma gravitas, uma carga trágica. O Tigerman é um pouco bad boy também, e o pai do Eusébio foi um homem que desapareceu... O JP tem aquele lado de Chico Buarque, mais meloso, e eu precisava de uma figura paternal assim para o Eusébio.
Ser filho da minha mãe é mais fácil porque o Benfica e o futebol são um desbloqueador de conversa incrível