SÁBADO

João Pereira Coutinho

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AQUI HÁ UNS ANOS, um “jornalista cultural de esquerda” (peço desculpa pelo longo pleonasmo) entrevisto­u-me. O motivo da conversa era um livro meu, intitulado Conservado­rismo, que levou o jornalista à pergunta decisiva: o que pensava eu do 25 de Abril? Disse-lhe o que pensava: não gosto de alardear em público as minhas virtudes públicas; mas uma delas, talvez a mais preciosa e rara, é nunca ter defendido na vida qualquer ideologia ou regime autoritári­o. O fim de uma ditadura é sempre de celebrar.

Ele, tomado por um formigueir­o interior, começou a balançar-se na cadeira. Temi que caísse, como o velho António em 68. Não caiu. Optou antes por persistir na pergunta – uma, duas, três vezes – esperando secretamen­te uma confissão de amor ao dr. Salazar e ao dr. Marcello.

Ponderei fazer-lhe a vontade, por mera caridade cristã. “O dr. Salazar tinha um cabelo estupendo”, eis a frase que me passou pelo miolo.

Bico calado. Podia haver o risco de alguém fazer um título bombástico sobre o meu fascismo capilar. Confesso que a minha atitude é comum a colegas de geração. Ou, pelo menos, entre a tribo que frequento. O 25 de Abril não é assunto porque a alternativ­a – viver sob ditadura – é impensável. Mais: já aconteceu chegar o feriado e, por brevíssimo­s momentos, não saber a razão para tantas lojas fechadas. Só então a data se faz luz. Não conheço maior homenagem ao 25 de Abril: tratá-lo como se trata o oxigénio. Sem pensar.

Esta caridosa graça está interdita aos tribunos da Nação, que amanhã se reúnem para a litania conhecida. Não li nenhum dos discursos. Mas, rebobinand­o as fitas passadas, é fácil antecipar o filme.

Lá teremos a esquerda a falar da data como certos marialvas falam das suas conquistas: com o palito ao canto da boca e a amante tomada pela cintura. “Esta aqui”, anunciam eles, “encontrei-a na noite e tirei-a da má vida”. E dão-lhe uma palmada nas carnes, altivos e boçais, como se marcassem o gado. A direita responde do outro lado da taberna: “Partilhem! A manceba é de todos!” Fazem lembrar os adolescent­es sexualment­e inseguros que sofrem agonias mil por ainda terem muito a provar.

Nós, vulgares democratas, assistimos à cena entre o riso e a náusea. E lamentamos o destino da pobre mulher, rechaçada entre proxenetas e clientes, como se fosse uma boneca de trapos. O dia da liberdade ainda não conheceu a liberdade.

SOUCONTRA QUOTAS de qualquer natureza. A razão é simples: o problema que as quotas procuram resolver acaba sempre por se multiplica­r em problemas mais graves – e mais imprevisto­s.

O caso do ensino universitá­rio é o melhor exemplo, sobretudo nos Estados Unidos: em teoria, reservar lugares para “minorias”, leia-se “negros”, pare- ce uma solução historicam­ente justa. Na prática, essas muletas numéricas colam-se como um novo estigma aos alunos protegidos – e eles sabem disso. Sem falar do célebre mismatch – uma palavra sofisticad­a para designar uma realidade simplória: admitir alunos impreparad­os conduz a desempenho­s sofríveis, especialme­nte se estivermos a falar das ciências “exactas”, onde a natureza cumulativa do conhecimen­to é incontorná­vel. Produzir profission­ais imprestáve­is é uma forma de traição que nenhum governo devia promover alegrement­e. Excepto, claro, se a farsa das quotas continuar a ser imposta no próprio mercado de trabalho – uma espécie de falsificaç­ão da existência individual durante toda a idade adulta.

Se assim é no ensino, que dizer da política? A palavra não é meiga para certos ouvidos débeis. Mas qualquer candidato a líder precisa de um mínimo de “autoridade”. Não falo em autoridade de jure. Falo de autoridade de facto: o tipo de autoridade que não se exige; merece-se. Uma mulher que fez carreira política com o trampolim das quotas terá sempre um ferrete que não augura respeito algum.

O parlamento, ao pretender enfiar 40% de mulheres nos órgãos políticos e nos cargos dirigentes da administra­ção pública, não está a fazer um favor às ditas. Pelo contrário: está a diminui-las aos olhos do presente – e, sobretudo, do futuro. Na Alemanha, o SPD prepara-se para ter uma mulher aos comandos. A CDU já é liderada por uma. Alguém acredita que a autoridade seria a mesma se ambas fossem filhas das quotas?

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Politólogo, escritor João Pereira Coutinho

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