ESTE FOI O ANO DO TÍMIDO DESPERTAR
Os jovens ouviam Dylan, liam Cardoso Pires e manifestavam-se contra o Vietname, até as greves conseguiam resultados, mas as mulheres eram ainda dos maridos.
Orolo com as fotografias da manifestação contra a guerra do Vietname nunca chegou a ser revelado. E a prova de que aconteceu mesmo, no Portugal amordaçado por 35 anos de ditadura, foi destruída por um agente ao serviço do regime. Neal Slavin era um fotógrafo norte-americano de 27 anos enviado para Portugal (País de que quase nada sabia) com uma bolsa do Programa Fulbright. Fotografava, 15 dias em Lisboa, outros tantos pelo País. A 21 de Fevereiro de 1968, o adido cultural da embaixada dos Estados Unidos avisou-o de que nessa tarde haveria uma manifestação contra a guerra do Vietname ali à porta, na Avenida Duque de Loulé. Em plena ditadura? Não podia, ainda terá respondido. De facto, uma manifestação (já de si raríssima) com um cariz internacionalista era quase inédita (ocorrera outra no Porto, em Janeiro) no País governado desde 1933 por António de Oliveira Salazar.
Mas aconteceu. Ainda que breve: “Essa manifestação, mal começa – com pouca gente –, acaba logo devido à polícia de choque, com carrinha de água ou de tinta azul, a bater”, descreve a historiadora Irene Flunser Pimentel. Entre os manifestantes, havia quem tivesse A Capital. Uma novidade dessa mesma tarde, em que pela primeira vez o vespertino fundado por Mário Neves e Norberto Lopes saiu. “O que toda a gente me conta é que, quando começa a vir a polícia, eles começam a correr até junto ao Liceu Camões com A Capital debaixo do braço”, conta a jornalista Edite Esteves (autora de A Voz
de Uma Geração, da Âncora Editora, sobre o jornal). A repressão fê-los dispersar, a manifestação terminou. Mas 1968 marcaria um ponto de viragem não só no regime – com a queda da cadeira que motivou a saída de Salazar de cena, substituído em Setembro, por Marcello Caetano –, mas nas mentalidades. Nos meses seguintes, as greves seriam “mais prolongadas e com mais adesão” do que as de anos anteriores, nota Irene Pimentel em
Inimigos de Salazar. Em Abril, cinco
mil pescadores de Matosinhos pararam. Em Junho, foi a vez dos de Espinho, Afurada, Aveiro, Figueira da Foz e dos trabalhadores conserveiros de Setúbal e Olhão. Em Julho, os revisores da Carris não cobraram bilhetes. Chamaram-lhe “greve da mala”, por não usarem a mala de couro onde guardavam dinheiro. Durante quatro dias, as estações da empresa foram ocupadas pelos membros dos 21 sindicatos nacionais, que eram afectos ao Ministério das Corporações. À terceira noite, a brigada especial da PSP de Oeiras atacou com cães-polícia o piquete do Largo do Alto de Santo Amaro. Os que estavam em Cabo Ruivo foram intimados a apresentar-se na esquadra – mas escaparam. No dia seguinte, a administração foi obrigada pelo governo a responder às reivindicações: os salários foram aumentados em 20 escudos. Influências internacionais, recorda a historiadora. Os emigrantes, que desde o início da década partiam principalmente para França e Alemanha (até 1968 terão sido mais de 640 mil), traziam a experiência do que era viver num país com sindicatos e com direito à greve. Só em 1968 terão saído 96.227 (27 mil dos quais de modo ilegal, entre exilados políticos e rapazes que fugiam à guerra colonial).
Os exemplos de Dylan
Os jovens apreendiam a liberdade com as músicas de Bob Dylan, Joan Baez, dos Beatles ou dos Rolling Stones. “A música é fundamental. Esse tipo de cultura passava rapidamente, porque não era tão proibida”, diz Irene Pimentel. E encontravam em autores como José Cardoso Pires metáforas sobre o regime sufocante de Salazar. O Delfim foi editado em 1968. Há precisamente duas décadas, o escritor italiano Antonio Tabucchi, que então estudava na Faculdade de Letras, recordou-a como “uma novela que representava a necrose de uma ditadura que se negava a morrer”.
Até vedetas internacionais apelavam nos palcos portugueses à liberdade e ao fim da guerra colonial. A 6 de Junho, o bailarino francês Maurice Béjart apresentou-se no Coliseu dos Recreios. Já na última cena, gritou-se do palco: “Façam amor, não façam guerra!”, enquanto se liam em várias línguas notícias sobre lutas e revoltas no mundo. A plateia levantou-se e aplaudiu longamente e Béjart pediu um minuto de silêncio por Robert Kennedy, que horas antes fora assassinado, e “contra todas as formas de violência e de ditadura”. Salazar ordenou a expulsão imediata do bailarino, justificada numa nota à imprensa: “Não se pode consentir que uma companhia estrangeira aproveite, abusivamente, um palco português para contrariar objectivos nacionais.” O Maio de 68 andava por aí. “É óbvio que vai ter uma influência, sobretudo depois. Mas nunca mais deixa de ter essa influência, quer no movimento estudantil quer operário”, analisa Irene Pimentel. A historiadora estava no último ano do Liceu Francês. Em Novembro de 1967, tinha “despertado” com a ida aos arredores da capital, afectados pelas cheias. Tal como ela, outros estudantes (muitos universitários e católicos, como António Guterres) “de outra classe social mais privilegiada” descobriram “na cintura de Lisboa como é que as pessoas viviam”. Em barracas, sem salubridade.
Aos 23 anos, Edite Esteves era já casada – e com o segundo filho a caminho. Mas recorda-se de poucos anos antes ter de ir de saia, com meias até ao joelho para o Liceu de Faro. E de nem poder arregaçar as mangas da bata branca: “O reitor ou a directora feminina perguntava se íamos lavar a loiça.” Já em Lisboa, era costume sair para namorar com o futuro marido (filho do realizador Constantino Esteves, que foi preso político), acompanhados por um PIDE, “de gabardine e chapéu de aba larga”. A pílula chegara a Portugal em 1962, mas poucos médicos a prescreviam. Em 1967, caíra a caduca regra do código civil de 1867 que dava poder ao tribunal para mandar uma mulher vítima de maus-tratos regressar a casa do marido. Mas outras leis com um século mantinham-se, diz Irene Pimentel: como a necessidade de autorização do marido para sair do País. Também não podiam ter conta bancária em seu nome. Mas a jornalista, que entraria para A Capital em 1972, tinha um marido do “contra”. E muitos outros despertavam também.
AS GREVES SUCEDIAM-SE: CINCO MIL PESCADORES EM MATOSINHOS; QUATRO DIAS SEM COBRAR NA CARRIS O BAILARINO MAURICE BÉJART FOI EXPULSO POR GRITAR NO COLISEU “CONTRA TODAS AS FORMAS DE DITADURA”