A história de um chef que renasceu num micro-restaurante
Como numa série, o pequeno restaurante Local, em Lisboa, anunciou a segunda temporada com novos protagonistas, novo horário – agora abre ao almoço – e nova carta. Só os 18 metros quadrados onde tudo acontece continuam iguais
Ominúsculo Local abriu em Agosto de 2017 no Príncipe Real, em Lisboa, numa espécie de T0 com espaço apenas para uma mesa e dois bancos corridos a meio metro da cozinha. À mesa sentavam-se 10 pessoas. Na cozinha só cabiam o chef André Lança Cordeiroea sous-chef Leonor Sobrinho que, além de criarem uma carta inspirada pela gastronomia francesa, também asseguravam o serviço. Para surpresa de quem segue as( movimentadís si mas) andanças gastronómicas de Lisboa, no fim de Janeiro foi anunciada a saída da dupla. “Seria sempre uma coisa temporária”, conta ao GPS André Lança Cordeiro, que agora prepara a abertura de um projecto em nome próprio. O protagonista da “segunda temporada do Local” ou “Local 2.0”, como chegou a ser anunciado nas redes sociais, é o chef Manel Lino, regressado do seu auto-imposto exílio num hotel de luxo em Espanha depois de um projecto de fine dining que não correu bem em Lisboa, o Trio.
Tal como André, também Manel chega com um sous-chef com quem já tinha trabalhado – João Mealha, no Tabik. À dupla juntam-se ainda dois cozinheiros – Manel Barreto e André Coelho – que, revezando-se, permitem que o Local tenha dois turnos ao jantar e uma carta de almoços que muda todas as semanas. A outra carta, essa, vai-se renovando gradualmente, prato a prato, e faz com que a cozinha de Manel Lino no Local seja necessariamente diferente da que fazia no Trio, onde dava a escolher entre um menu de degustação maior e mais caro (€42) e um mais curto e mais barato (€28).
O GPS conversou com o chef então e volta a entrevistá-lo agora, com a conversa a partir de onde a anterior tinha ficado. Manel Lino falou sobre o que correu mal com o Trio e porquê, sobre o regresso cabisbaixo a Espanha e o que podemos esperar da sua cozinha no Local. Atenção: a 7 e 8 de Maio o Local fica por conta do chef Bruno Caseiro, do restaurante Cavalariça, na Comporta, que irá fazer dois jantares pop-up enquanto a equipa do Local vai cozinhar na Casa Mãe, em Lagos.
O Trio abriu no Verão de 2016 e fechou em Março de 2017. O que correu mal?
Era um projecto ambicioso, mas só nós [ele e a mulher, Joana] é que estávamos ali, não havia um investidor ou um sócio. Acreditámos que em pouco tempo poderíamos atingir uma velocidade de cruzeiro que nos fosse confortável. E mesmo tendo fechado, continuo a acreditar que o projecto tinha pernas para andar. Eu é que não tive, digamos, paciência financeira para aguentar o que devia – porque não podia, porque os recursos eram todos nossos. Os clientes gostavam, o feedback era bom, estávamos a aumentar [o negócio] mas de forma gradual. Depois tivemos a primeira filha e ficámos desfalcados. Tudo o que tínhamos pusemos no Trio, ex-
cepto uma pequena reserva que nos dava uma margem de seis meses para que as coisas corressem bem. Passado esse tempo continuávamos abertos e as coisas não melhoravam.
Seis meses é uma folga pequena...
Os custos eram altos e a zona [entre a Rua da Artilharia 1 e a Rua Castilho] não era das melhores, porque embora as pessoas que lá vivem tenham algum poder de compra, quando pensam em jantar escolhem ir para sítios mais centrais. Tudo factores a que não demos importância porque acreditávamos que conseguíamos criar um restaurante de destino, onde as pessoas fossem de propósito. Aprendemos da pior maneira – arriscando – que isso demora mais tempo.
Em que altura decidiu que não dava mais?
Quando comecei a aproveitar uma série de trabalhos que iam surgindo e dei por mim a passar mais tempo longe do restaurante. Fazia cada vez menos sentido ter um sítio meu, com a minha cara, se depois eu não estava lá. Foi aí que decidimos fechar. Falhou. Não tenho problema de dizer que o restaurante, enquanto negócio, falhou. Não havia um plano [de negócio e comunicação] bem feito. Agora no que diz respeito à cozinha, acho que estava a correr bem. Aprendi a focar-me no que faço bem e no que tenho experiência – que é a cozinha, criar pratos e menus – e a deixar os outros assuntos para quem sabe, que assim as coisas correm melhor.
O que se seguiu ao Trio?
