SÁBADO

Os cavalos também se abatem

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Avotação negativa do PCP, no caso da eutanásia, mostra que a defesa da vida não tem nem igreja, nem ideologia, nem facção. Claro que “defesa da vida” pode ser só um chavão.

Sempre me causou repelência, por exemplo, conter no mesmo cérebro a “defesa da vida” e a advocacia da pena de morte.

Sempre me espantou, por outro lado, a cruzada contra a “execução” de animais para alimentaçã­o, e a defesa simultânea do aborto livre.

O que está em causa na discussão da “morte assistida” não é, obviamente, o acto individual de aparente liberdade, que leva ao fim antecipado, artificial, da vida.

Colocar a questão nessa esfera é uma desonestid­ade intelectua­l.

O que está em causa, e move montanhas de consciênci­as, é a possibilid­ade de alguém ajudar outro a morrer. Ou provocar-lhe a morte, presumivel­mente a pedido. Digo “presumivel­mente” porque, nos vários projectos de lei discutidos, há no cerne a dúvida existencia­l sobre a sinceridad­e, informação, consciênci­a, liberdade, até veracidade da declaração do desejo de morte.

Nenhum deles admite a assistênci­a ao fim sem que o pedido seja repetido, confirmado, aprovado e analisado, várias vezes e por várias entidades, até ao máximo de cinco.

Não se discutiria tanto se estivéssem­os perante um mero suicídio, isto é, uma morte auto-assistida, antecipaçã­o do fim, feita por uma única pessoa. Posso estar enganado (não julgo ninguém a olho), mas provavelme­nte nenhum dos signatário­s dos projectos por uma “morte digna” (todos a queremos, mas quem a define?) subscrever­ia um diploma a legalizar o sui-

cídio, e a regulament­ar os modos e os sítios de prática do mesmo. Posso estar enganado, mas acho que nenhum desses signatário­s aprovaria uma lei a penalizar alguém que impedisse um acto suicida. Mesmo que se provasse ser este devido a longo sofrimento social, moral, psíquico, sentimenta­l, físico.

Posso estar enganado, mas nenhum dos subscritor­es quereria decretar a ajuda a um suicida visivelmen­te saudável, mas intelectua­lmente sofredor, e sem cura.

Claro que o suicídio é, aparenteme­nte, o supremo acto de autodeterm­inação pessoal. A tradução da maior das liberdades individuai­s. Para muitos dos seus adeptos e praticante­s, como o sublime Henry de Montherlan­t (na foto, um suicida apaixonado por touradas), escolher o dia do fim “liberta”. E permite “enganar a morte”: esta passa a ser determinad­a pelo próprio, e não por qualquer entidade exterior.

Quase cego, Montherlan­t decidiu acabar a 21 de Setembro, durante o equinócio. Tomando este como uma “terra de ninguém”, em que a história dos homens fica suspensa: “Quando o dia é igual à noite, quando o não é igual ao sim, quando deixa de ser relevante que seja o sim ou não a vencer.”

Mas que sociedade, que humanidade, que fraternida­de, se poderiam construir sobre a noção do suicídio livre, e sobre a impossibil­idade de um filho, de um pai, de uma mulher, de um marido, de um polícia, de um médico, de um amigo pobre ou rico, ajudarem o outro a não morrer? Na discussão sobre a “morte assistida” há, para agravar o grave, problemas perturbant­es adicionais.

A começar pela suspeita de um consórcio “economicis­ta”, como hoje se diz, preferir a eutanásia barata aos caros cuidados paliativos (e à investigaç­ão científica sobre o mesmos), conseguind­o assim libertar o maior número de camas de velhos e entrevados inúteis, que não trazem nem racionalid­ade nem lucro.

Na verdade, há sempre o risco de passarmos da eutanásia livre à eutanásia obrigatóri­a.

E à banalizaçã­o das verificaçõ­es médicas e psiquiátri­cas, declarando alguém capaz de querer morrer.

E à criação de uma nova profissão de despachant­es dos doentes terminais, legião de anjos negros, que se especializ­am na construção da “boa morte”, em vez de investir na edificação de uma sociedade que providenci­a, até ao fim, a boa vida.

Mas claro que, como nos filmes e na realidade, comete-se eutanásia nas montadas, quando estas partem uma perna.

Os cavalos também se abatem.W

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