SÁBADO

A COSTA CAVERNA DO TIGRE

De Alcácer a São Teotónio

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h Impõe a geografia que seja mais habitual descer em direcção ao Alentejo do que subir. Desçamos por isso, e junto à costa, que a brisa marítima é amiga da digestão. O banquete começa na antiga escola primária de Cachopos, entre Alcácer do Sal e a Comporta. Escola essa que deixou de o ser em 1982 para passar a sê-lo com artigo definido em 1996: A ESCOLA. Na cozinha, já não encontramo­s Henrique Galvão Lopes, o homem que mandou trocar a sala de aula pela de refeições, mas o seu genro, Octaviano Martins. A receita para o sucesso mantém-se. Melhor, as receitas: a começar nas empadas de caça, passando pelo ensopado de cabrito, a açorda de coelho e a acabar em criações mais obscuras do receituári­o local, como o feijão adubado ou as batatas de rebolão.

Ainda antes de chegar à Comporta, valerá a pena fazer um desvio em direcção ao cais palafítico da Carrasquei­ra. Não para tirar a habitual fotografia ao pôr-do-sol com uma legenda inspirador­a, mas para comer. E para comer bem, no RETIRO DO PESCADOR, que, como o nome indica, começou por ser isso, um retiro de pescadores. Ali comem-se grandes – literal e metaforica­mente – pratos de tacho: arrozes de marisco, de peixe, massadas, ensopados e caldeirada­s. A meio da tarde também se arranja qualquer coisa para o petisco. Já na Comporta, a Comporta dos artigos do The New York Times e das stories de Madonna, há uma cozinha que merece ser descoberta e apreciada para lá do barulho das luzes. É a que se pratica n’A CAVALARIÇA pela mão de Bruno Caseiro, um ex-psicólogo tornado chefde cozinha que trabalhou com Nuno Mendes em Londres até regressar, no Verão passado, em definitivo. O restaurant­e era suposto funcionar apenas em modo pop-up estival, mas os primeiros meses correram tão bem que este ano as portas voltaram a abrir a meio de Março. Na carta, desde o dia de inauguraçã­o, constam umas batatas fritas à Heston Blumenthal (técnica das três confecções), finalizada­s com toucinho e pimenta. Uma delícia.

Não menos delicioso é o choco frito de coentrada que se encontra n’O GERVÁSIO, alcunha da Casa Messejana dos Brejos da Carregueir­a, uns quilómetro­s a sul. Nos bancos de madeira do alpendre — protegido por mosquiteir­o, o melhor amigo dos clientes no Verão — já terão assentado, inclusive, as nalgas reais dos herdeiros da coroa monegasca. Os Grimaldi são donos de um refúgio nas imediações.

Sigamos em direcção a Melides com um prato em mente: pato assado no forno. O TIA ROSA, restaurant­e-salão de beira de estrada (EN 261), tem fama na matéria. Servem-no com laranja e arroz de miúdos, em

NOS BANCOS DO ALPENDRE D’O GERVÁSIO JÁ SE TERÃO SENTADO MEMBROS DA FAMÍLIA GRIMALDI

dose generosa. É chegar e pedir. Mas a fama não é tudo. Fontes bem informadas garantem que o melhor pato da região grasna noutro restaurant­e, dois quilómetro­s a sul, em Caveira. Só o nome impõe respeito: A CAVERNA DO TIGRE. “Tigre era a alcunha do meu pai, a nossa família era conhecida como os Tigres”, explica Armindo, que gere a casa em sociedade com o irmão Fernando. Os Tigres também exploram o bar da vizinha praia da Aberta Nova. Foi esse, aliás, o primeiro negócio da família: “Os meus pais abriram o bar em 1977 e o restaurant­e no Inverno seguinte”, recorda. Problema: para provar esse famoso pato é necessário encomendá-lo com pelo menos um dia de antecedênc­ia. E ir sem pressa, que o bicho demora a cozinhar. Sem encomenda, o passante fica sujeito à oferta diária: se for dia de arroz de pato desfiado com grão e coentros, é dia de sorte.

De Melides à Lagoa de Santo André, a viagem é curta. Mas a especialid­ade local é bem distinta: enguias. No CHEZ DANIEL servem-se fritas, grelhadas, em ensopado ou caldeirada. O negócio já vai na terceira geração – José Carlos, o actual anfitrião, é neto de Daniel, homem ligado à faina que há quase 100 anos abriu nas imediações da praia uma pequena barraca onde se reuniam os pescadores locais. A Barraca do Daniel passou a ser Chez Daniel graças às crónicas da jornalista, e cliente fiel, Vera Lagoa n’O Diabo. “Há 23 anos passámos para a localizaçã­o actual, mais afastados do mar, mas mantivemos tudo o resto”, explica José Carlos. Por “tudo o resto” entenda-se a oferta gastronómi­ca: além das enguias há peixe fresco, carne biológica e porco preto.

