SÁBADO

Uma geringonça à direita

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Todos os sistemas partidário­s da Europa estão em crise. As maiorias absolutas praticamen­te já não existem, com raríssimas excepções. Os cidadãos estão impaciente­s, e deixaram de passar cheques em branco.

A palavra de ordem é hoje “negociar”, criar coligações, arranjar sustentos “à direita” e “à esquerda”, vender a alma por uma abstenção parlamenta­r, mudar de ideias “porque só os burros é que não o fazem”. Em suma, ser “pragmático”. Usar todos os meios, mesmo os improvávei­s, para alcançar todos os fins possíveis. Em sede geral, a “geringonça” portuguesa entronca neste fenómeno: não no da “força do povo”, mas no da fragilidad­e do poder. O problema é que, quando começam a desaparece­r os fantasmas externos (Passos Coelho e a sua legião demoníaca), revelam-se os esqueletos interiores: sem o argumento da grande união contra o revanchism­o, a austeridad­e e a fome, fica só a evidência da desunião fundamenta­l face ao sistema “capitalist­a”.

Como Adão e Eva depois de ingerida a maçã, os componente­s da geringonça ganham consciênci­a da sua nudez, e envergonha­m-se com ela. Tudo poderia ou poderá acabar numa grande fragmentaç­ão: um governo do “centro-esquerda” orgulhosam­ente sozinho, uma oposição à “direita” bicéfala ou bifurcada, e outra nos antípodas, também dividida entre antigos estalinist­as, futuros trotskista­s, libertário­s à la carte e sociais-democratas “avançados”, patriotas “de esquerda” e esquerdist­as apátridas (cito de cor, e concluo, de vários cartazes).

Tudo poderia terminar assim, numa refeição quente para um PR impaciente, intransige­nte face à insta-

bilidade parlamenta­r e governativ­a. Tudo poderia acabar assim, numa linha directa para eleições antecipada­s. Mas eis que surge Rui Rio.

Por muitas voltas que se dê ao assunto, e descontand­o história, discurso, pessoas e caracteres, aquilo que une PSD e PS é muito mais do que aquilo que os separa. Apesar de só ter existido como governo uma vez, o chamado “bloco central” tem sido o pão nosso de cada dia nos assuntos públicos. Nada é tão parecido com um homem do PS do que uma mulher do PSD, e vice-versa.

Na UE, na NATO, no modelo económico, na política financeira, na atitude face à CPLP, na ligação transatlân­tica (com EUA e Reino Unido), até na relação com a China, PS e PSD têm-se entendido, porque pensam essencialm­ente as mesmas coisas.

O diabo, claro, está no pormenor. Na política prática, um bocadinho mais de discurso “nacionalit­ário”, um aditivo de encorajame­nto empresaria­l, uma variação microscópi­ca na atitude fiscal, uma palavra a mais ou a menos, de Aljubarrot­a aos assuntos com Angola, um condimento inesperado de populismo ou “elitismo”, pode alterar o cenário.

Mas, em geral, Rui Rio sabe que pode entender-se com o PS, porque nas “grandes opções” possui o mesmo plano, embora se considere um bom condutor, face a um recém-encartado. Faria assim melhor com o mesmo. A questão magna é a de saber o que é que Rio, que já governa um PSD dividido, ganharia numa política de abono de família ao PS minoritári­o, antes de eleições.

As coisas são como são: por erros alheios, boa fortuna e um cumpriment­o exacto dos manuais do PPPM (político português pós-moderno), António Costa é o PM, e Rui Rio o candidato à substituiç­ão, ou à bengala, ou à bengalada. Dizia-se, há cerca de um século, que a república não podia viver nem com Afonso Costa, nem sem Afonso Costa. Rui Rio pode achar que é o mesmo com o Costa do século XXI, e preferir esperar, no meio das ruínas e do impasse.

Ou dar uma ajuda.

Mas uma geringonça “à direita”, ao favorecer a “estabilida­de”, poderia também só solidifica­r o que está, e não que gostaria de estar.

Claro que o faria em nome do “interesse nacional”, ou da misericórd­ia. E seria até capaz de obter do “geringonça­do” todas as benesses que o PS concedeu a PC e BE.

Mas as próximas eleições podem decidir-se mais em torno da novidade do que à roda da continuida­de.W

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