Surgiu uma oportunidade em Espanha, onde já tinha vivido [passou pelos reputadíssimos El Celler de Can Roca e Mugaritz]. Como já lá tinha passado cinco anos e me sentia confortável com a língua, o país e a cultura, pensei ir para ficar. Se calhar aqui não me adaptei, se calhar aqui não gostavam do que fazia, não sei. Fui para um bom hotel, mas um pouco cabisbaixo.
Foi para onde?
Para um pequeno hotel de charme isolado na montanha, o La Torre Del Visco, do grupo Relais & Chateaux, a 140 km de Saragoça. Mas na pausa de Inverno voltei para Portugal por dois meses e pensei que tendo uma filha pequena e vindo outra a caminho, se calhar faria sentido ficar. Agarrei alguns projectos de consultoria, para me
“APRENDI A FOCAR-ME NO QUE FAÇO BEM (...) E A DEIXAR OS OUTROS ASSUNTOS PARA QUEM SABE, QUE ASSIM AS COISAS CORREM MELHOR”
manter, e de repente surgiu o contacto do proprietário do Local a perguntar se queria dar continuidade ao projecto porque a equipa anterior ia abandonar o espaço. Foi muito rápido. Na altura não tinha nada em Lisboa e achei piada, por ser uma coisa diferente de tudo o que um cozinheiro com um percurso normal encontra.
Já conhecia o proprietário?
Não. Fui-lhe recomendado por outros cozinheiros. Vim cá jantar, conversámos e foi isso. Gostei muito do que estava a ser feito pelo André. Não sendo isto meu, achei que seria interessante para dar continuidade ao que estava a fazer no Trio, que era fazer chegar às pessoas uma cozinha com bom produto e criatividade q.b.
A sua entrada foi anunciada como a segunda temporada do Local, como numa série televisiva. Mas o conceito de uma segunda temporada tem implícito que poderá haver uma terceira...
Não existe uma intenção declarada nesse sentido, mas também não ficou fechado que não seja assim. Não há um prazo. Enquanto as coisas funcionarem para ambas as partes e estivermos felizes, as coisas podem funcionar. Quando assim deixar de ser, acho que poderá vir uma nova temporada.
No Trio tinha liberdade para criar fine dining sem outras limitações que não as impostas por si. Aqui, a carta e os pratos parecem mais conservadores. Concorda?
Sim, mas vai haver uma evolução. Esta é a pri- meira carta numa cozinha a que não estávamos habituados... Se calhar é uma carta mais defensiva porque arrancámos com nove pratos. Agora vamos introduzir novidades prato a prato – não vamos ter mudanças de carta de uma só vez –, para podemos dedicar alguns dias a pensar, a provar, a afinar a criatividade de cada prato que vai entrar. Vai haver uma evolução.
A cozinha minúscula limita-o?
Para que ela não nos limite, limitamo-nos nós. Se reparares, a nossa carta é extremamente reduzida [neste momento com três entradas, pratos e sobremesas] porque preferimos limitar a carta do que a comida, porque assim consigo trabalhar bem cada prato. Não nos privámos de qualquer técnica ou maquinaria. Criativamente falando, não nos limitamos.
No ano passado criou um hambúrguer para a McDonald’s e deu a cara pela marca em anúncios. Como é que isso se proporcionou?
Quando estava no Trio uma agência de comunicação perguntou se estava interessado em colaborar com uma multinacional. Não me disseram qual. Marcámos uma reunião, deram-me uma morada e quando cheguei lá é que percebi que era a sede da McDonald’s [Lagoas Park, Oeiras]. Disseram-me que iam começar uma linha de produtos para um cliente que não tinham, que era o tipo que vai ao Honorato ou a hamburguerias desse género. Eles queriam esse cliente e à semelhança do que aconteceu noutros países (em Espanha usaram dois chefs com estrela Michelin), cá quiseram agarrar em chefs que assinassem hambúrgueres que as pessoas pudessem associar a uma qualidade melhor do que era habitual na McDonald’s. Perguntaram-me se estaria interessado em ser o primeiro – a ideia é ter chefs diferentes em cada ano – e eu achei interessante – pelo desafio, por ser algo totalmente diferente do que é o meu trabalho, por ser uma grande multinacional e pelo que poderia aprender com eles em termos de marca e de métodos de trabalho dentro da indústria alimentar.
Como decorreu o processo criativo?
Deram-me liberdade para apresentar as receitas que queria, com todo o tipo de produtos, não me limitaram em nada até começarem a limitar. Eles não me queriam explicar o que procuravam para não me condicionar. Fomos provando as receitas em almoços no Trio, uma ou duas vezes por mês. Iam lá os directores de marketing, de qualidade e de operações que depois davam realidade ao produto final. Diziam o que é que era possível e o que é que não era. Foram filtrando até chegarmos ao produto final. Isto demorou quase um ano. Não te sei dizer no que é que essa aprendizagem se encaixa no meu dia a dia, mas durante esse tempo desfrutei e aprendi.