Próxima paragem: Sines. A formulação não serve apenas de recurso estilístic­o — o restaurant­e em questão, o CAIS DA ESTAÇÃO, ocupa o antigo armazém da estação ferroviári­a de Sines. Para uma viagem em primeira classe, há um prato que se impõe provar: choco frito com arroz de lingueirão.

Saindo da Zona Industrial de Sines em direcção a Porto Covo, via praia de São Torpes, atravessa-se

ENTRE SINES E PORTO COVO PERCORRE-SE SEM DÚVIDA UMA DAS MAIS BONITAS MARGINAIS DE PORTUGAL

uma das mais bonitas marginais do País. Não admira, por isso, que o lisboeta Carlos Barros tenha decidido assentar arraiais aqui no final dos anos 80, altura em que abriu o ARTE E SAL. “Tive um restaurant­e em Sines que era o Migas, que o José Quitério, na altura, considerou um dos 10 melhores do País”, lembra Carlos Barros, que antes tinha tido outra casa em Lisboa, a Ópera, onde “gostava de servir uns bifes à maneira”. Os bifes continua a tê-los no Arte e Sal, do lombo, com diferentes molhos. Mas o foco é o peixe fresco, que vem de fornecedor­es privilegia­dos: Carlos conhece muito bem os melhores pescadores das redondezas. Pode servi-lo grelhado – e, nesse caso, com direito a ser despinhado na mesa – ou em pratos de tacho. Neste dia havia, por exemplo, ensopado de garoupa. Para sobremesa, há gelados feitos no restaurant­e, de sabores invulgares – cogumelos ou tomate e requeijão.

Se o estômago pedir aconchego em Porto Covo, há duas opções bastante recomendáv­eis: ZÉ INÁCIO e

TASCA DO XICO. Já se o destino for uma das praias vizinhas, as bolas-de-berlim da padaria da aldeia (Raul e Marta) são excelente companhia.

Mas voltemos à estrada: em Vila Nova de Milfontes já nos espera José Cardoso. O nome pode não dizer muito ao comum dos leitores, mas se lhe chamarmos Celso a coisa muda de figura. E é assim que ele se apresenta. A sua TASCA DO CELSO é uma referência não só de Milfontes, mas da região. José Cardoso até nasceu bem longe destas paragens: “Sou de Lamego, mas vim para o Alentejo com 10 anos.” O nome Celso, que era o do pai, foi o escolhido quando se iniciou na restauraçã­o. “Um dia surgiu a oportunida­de de ficar com uma tasquinha que existia aqui onde nada pegava. Remodelei o espaço, chamei-lhe Tasca do Celso e fomos crescendo.” E se cresceram – de 25 lugares passaram aos 80 que existem hoje, com uma esplanada prevista para breve. A cozinha é regional, com muitos petiscos pensados para partilhar e combinar com a sua grande paixão: o vinho. Tanto assim é que não resiste a atravessar a rua – Jo- sé mora mesmo em frente ao restaurant­e – para nos mostrar a sua cave pessoal, onde guarda relíquias que partilha com clientes especiais.

De Milfontes até à fronteira com o Algarve, na Ribeira de Seixe, há três nomes dignos de referência: O JOSUÉ, na Longueira, SACAS e A BARCA TRANQUITAN­AS, ambos no Porto das Barcas da Zambujeira do Mar. A receita não varia muito nos três. As ementas focam-se, sobretudo, em peixe e marisco de frescura garantida. Os sargos são, quase sempre, opção segura: ao longo da Costa Alentejana vivem junto a rochas onde se alimentam de marisco, daí o sabor muito caracterís­tico que têm, diferente dos sargos de outras águas.

O mítico A AZENHA DO MAR, junto ao porto piscatório homónimo, no extremo sudoeste da região, é a última paragem deste roteiro. Apesar de uma recente mudança de gerência, o restaurant­e continua a carburar como poucos neste País: às 21h30 de uma terça-feira, no início de Abril, havia dezena e meia de nomes por riscar na lista de espera. Os arrozes têm fama justificad­a: de marisco, de lingueirão ou de tamboril. Atenção, porém, que só se servem, no mínimo, duas doses do dito. Ou seja, convém levar amigos. Para viajantes solitários há duas opções: o peixe, que aqui também é fresco e bem tratado – provam-no os linguadinh­os fritos com açorda que alimentara­m este escriba –, ou a reconforta­nte feijoada de choco, servida, essa sim, numa dose individual generosa. Tanto a refeição como este texto não podem acabar sem referência à melosa baba de camelo da casa. De fazer babar, também ela, qualquer não-dromedário.

JOSÉ CARDOSO É DE LONGE, NASCEU EM LAMEGO, MAS A SUA TASCA DO CELSO É UMA REFERÊNCIA EM MILFONTES

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CHEZ DANIEL
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A ESCOLA
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